SKILO EXTRAINDO O CUSPE DE DEUS

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Havia fregueses que chegavam às vinte horas no bar do Forgeron e três horas depois bandeavam pro bar do Wotan. E havia outros que faziam o inverso. Skilo não tinha regra. Um dia aportava num e, no outro, embicava no bar concorrente.
Skilo chegara no Wotan cabisbaixo. Quem notara primeiro a sua chegada foi o dono do bar que, naquela ocasião, estava demasiado atento a todo movimento. Skilo chegou e sentou junto à mesa do Cocada, outro que naquela noite estava pagando todas, pois, finalmente conquistara seu grande amor – Alexandra dos olhos de jabuticaba, a mulher de cinquenta mais linda daqueles arredores.
A razão de Wotan estar com atenção dobrada nas coisas era que, na noite anterior, surgiu no bar um grupo mal encarado que bebeu até as duas e não pagou. Claro que ele conseguiu a mobilização da polícia e recuperou metade do dinheiro devido, contudo, seguro morreu de velho e prometeu a si mesmo mais cuidado com seu negócio. Skilo era boa gente, segundo Wotan. Todavia, um cuidado extremo até com os amigos era bom de se ter de vez em quando. Porque os companheiros gostavam de abusar da generosidade de Skilo.
Skilo, como já disse há algum tempo, era um rapaz feliz, pelo menos por fora.  Sonhava ter cartazes com seu perfil nas paredes de dentro do bar do Wotan.  Umas fotos especiais, peito aberto e riso franco, mostrando todos os seus dentes, escovados com flúor todas as manhãs, tardes e noites. Ah, e um indefectível pandeiro nas mãos.
Queria ser como o pandeirista Tadeu Giovani, que faz fama desfilando em escolas de samba paulistanas, como a Vai-Vai, Gaviões, Pérola Negra, Águia de Ouro e outras. Seu desejo, em suma,  era superar Raul Seixas na preferência do dono. Adorava samba. E este ritmo era suficiente para lhe arrebatar todas as tristezas. Sim, ele tinha tristezas.Toda moça que ele amava, ou gostava de forró moderno ou de funk sem qualidade.  
Amar, para Skilo, era ter paixão com elo de eternidade. Amor não precisava de tempo. Amar é ao primeiro olhar. Dois dias bastavam para firmá-lo. Como amor de espírita, vindo de reinos de prata e reconhecidos em primeira energia, ponto. Detestava o termo sem elo que era o provisório se apaixonar. Ponto. Porém seu amor tinha uma gradação. Amava mais Lilitéia que as outras.
A falha de Lili era gostar de merda musical. Seria tão bom se as garotas que ele amava gostassem de músicas de qualidade. Até o rock ele toleraria.  Assim, tolerava o gosto de Jesus, o roqueiro. Não se declarava aos companheiros, mas apreciava rock do bom, com vocalista e instrumentistas de primeira. Gostava de olhar os bateristas. Aprendera a aplaudir a banda de trash metal de nome Slayers  por causa de um sobrinho, afilhado de Jesus. Se gostasse menos de samba e mais de rock, seria baterista qual um dos ex-bateristas da Slayers, o Dave Lombardo. Todavia, o pandeirista Tadeu era o seu ídolo máximo. A maneira com que ele dominava o instrumento era como ele amava Lili.
Gostava muito de samba e, particularmente, do de raiz. Mitificava Almir Guineto, Clara-Nunes-Guerreira-da-Utopia,  Jorge Aragão, Paulinho da Viola, Leci Brandão, Elizeth Cardoso, Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz,  etc. Dos novos, gostava de Fabiana Cozza, Mariana Aydar, Teresa Cristina, Lucinha Guerra e Roberta Sá,  e adorava Criolo, enfim,  o seduziam todos que reinam no Dourado Reino do Samba Que Deixa a Alma Bamba e Mulateada.
Skilo era tão sambista quanto Jesus era roqueiro. Se Jesus possuía todos os instrumentos de rock em todos os cômodos de sua casa, Skilo tinha os cartazes dos maiores sambistas, desde Ernesto dos Santos, o Donga, colados no lado de dentro de seu guarda-roupa e nas paredes internas seu barraco de um cômodo, incluindo o banheiro.
Cocada convidou Skilo para o bar do Forgeron, pois chegara no Wotan o ex – namorado de Alexandra dos olhos de jabuticaba, e ele não ia com a cara do sujeito. 
De súbito, Skilo confidenciou a Cocada, mal sentaram no  Forgeron, ou seja, no Fogueirão's Bar, como chamava o Haroldinho.
- Vou me cegar!
Alguém que ouvia gritou. Não sei se foi o Cabeludo ou o Ricardo.
- Olha o elo aí, gente! O elo do amor nos olhos eskilosos!
