RELIGIÃO NO ANTIGO EGITO E O LIVRO DOS MORTOS

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A religião egípcia

O homem ocidental moderno tem a religião como algo à parte dos outros aspectos da vida. Ações do dia-a-dia não têm um sentido religioso. Muitos povos, entretanto, vivem a religião na própria identidade da etnia, todas as ações e pensamentos têm um sentido religioso, ignorando, desta forma, o conceito de religião (Meslin. s.d. p.1.). Os egípcios eram assim. A religião impregnava suas vidas em todos os aspectos, não só os referentes às pessoas como de tudo o que os cercava: da cheia do Nilo à morte de um gato. Tudo dependia da disposição dos deuses. Não havia separação entre religião e estado. “Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” não faria sentido porque o Faraó era um deus (Casson. 1972. p.71.). Daí o fato de a civilização egípcia ter se desenvolvido a tão alto grau nas ciências e nas artes, notadamente na
medicina e na arquitetura, dever-se à religião. A religião produziu uma coesão que ajudou a civilização egípcia a sobreviver quase 3.000 anos sem grandes mudanças.

A religião egípcia tem origem na pré-história. A religião surge para explicar os fenômenos naturais para diminuir a ansiedade diante do desconhecido e manter a produtividade (Resende. 1991. p. 15 – 16.). Como qualquer povo primitivo os egípcios respeitavam a natureza e seus fenômenos: a ferocidade do leão, a força do crocodilo, os cuidados maternais da vaca. Isto fez com que as primeiras divindades fossem relacionadas com os fenômenos da natureza e também tivessem forma de animais, mesmo que se ocupassem em cuidar e dirigir os humanos. Anúbis, guarda dos túmulos e deus dos mortos, era representado por um chacal deitado. Essa associação do chacal com os mortos se deve ao fato de ele desenterrar ossos humanos, o que levou os egípcios a colocar pedras sobre as sepulturas. Este talvez fosse o embrião das grandes construções. Muitos animais eram criados nos templos como deuses, entre eles o gato, que representava Bastet, uma deusa do amor de Bast; o crocodilo, que representava Sabeque, deus de Crocodilópolis. Sendo deuses, esses animais eram mumificados quando morriam.

Além dos deuses animais, havia deuses relacionados com as manifestações da natureza, como Rá, o Deus Sol de Heliópolis (Cidade do Sol em grego).

O culto à natureza se dá nas sociedades primitivas porque o homem é dominado pelo mundo. Ao adquirir experiência e desenvolver técnicas de domínio da natureza a tendência é de antropomorfizar os deuses. Foi o que aconteceu ainda antes da primeira dinastia. Porém o animismo era tradição, por isso os deuses se tornaram uma mistura de homens e animais, como Hórus, que tinha corpo de homem e cabeça de falcão. Somente mais tarde, na época da fundação de Mênfis no Antigo Império, surgiram deuses com formas totalmente humanas, o que não quer dizer que os deuses zoomórficos foram abandonados (Casson. 1972. p. 72.).

A galeria dos deuses egípcios era imensa, cada cidade ou localidade tinha o seu deus. Um deles poderia adquirir destaque nacional conforme a sua cidade se tornasse importante na política, sem que os deuses locais fossem abandonados. Como exemplo temos o deus Rá, o Deus Sol de Heliópolis, que ganhou importância na quarta dinastia e o Faraó tornou-se o Filho de Rá.

Como qualquer religião a dos egípcios tinha um conteúdo moral relacionado com ordem, verdade, justiça e retidão. Esse aspecto moral da religião tinha o nome de Maat e era uma qualidade do mundo, colocada nele pelos deuses no momento da criação, e não do homem. Sendo obra dos deuses e não da consciência humana, a Maat era perfeita e
imutável, não havendo qualquer crítica séria da estrutura da sociedade, a não ser no Primeiro Período Intermediário quando as dificuldades levaram o povo a esperar que a Maat fosse praticada. Esse conceito de justiça social durou pouco tempo, terminou assim que o Médio Império restabeleceu a prosperidade. O mundo era como devia ser, afinal foi criado pelos deuses. Não era possível ter havido época melhor ou pior, nem haveria depois. Por isso não há Jardim do Éden, nem fim do mundo na mitologia egípcia (Casson. 1972. p. 74.).

