MOENDO GENTE

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O documentário CARNE OSSO, produzido em 2011 por Caio Cavechini e Caio Juliano Barros, expõe as condições precárias de trabalho em frigoríficos, tanto de aves quanto de bovinos e suínos, das regiões Sul e Centro-Oeste.

O ambiente frio, com temperatura em torno dos 8 °C, com atividades repetitivas — por exemplo, para desossar um perna de frango são necessários 12 cortes mais 6 outros movimentos que devem ser realizados num intervalo de, no máximo, 15 segundos — e com faca, ao longo dos anos, causam o adoecimento de trabalhadores, seja por lesões, acidentes, traumas ou doenças mentais. De acordo com o governo federal, somente no ano 2011, foram registrados 19.453 acidentes e 32 óbitos em frigoríficos. Durante dois anos, a equipe da ONG Repórter Brasil, que produziu o documentário, percorreu diversos frigoríficos à procura de histórias de vida que pudessem ilustrar esses problemas. Assim o documentário traz imagens impactantes e depoimentos que caracterizam uma triste realidade. Há duas histórias particularmente impactantes. Uma é a de um trabalhador que perdeu o braço ao cumprir suas tarefas num frigorífico. E outra é a história de uma trabalhadora que, de tanto esforço, após mais de uma década de trabalho (sem faltas), seus nervos se atrofiaram e hoje ela não possui qualquer movimento no braço esquerdo.

O trabalho geralmente é organizado em linhas de produção ou montagem, especialmente nas nórias, onde frangos são pendurados e o ritmo de trabalho é imposto aos funcionários. As máquinas trabalham e o trabalhador tem que conseguir acompanhar o ritmo imposto pela empresa. Segundo relatos dos próprios funcionários, eles passam 8 horas repetindo os mesmos movimentos, a máquina libera 3700 frangos por hora, eles têm, em média, 6 segundos para desossar uma peça, não podendo desviar a atenção, caso contrário não conseguem "vencer o serviço", é necessário corte preciso, com
cuidado para não rasgar a pele. O ritmo de trabalho é muito mais acelerado do que o recomendado, os trabalhadores relatam realizar de 80 a 120
movimentos em um único minuto, sendo que o máximo que poderiam realizar, dentro de um limite seguro, são 35 movimentos. Em alguns casos eles têm dois descansos, de 5 a 10 minutos, durante todo o horário de trabalho, algo muito inferior ao recomendado pela NR-36, que prevê no minimo 4 descansos, podendo chegar a um descanso a cada hora.

A Norma Reguladora 36 (NR-36), publicada, em 19 de abril de 2013, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, trata da segurança e saúde no trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados, e entrou em vigor seis meses após a sua publicação, exceto quanto aos itens que demandem intervenções estruturais de mobiliário e equipamentos, alterações nas instalações fisicas da empresa ou estejam relacionados a concessão de assentos e pausas aos empregados, casos nos quais os prazos variam, podendo chegar a 24 meses.

O objetivo da NR-36 é estabelecer os requisitos mínimos para a avaliação, controle e monitoramento dos riscos existentes nas atividades desenvolvidas na indústria de abate e processamento de carnes e derivados destinados ao consumo humano. Nesse sentido, a regulamentação publicada pelo MTE é bastante abrangente, tratando de diversos aspectos de saúde e segurança do trabalho, entre os quais: estrutura organizacional com foco em ergonomia, jornada de trabalho, pausas psicofisiológicas durante a jornada de trabalho, mobiliário, máquinas e equipamentos, treinamento, vestimentas, ferramentas, etc.

Em diversos itens da norma regulamentadora há previsão de alternância entre postos de trabalho que demandem diferentes exigências fisico-motoras, assim como determinação de que todos os trabalhadores estejam treinados para as diferentes atividades que irão executar. Essas medidas visam evitar os movimentos repetitivos que podem resultar em doenças ocupacionais — comuns no setor.