Jesus, o roqueiro, gritou:
- Nego, fala mais baixo, que senão tu me queima. Loucura aqui só a minha que é roqueira e dionisíaca!
- Eu tenho de me cegar! Só cego eu serei lúcido!
Skilo tentava explicar aos de ao redor seus porquês. Atualmente, amava três. Ano passado, amara cinco mulheres ao mesmo tempo. E estava cansado disso. Ontem, percebera a quantidade de energia que essa dispersão exigia.
- Mas decidi. Meu amor maior é por Lilitéia! Quero me cegar!
- Tu cheirou pó de aspirina? - indagou o Cabeludo.
- Não, quero cheirar só a Lili. Mas tou viciado nas outras. Entende?
Nisso, chega Estela, loira de cegar o Sol, e senta em seu colo. Skilo, enfastiado, leva ela pra um canto, conversa, com sua gesticulação exagerada, e ela se vai. Ela não chora, pois não era disso. No entanto, passa na sua frente várias vezes durante aquela noite, ladeada por diferentes machos.
Cocada sorri de modo discreto do desejo do outro.
- Cegar? Neguinho, tu está precisando é de uma surra. Passa lá em casa que lhe dou uma surra de baqueta de batera.
- Tu tá me tirando?
- Daqui há pouco, tou te tirando da mesa.
- Cocadinha, você conhece algum comprimido de glaucoma?
- Puta-que-o-pariu! Tu tá me enchendo com essa história!
Cocada se levanta, pega um cigarro e vai fumar lá fora. Skilo o segue.
- Escuta, escuta, deixa eu te explicar! É que, cego, posso amar Lili em toda sua essência. Só sentiria o seu cheiro. E meu amor seria só dela. Não notaria a beleza das outras. Sacou? Penso nela envelhecendo a meu lado e eu preso em suas malhas de ser. Amaria Lili em amor eterno.
Jesus, o roqueiro, se aproxima.
- Tá filósofo demais. Que droga tu usou?
- Tu sabe que só uso samba do bom assim como tu usa o rock.
- É, o rock que fumo é dos melhores!
- Assim como os sambas que eu cheiro!
- Essa sua história com a Lili. Vou ter que te contar...
- O quê?
- Não, vou ter que te mostrar! Mas vou ter que te cegar um pouco de tempo.
- Meu irmãozinho, isso é o que mais quero.
Jesus puxou um lenço do casaco e vendou os olhos do sambista.
Pediu o carro de Alex emprestado um tempinho. Todo mundo ali estranhou o fato dele meter o Skilo vendado dentro do automóvel.
Jesus levou o apaixonado duas ruas atrás daqueles bares. Foram na direção de um carro hermeticamente fechado. Tirou a venda dos olhos de Skilo.
- Seu carro aqui? Não tá muito distante?
- Eu aluguei pra um grupo de pessoas fumar dentro. Preciso de grana pra comprar umas guitarras.
Falou ao grupo.
- Já deu tempo, moçada!
Um grupo de homens e mulheres saiu de dentro com garrafas de absinto e vodka.
O líder deles deu um tufo de dinheiro pra Jesus.
- Não te preocupa, Messiânico (Jesus não gostava desse apelido). Teu carro tá quase inteiro.
“Que não esteja pra você ver”, pensou Messiânico (que ele não nos leia, pois não gosta desse nome, diz que parece mecânico, profissão que ele detesta pois era a do seu pai, que espancava a sua mãe com uma chave de roda).
Jesus olhou, olhou. Tudo em ordem. Abriu o porta-luvas. Pegou uma carteira. De dentro, tirou uma fotinha e ia entregar pra Skilo, quando lembrou de lhe perguntar uma coisa.
- Há quanto tempo tu conhece Lilitéia?
- Dois anos, mais ou menos.
- Certo. Olha isso aí.
- Foto de homem, Rei? Que porra é essa? Por que que tu tem isso?
- Pra um dia acabar com sua alegria. E é hoje que eu acabo. Senta aqui.
Skilo sentou na poltrona do carro.
Jesus na lata lhe falou.
-Laertes até três anos atrás! Operou antes de tu conhecer como Lili.
Por que Jesus lhe contou? Se não soubesse disso, ia. Mas agora que sabia, fodeu. Todos os colegas iam ficar de gozação ainda por cima.
Voltam pro Forgeron. Skilo nota quem não lhe era especial antes dos fatos recentes: Estela. O amor irradia de seus olhos pelas coxas altaneiras dela. "Que cintura! Que rebolado! Eu quero morrer aqui!"
- Quero fazer um samba em sua homenagem!
Skilo arranja um pandeiro e extrai dele o cuspe de Deus, entre os dois bares. E a noite samba como nunca sambou.



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