O culto na religião egípcia era mais importante que a doutrina. Para estar em dia com a religião era necessário praticar o culto, pouco importando a concepção doutrinária. O culto era principalmente local. (Giordani. 1972. p. 105).

O culto era de exaltação aos deuses, até a tentativa de reforma monoteísta de Aquenaton. Sua reforma não teve êxito, mas deixou uma transformação que mudou a relação dos deuses com os homens. Por exemplo, um hino ao deus Rá, anterior a Aquenaton, declara: “Como és belo quando te levantas no horizonte e iluminas as Duas Terras com os teus raios”. Outro hino, posterior a Aquenaton, do reinado de Ramsés IV,
diz: “E tu me darás saúde, vida e idade avançada, um longo reinado e força a todos os meus membros ... e me darás de comer ... e me darás de beber ...”. Os deuses que antes eram os criadores do universo passaram a ser responsáveis pelo bem estar das suas criaturas (Casson. 1972. p. 80.).

As crenças dos egípcios a respeito da morte eram de que há uma vida além-túmulo. Essas crenças tinham origem na pré-história. Foram encontrados túmulos da era neolítica que continham objetos e víveres com características de haver a intenção de serem usados (Casson. 1972. p. 76). Eles encaravam o além como uma repetição dos melhores momentos da existência terrena e passavam grande parte do seu tempo preparando o túmulo e os objetos que deviam levar. Acreditavam que no além teriam necessidade deles, além dos alimentos. A falta deles, principalmente dos alimentos poderia causar uma segunda e definitiva morte. Além dos objetos úteis eram também colocadas figuras dos servos e das concubinas.

No início apenas os Faraós e suas famílias tinham o privilégio da vida além-túmulo. Esse privilégio estendeu-se aos nobres no fim do Antigo Império. Com as mudanças nas classes sociais no primeiro período intermediário, os mortais de origem obscura, ao assumirem posições elevadas, passaram a ter o privilégio da vida além-túmulo, estendendo-o, assim, às pessoas comuns, desde que pudessem pagar pela preparação do túmulo (Casson. 1976. p. 76.).

A mumificação era praticada porque consideravam a vida além-túmulo como uma existência corporal. Por isso, além da mumificação o morto era sepultado com comida, roupas, jóias e objetos de que pudesse precisar. Mesmo os sepultamentos mais simples mostram algum esforço para equipar o morto (Casson. 1976. p. 78.).

Pode parecer que os egípcios eram mórbidos e tristes pelo fato de se preocuparem e se ocuparem tanto com a morte, mas isto é um engano, eles encaravam a existência além-túmulo como uma feliz continuação da vida terrena e se dedicavam a ela com entusiasmo.

Os egípcios concebiam o ser humano como tendo nove princípios: Khet, o corpo; Ka, a personalidade espiritual; Ba, a alma; Khai Bit, a sombra; Akh, o espírito; Ib, o coração; Sekhem, a energia espiritual; Ren, o nome e Sakh, o corpo espiritual (Christophe. 1971. 53, p. 108.). Para entendermos a vida além-túmulo dois desses princípios são mais importantes: Ba, a alma e Ka, uma espécie de duplo imaterial do corpo que continuava a vida após a morte em dependência do corpo físico (Giordani. 1972. p. 113.). Eis o porquê da mumificação dos corpos e da intenção de eternidade dos túmulos. Isto levou a um altíssimo grau de desenvolvimento da medicina e da arquitetura.

