Desejo de submissão em "O Grande Inquisidor" de Dostoiévski

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Em “O Grande Inquisidor”, trecho consagrado que compõe um capítulo de “Os irmãos Karamázov”, Dostoiévski, através da história contada por Ivan a Aliócha, afirma:

"Não há preocupação mais constante e torturante para o homem do que, estando livre, encontrar depressa a quem sujeitar-se. Mas o homem procura sujeitar-se ao que já é irrefutável, e irrefutável a tal ponto que de uma hora para outra todos os homens aceitam uma sujeição universal a isso. Porque a preocupação dessas criaturas deploráveis não consiste apenas em encontrar aquilo a que eu ou outra pessoa deve sujeitar-se, mas em encontrar algo em que todos acreditem e a que se sujeitem, e que sejam forçosamente todos juntos. Pois essa necessidade da convergência na sujeição é o que constitui o tormento principal de cada homem individualmente e de toda a humanidade desde o início dos tempos. (...) Eu te digo que o homem não tem uma preocupação mais angustiante do que encontrar a quem entregar depressa aquela dádiva da liberdade com que esse ser infeliz nasce”.

Além de propor uma razão universal que justifique o triunfo da religião através da história da humanidade, Dostoiévski expressa um fenômeno cuja causa é do maior interesse à Psicologia, a saber, o desejo de submissão. Enquanto Lacan atribui à religião a função fundamental de conferir sentido à existência do homem, justificando por isso seu triunfo – inclusive ironizando, como o fez também Foucault, algumas teorias psicológicas que fariam o mesmo ao “explicar” o que é o homem –, Freud, por sua vez, faz um paralelo com a própria gênese da neurose, onde supõe-se um pai castrador pelo qual o sujeito nutriu um desejo parricida; desejo este que, posteriormente, dá origem a um sentimento de culpa que encontra alívio em formas de autopunição e submissão. O próprio Dostoiévski, inclusive, é interpretado dessa maneira por Freud, que lamenta que um intelecto tão precioso tenha sido limitado por uma hipotética neurose que o fez submisso a Deus e ao Czar.

Butler, a partir da construção de um conceito de sujeito enquanto assujeitamento, igualmente contribui para a questão:

“Obrigado a buscar o reconhecimento de sua própria existência em categorias, termos e nomes que não criou, o sujeito busca os signos de sua existência fora de si, em um discurso que é ao mesmo tempo dominante e indiferente”.

Segundo a autora, portanto, há um poder anterior que, não exatamente coercitivo, ativa e subjetiva, isto é, assujeita. Esta seria a razão da delimitação do sujeito, da incontornável alienação ao Outro enquanto lugar de alteridade radical, mas também de reconhecimento. Como figura analógica de demonstração, poderíamos propor a cena de uma pessoa que olha a si mesma, mas utilizando um espelho: onde está, não pode se ver; e onde se reconhece, não é onde está. A autora, porém, não admite um código externo estanque e anacrônico, mas propõe que o assujeitado obtém uma potência criadora e subversiva em relação ao poder ao qual sua existência mesma é devida. A sequência do trecho de Butler supracitado ressalta a questão:

“As categorias sociais implicam simultaneamente subordinação e existência. Em outras palavras, dentro da submissão o preço da existência é a subordinação. Precisamente quando a escolha se torna impossível, o sujeito persegue a subordinação como promessa de existência. Esta busca não é uma escolha, mas tampouco uma necessidade. A submissão explora o desejo pela existência, que sempre é conferida desde fora; impõe uma vulnerabilidade primária perante o Outro como condição para alcançar o ser”.

Poderíamos, então, ensaiar a distinção de dois posicionamentos distintos frente ao inevitável apelo ao Outro: a subordinação e a subversão. A primeira poderia ser concebida como uma virada que atribui ao Outro – antes indiferente – um capricho; como as figuras dos deuses, por exemplo. O desejo do Outro deixa de ser uma incógnita que angustia o sujeito e passa a ser uma intenção articulável. Paga-se a extinção da incerteza com a subordinação, cujas condições desde o princípio já estão dadas. A segunda, subversiva, não implica menos o Outro, isto é, não desfaz a ativação primeira de seu discurso assujeitador; reconhece, porém, a incógnita de seu desejo como inconsistência, como possibilidade infinita de rearranjo.

O Grande Inquisidor não é um cínico que retém o salvador a fim de evitar que este lhe retire o poder de representante de Deus na Terra, isto é, ele não o faz em seu próprio benefício. Ele é, antes de tudo, alguém que coloca a questão: destitui-se a imagem a qual estamos subordinados em troca de quê?

“Não existe nada mais sedutor para o homem que sua liberdade de consciência, mas tampouco existe nada mais angustiante”.

Inferências: Vhtriska.

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