Em 2010, o Brasil, se manteve líder de exportação de
carne bovina no mundo com 1,7 milhão de toneladas vendidas para mais de 50 países. Em resumo, esta é uma das principais forças da economia nacional e vedete da balança comercial junto com as commodities agrícolas. As boas condições do mercado, no entanto, nem sempre se equiparam às dos trabalhadores.

Para Jevons, feliz é aquele homem que, mesmo de baixa condição e posses limitadas sempre pode aspirar a mais do que tem e sentir que cada momento de labuta tende à realização de suas aspirações. No entanto não é isso que se vê entre os trabalhadores desse setor. O documentário mostra vilas/bairros de trabalhadores que continuam da mesma forma há décadas, indicando que não houve qualquer melhora no estilo de vida dos mesmos resultante do trabalho. O prazer dos funcionários não vem, nesse caso, de realização pessoal ou reconhecimento, posto que apesar de cumprirem rigorosas metas eles não recebem nenhum reconhecimento. O prazer desses homens e mulher advém de suas remunerações, que, apesar de baixas, garantem o sustento e atendem às necessidades básicas de suas famílias.

Ricardo afirmava que diminuir os salários, para aumentar os lucros, era necessário porém esse corte nos salários deveria respeitar os limites fisiológicos, não remunerando menos do que o necessário para a subsistência. Hoje o problema não está focado, tão diretamente, na remuneração e sim nas doenças relacionadas à crescente exploração: doenças, como LER/DORT, que atingem diretamente a capacidade física do trabalhador, além de outras doenças que afetam a saúde mental dos mesmos, provocadas pelo estresse e pressão às quais são submetidos.

Vários autores clássicos descrevem as condições insalúbres e degradantes às quais os trabalhadores eram submetidos no início do século XIX, dentre estes podemos destacar as obras de Thompson e Engels. O desenvolvimento das forças produtivas em muitos casos resulta do adoecimento dos trabalhadores. Essa contradição entre lucro capitalista e integridade física dos trabalhadores se manifesta com grande intensidade nos frigoríficos. No entanto, os gestores do capital asseveram que os trabalhadores adoecem devido ao descuido e falta de destreza — no caso da funcionária que teve os nervos do braço esquerdo atrofiados, os empregadores chegaram a afirmar que a doença era resultante do fato dela vir de moto para o trabalho —, ou que a produção necessita de ajuste ergonômico.

Os trabalhadores acusam os frigoríficos de aumentarem ainda mais o ritmo de trabalho quando fazem contratos de exportação além de suas capacidades; e obrigarem que os trabalhadores batam metas todos os dias, perdendo o horário do almoço ou ficando até mais tarde no trabalho, sem hora extra, para bater a meta. Essa superexploração é típica do capitalismo e sustenta a acumulação capitalista e a procura pela mais-valia.

Ao analisar a origem do lucro capitalista, Marx toma como ponto de partidas as categorias da Escola clássica inglesa: Adam Smith já havia observado que o trabalho incorporado em uma mercadoria (o seu custo de produção) em termos de salários era inferior ao "trabalho comandado" (aquilo que a mercadoria podia, uma vez vendida, "comprar" em termos de horas de trabalho. Para Smith essa discrepância é que explicava a existência do lucro, mas não suas causas.

Síntese do processo de produção
capitalista:
- capital constante (C) = meios de produção;
- capital variável (V) = força de trabalho
remunerada; e
- mais-valia (MV) = força de trabalho não
remunerada.

C+V=M (Valor do capital adquirido)
C+V++MV=M' (Valor produzido)

Para David Ricardo o salário gravitava sempre em torno dos seus níveis naturais, isto é, de um mínimo de subsistência fisiológica.