O morto era julgado no tribunal composto por 42 juízes, cada um representando um nomo, e presidido por Osíris. O julgamento consistia em pesar o coração do morto numa balança cujo contrapeso era uma estátua de ouro da deusa da justiça Maât (Giordani.1972. p. 114.) ou, em outra versão, uma pena de avestruz, símbolo da verdade (Christophe. 1971. 52, p. 81.). Não havendo equilíbrio o morto seria devorado pelo devorador de almas representado por um deus crocodilo. Entretanto o morto podia fazer sua defesa em que faz a "confissão negativa", em que declara sua inocência segundo o capítulo CXXV do Livro dos Mortos: “Não causei sofrimento aos homens. Não empreguei violência com meus parentes. Não substitui a justiça pela injustiça. ... Não trabalhei em meu proveito em excesso. ... Não matei e não mandei matar. ... Não monopolizei jamais os campos de cultivo. etc.”

O mundo dos mortos era subterrâneo e se localizava no ocidente, onde o sol iniciava sua jornada noturna. A travessia da alma do morto era feita num barco.

Os túmulos eram construídos para durarem eternamente, já que se acreditava que a existência além-túmulo estava ligada à conservação do corpo físico. Importantes também eram as inscrições e os textos: O "Livro dos Dois Caminhos", o "Livro das portas" (Brissaud. 1978. p. 321.), os "Textos das Pirâmides" (compilação do Antigo Império gravada principalmente no interior de pirâmides da V e VI dinastias), os "Textos dos Sarcófagos" (compilação da IX dinastia), o "Livro dos Mortos" (compilação que substitui os "Textos dos Sarcófagos" no início da XVIII dinastia, no Novo Império) e várias compilações do Vale dos Reis (Giordani. 1972. p. 113.).

O Livro dos Mortos

O Livro dos Mortos é uma coleção de fórmulas que facilitam a passagem para o além. O livro data do Novo Império e é considerado o mais importante da literatura egípcia antiga. O nome "Livro dos Mortos" é o título dado pelos árabes: "Kitabul-maitim". O título original em egípcio era "Per-em-hru", "Livro da chegada à luz". Compõe-se de 180 capítulos (Barsa. 1987. 10, p.194a.) (A edição da Hemus está dividido em 190 capítulos.) e era escrito em papiro ou couro, colocado numa caixa decorada com a imagem de Osíris, a qual era colocada no sarcófago. Foram encontradas centenas de exemplares, com ligeiras diferenças entre eles (www.omnix.hpg.ig.com.br), que estão em diversos museus do mundo (Barsa. 1987. 10, p.194a.). Muitos capítulos são acompanhados de instruções para recitar a fórmula. Por exemplo, o capítulo XIII, "A entrada para o Amenti" (habitação dos mortos, a segunda etapa da Viagem, morada de Osíris, onde são julgados.)

“Entro no Céu como um Falcão. Percorro as regiões do Céu como Fênix. Os deuses adoram Rá e ele prepara os caminhos. Agora penetro na bela Amenti. Eis-me junto ao Lago sagrado de Hórus; amarrei seus cães. Que o Caminho me seja aberto! Possa eu percorrê-lo e ir adorar Osíris, Senhor da Vida Eterna.”
RUBRICA

“Recitar este capítulo junto a uma coroa feita de flores Ankham colocada perto do ouvido direito do morto; recitar igualmente junto a outra coroa envolta em tecido de cor púrpura, no qual, no dia dos funerais, será inscrito o nome do morto.” (O Livro dos Mortos. 1982. p. 30 – 31.)

O Livro dos Mortos foi descoberto por Jean-François Champollion, por volta de 1830, quando estudava material egípcio no Museu de Turim, especialmente um papiro de vinte metros coberto de hieróglifos dispostos verticalmente, e outros fragmentos diversos. Chamou de “Ritual funerário”, já que tratavam da morte e do culto aos mortos. Ricardo Lepsius, que vinha estudando o livro desde 1836 deu a primeira versão para o nome do livro: “Saída para o dia”. Existem três edições em inglês: a de Birch, de 1867; a de Le Page Renouf, de 1897, que não foi terminada e a de W. Budge, de 1898. Existem duas edições em francês: a de P. Pierret, de 1882 e de Gregory Kolpaktchi, de 1954 e existe, ainda, uma edição espanhola de Juan Bergua, de 1960. A edição em português da Hemus, traduzida por Edith Carvalho Negraes, não esclarece a partir de que edição foi traduzida. (O Livro dos Mortos. 1982. p. 12.)

