PÃO NA CHAPA

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Joaquim fora criado pelos tios. Os pais haviam morrido num assalto. Não foram as vítimas. Eram assaltantes. Colheram o que plantaram.

Os tios tiveram todo o cuidado de ocultarem a tragédia familiar. No entanto, a fraqueza humana sempre faz das suas.

Numa festa de aniversário em que sua avó completaria cem anos, um primo invejoso contara a verdade para Joaquim.

Ao contrário do esperado, Joaquim recebeu a notícia com frieza. Como se de alguma maneira já soubesse.

- Ele já sabe!

- O songamonga já sabe.

O tempo foi passando e um sonho fora penetrando vagarosamente em sua alma. Um sonho pelo qual foi responsável sua prima Ismênia, escritora e atriz amadora de talento razoável.

Sua prima era uma escritora daquelas que gostavam de descrever minúcias, tendo uma predileção por temas de anjos caídos, como aquelas meninas que, no ano passado, caíram na língua do povo ou como aquelas outras que escorregaram nela, mas, usufruem do benefício da dúvida.

Ela e Joaquim estavam sempre juntos. Embora os escritos da prima não fossem grande coisa para os companheiros fanáticos da Igreja Sonho de Valsa, Joaquim não pensava assim. Queria ser igual a ela. E queria tanto que, nas madrugadas, costumava se trancar no quarto e se vestir como a prima. Enfiava a calcinha no rabo e se achava a própria.

Para todos, Joaquim era uma pessoa super gentil. Ele até fazia parte de uma organização que cuidava de cachorros e gatos e cobras e escorpiões abandonados (ainda que na cidade não tivessem escorpiões).

Só que, em seu pequeno almoxarifado, nos fundos de sua casa, gostava de torturar os animais, tendo preferência por cutucar com ferro em brasa os "hamsters" roubados de uma sobrinha que vivia soltando gracinhas, colocando em dúvida sua masculinidade.

A Prefeitura de Fim-do-Mundo estava fazendo um conjunto habitacional para os moradores do morro do Xarope, onde a maioria dos moradores era de fora do estado.

Por conta disso, muitos cães foram deixados nos barracos xaropentos. Os donos nem tentaram procurar um abrigo para os mesmos.

A organização de Joaquim abrigava cães que eram geralmente vira-latas. Não gostavam de pegar cães de raça. Uma atitude discriminatória não entendida pelos mais raçudos.

Ismênia sempre dava um jeito de ajudar. Era ela a que mais ajudava, conseguindo doações de ração. Andava em todas as casas, principalmente, das famílias dos vereadores.

- A gente só precisa de ração. Qualquer quantia serve, desde que seja acima de 50 reais, que vocês podem, a gente sabe.

Davam uma de joão-sem-braço. Desculpa disso, daquilo, e acabavam arranjando uns vinte reais. Ismênia sabia. Por isso, jogava o pedido pra cima.

Certa feita, Ismênia, sem ninguém saber, saíra com um vereador. O desgraçado era fissurado na bunda dela. Uma senhora bunda. Bunda de passista do começo do século anterior. Puxara à avó. Digam pra mim. Ele conseguiu comer o cu dela? Conseguiu. Ofereceu duzentos mil. Duzentos. Ela não resistiu.

Um dia, Ismênia pediu a Joaquim que conseguisse um cachorro grande, pois, já fora roubada várias vezes, e dentro de casa.

Os últimos objetos que perdera foram uma bicicleta novinha, uma caixa com alguns papéis e.....o resto nem eu que estou escrevendo lembro. Como um dos seus vizinhos tinha uma câmera presa num poste de frente da sua casa, conseguiram filmar o assaltante.

Ismênia teve acesso à câmera. Não se surpreendeu. Fria, viu tudo. Fria, continuou. Apesar do calor.

O vizinho que tinha a câmera aconselhou-a a conseguir um cachorro grande.

Joaquim procurara em todo canto possível um cachorro adequado, mas, não conseguiu.

Como ele possuía um cachorro, grande e violento, sempre preso a correntes, ofereceu o mesmo.

De início, ela se amedrontou. Porém, acabou aceitando a oferta do primo.

O primo prometera alimentar e cuidar do cão algum tempo. E assim fez durante meses. O cão, devido a isso, não aceitava Ismênia da mesma maneira que a ele, porém, era obediente no fundamental.

Numa das diligências da organização de Joaquim, notaram a ausência de Ismênia. Era um dia em que ela se comprometera a ajudá-los.

Joaquim, ao final do trabalho, foi á casa da prima. Estranhou as portas abertas. Mas entrou. Notou uma pequena câmera na parede. Alguém observava?

Quando ouviu um barulho vindo da cozinha, foi ver o que estava ocorrendo. Tomou um susto quando viu o cão comendo carne fresca e miolos, que pareciam humanos.

Nisso, aparece Ismênia, vinda do quarto, toda melada de sangue.
- Oi, Joaquim!
-Oi!
-Não tá estranhando?
-Você devia dar ração, não carne.

Ismênia compreendeu que, ao dar carne ao cachorro, este ficaria mais do seu lado que do lado do primo.
-É só hoje, além do mais é só uma boquinha. O principal você vai dar.

Ao terminar de falar, saca um revólver com silencioso, uma arma muito usada por seu pai, policial militar expulso da corporação.

Ele caiu pelo susto, já que ela acertara no teto. Por bater com a cabeça no chão, ficou meio desmaiado (nunca vi ninguém "meio" desmaiado). Mal ele foi ao chão, ela se aproximou do ouvido direito dele, onde havia uma costura de operação para retirar um quelóide. Vam'lá no wikipédia:


"Um queloide é um caso especial de cicatriz. Como desordem fibroproliferativa, são lesões fibroelásticas, salientes, rosadas, avermelhadas ou escuras e às vezes brilhantes. Podem ocorrer na cicatrização de qualquer lesão da pele. Geralmente crescem, e apesar de inofensivas (benigno), não contagiosas e indolores, podem se tornar um problema estético importante."

Mas...o que lhes interessa isso, não é mesmo, a não ser pelo fato de ela tentar romper essa costura com um estilete e deixar correr um pouco de sangue?

Ela sussurrou-lhe:
-Você não devia ter roubado a caixa com meus textos, não devia. Não ligo pra bicicleta nem pras calcinhas. Nem quero saber o que você fez com essas coisas, tarado. Mas meus textos não.


Ismênia é atacada por uma súbita cólica menstrual. Antes de ir ao banheiro, puxa o cachorro até Joaquim. Sabe que o cachorro fará um serviço limpo. Afinal, Joaquim era bom de miolos desde pequeno. Sempre o primeiro da classe.

Só que Ismênia não esperava ser traída, naquele momento, pela ação do tempo. Como estava chovendo pra caralho, as paredes de sua casa não duraram muito. Sua casa há muito estava com umas rachaduras imensas. As vigas do telhado apodrecidas.

Quando a chuva moderou, o cachorro estava morto entre paredes como pão na chapa. Passado do ponto.


Joaquim acordou, de súbito, e, por sorte, não foi atingido. 

Nunca mais vestiria as roupas da prima. Pernas pra que te quero. Dizem que foi para outro estado, um bem longínquo, talvez na região norte. Nome atual: Lola Lispector, escritora de romances homoeróticos.

Ismênia também não morreu. Mas nunca teve uma menstruação tão dolorida. Um bom tema para seu próximo texto, pensou ela.


No futuro, esqueceria isso e acabaria abrindo uma casa de "swing" com o vereador que lhe dera duzentos mil por sua "flor do caribe".

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