Karl Marx chamou atenção para o fato de que os
capitalistas, uma vez pago o salário de mercado pelo uso da força de trabalho, podem lançar mão de duas estratégias para ampliar sua taxa de lucro: estender a duração da jornada de trabalho mantendo o salário constante — o que ele chama de mais-valia absoluta —; ou ampliar a produtividade física do trabalho por via da mecanização — o que ele chama de mais-valia relativa.

A mais-valia absoluta consiste na intensificação do ritmo de trabalho através de uma série de controles impostos aos operários, que incluem da mais severa vigilância a todos os seus atos na unidade produtiva até à cronometragem e determinação dos movimentos necessários à realização das suas tarefas — os funcionários de frigoríficos sequer podem ir ao banheiro com liberdade, correndo o risco de serem criticados por passarem mais de 5 minutos para irem ao banheiro e voltarem ou se forem mais de uma vez por dia. O capitalista obriga o trabalhador a trabalhar a um ritmo tal que, sem alterar a duração da jornada produzem mais mercadorias e mais valor que sem esses controles.

Essa definição dada por Marx é exatamente o que enxergamos no trabalho nos frigoríficos, onde os funcionários são forçados a aumentar a produção muito além do viável para sua própria saúde. Essa exploração usa as pessoas como uma fonte de recursos, com pouca ou nenhuma consideração pelo seu bem-estar e é assim que eles se sentem, sabendo que podem a qualquer momento serem dispensados, como meros objetos, caso reclamem ou percam sua produtividade. As empresas usam o Exército Industrial de Reserva como uma ameaça constante para esses trabalhadores; é o medo do desemprego que os mantêm na produção mesmo com as atividades desenvolvidas sendo algo tão repetitivo, estafante e estressante.

Os frigoríficos contam com 750 mil funcionários, sendo 250 mil no setor bovino e 500 no abate de aves e suínos, nesses setores 20% da força de trabalho está adoecendo por vontade deliberada dos capitalistas de não proteger os funcionários. Para entendermos o quanto o trabalho nesse setor é perigoso vejamos os números:
- No abate de bois as chances de um funcionário sofrer queimaduras é 6 vezes maior (+596%) do que em outros ramos.
- No abate de aves e pequenos animais há 743% mais chances de risco de lesões no punho, plexo nervoso, do que em outros ramos.

Eles sofrem:
- 2 vezes mais traumatismo de cabeça.
- 3 vezes mais traumatismo de abdômen.
- 3 vezes mais traumatismo de ombro e braço.

Toda essa exploração visa a superprodução, mas há casos onde são relatados que melhores condições de trabalho são mais eficientes para aumentar a produção do que a tentativa de transformar o trabalhador em mero instrumento. Se os frigoríficos brasileiros continuarem com esse tipo de trato com os trabalhadores acabarão perdendo sua mão-de-obra dentro de um médio prazo, tendo em vista que o que leva as pessoas a tal serviço é o baixo nível de escolaridade, problema que vem sendo resolvido, lentamente, por políticas governamentais.

A NR-36 precisa ser posta realmente em prática para que esse setor não se torne uma fábrica de doentes, enquanto isto vamos moendo gente para exportar cada vez mais.


AUTORA:
LIZZA BATHORY
Blogueira d'O Submundo em tempo integral e estudante de Ciências Econômicas nas horas vagas.
elizabeth.bathory.ce@gmail.com
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2 Comentários:

Rok disse... 9 de março de 2014 às 23:48

Que blog incrível! cheguei interessando nas EQM de Pam Reynolds, e acabei aqui, lendo isto. Chocado com fato de uma estudante de ciências econômicas analisar uma situação apoiando-se em Marx, sempre combatido e execrado nas faculdades de economia. Mais um elemento que torna este lugar singular. Gostei.

Lizza Bathory disse... 10 de março de 2014 às 02:13

Que bom que gostou.

Esse texto foi escrito para um trabalho, onde era necessário analisar o documentário CARNE OSSO correlacionando com o que foi aprendido sobre economistas clássicos e neoclássicos.