Mário Curtis (1972. p. 113.) afirma que o Livro dos Mortos é uma compilação que substitui os Textos dos Sarcófagos no início da XVIII dinastia ( 1580 – 1335 aC.(?)).
Segundo a edição em português de 1982 da Hemus o autor é anônimo. Mas se o livro é uma compilação de textos anteriores, a autoria é dos sacerdotes do início da XVIII dinastia.

Existe um códice (exemplar mais bem conservado) do escultor Neferrenpet (1279 – 1213 aC.), que viveu na época de Ramsés II (www.ucdb.br/neimar), da XIX dinastia, mas o que confirma a época é o fato de que Aquenaton (1370 – 1352 aC.) teria punido um sacerdote por ter vendido um exemplar do Livro dos Mortos a uma mulher (Christophe. 1971. 52, p.77).

Considerações finais

Sabemos que a nossa civilização ocidental contemporânea se apóia em dois pilares históricos: um grego e um hebreu, o pensamento racional e o cristianismo. Por sua vez esses pilares se apóiam em outros, entre os quais o Antigo Egito, tanto o grego como o hebreu. Platão, Aristóteles, Heródoto, entre outros estiveram no Egito observando sua cultura. Devemos, portanto, o que somos também ao Egito.

A noção que temos da alma é a mesma de Platão, independente do corpo. Esta noção veio até nós via neoplatonismo, que influenciou a Patrística e via Aristóteles, o grande influenciador da Escolástica. Platão se opõe ao pensamento egípcio a respeito da alma, mas opor-se não é negar e sim confirmar influência. O costume ocidental contemporâneo de colocar flores nos túmulos e o costume que muitas pessoas
têm de conversar com os mortos diante dos túmulos nos leva a considerar que há muitas semelhanças com o Antigo Egito, que dificilmente podem ser atribuídas ao acaso.

Compreender a antiga cultura egípcia é compreender melhor a nossa própria.

A noção que temos da vida além-túmulo certamente tem uma influência egípcia via gregos e hebreus.

Bibliografia

BRISSAUD, Jean-Marc. O Egito dos Faraós. Grandes civilizações desaparecidas. Rio de Janeiro: Otto Pierre, 1978. p. 321.

CASSON, Leonel. O Antigo Egito. Biblioteca de história universal Life. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1972. p. 70 – 91.

CHRISTOPHE, Micheline. O Antigo Egito. In: Enciclopédia Bloch julho de 1971, nº 51, ano 5. p. 75 – 81./agosto de 1971, nº 52, ano 5. p. 75 – 81./setembro de 1971, nº 53, ano 5. p. 108 – 114./outubro de 1971, nº 54, ano 5. p. 93 – 98./novembro de 1971, nº 55, ano 5. p. 119 – 124.

ENCICLOPÉDIA BARSA. Rio de Janeiro/São Paulo: Encyclopaedia Britannica, 1987. 10, p. 194a.

GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. 3º ed. Petrópolis: Vozes, 1972. p. 55 – 118.

MESLIN, Michel. Experiência humana do divino. In: MARQUEADES, Brasdorico. O sentido do termo religião. Texto 1, p. 1.

O LIVRO DOS MORTOS DO ANTIGO EGITO. Tradução de Edith de Carvalho Negraes. São Paulo: Hemus, 1982. 356p.

RESENDE, Antonio. Curso de filosofia. 4º ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. p. 15 – 16.

http://www.omnix.hgp.ig.com.br/livrodosmortos.htm 16/05/2005

http://www.ucdb.br/neimar 02/06/2005 8h 45min.


O Livro dos Mortos do Antigo Egito
Universidade Católica Dom Bosco
Curso de História 1º semestre 2005
Adriaan Willem Maria Antoine van Onselen
Fátima Aparecida Ocampos
Izaura Márcia da Silva Ortiz
João Gabriel Garcia Fernandes Santos
Maysa Andrade Leite de Barros


FONTE: http://www.ampulhetta.org/textos/livro_mortos.pdf


livro_egipcio_dos_mortos.pdf


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