As Portas da Percepção → O Mar Vermelho de Tráfego por Aldous Huxley

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Voltamos para casa. A mesa estava posta. Alguém, que ainda não estava identificado com meu ego, comeu com um apetite devorador. De longe, e sem revelar muito interesse, eu o observava.
Depois de comer, entramos no carro e saímos para um passeio. Os efeitos da mescalina já estavam se dissipando; mas as flores dos jardins ainda vibravam no limiar do sobrenatural, as pimenteiras e alfarrobeiras, ao longo das alamedas laterais, ainda pertenciam, visivelmente, a um bosque sagrado. O Éden alternava com Dodona[10], Yggdrasil[11], com a Rosa mística. Eis que, abruptamente, paramos em uma interseção, esperando nossa vez de cruzar o
Sunset Boulevard. Diante de nós, passavam os automóveis em uma torrente uniforme — milhares deles, todos brilhantes e polidos qual sonho de um anunciante, cada um deles mais ridículo que o precedente. Mais uma vez caí num riso convulsivo. Por fim, o Mar Vermelho do tráfego ficou para trás e passamos a percorrer novo oásis de árvores, gramados e rosas.
Em poucos minutos chegamos a um ponto culminante das elevações que dominam a cidade, e pudemos observá-la a espalhar-se abaixo de nós. Foi com desapontamento que constatei parecer-se ela, no momento, exatamente com a cidade que eu vira dali em outras ocasiões. Para mim, a transfiguração era inversamente proporcional à distância — quanto mais perto, mais sublimemente diferentes me pareciam as coisas. Não havia quase diferença em relação a esse vasto e confuso panorama.
Prosseguimos e, enquanto permanecemos nas elevações, fomos descortinando, uns após outros, panoramas distantes que, por essa mesma razão, não se apresentavam diferentes dos do nível normal de percepção, o qual está bem abaixo do ponto de transfiguração. O encantamento recomeçou quando descemos em direção a um bairro novo, deslizando por entre duas fileiras de casas. E, a despeito do notório mau gosto da arquitetura, houve repetição daquelas diversidades transcendentais, reflexos do paraíso entrevisto naquela manhã. Chaminés de tijolos e complicados telhados verdes brilhavam à luz do sol qual fragmentos da Nova Jerusalém. E, de súbito, vi aquilo mesmo que Guardi vira e (com que incomparável virtuosidade!) com tanta frequência soubera transportar para suas telas — uma parede de estuque atravessada por um risco de sombra; nua, porém incrivelmente bela; vazia, mas prenhe de todo o significado e todo o mistério da existência. Dentro de uma fração de segundo, mais uma vez a Revelação se esvaiu. O carro prosseguira em sua marcha e o tempo havia posto a descoberto outra manifestação da eterna Peculiaridade.
"Dentro da semelhança existe diferença. Mas não é absolutamente intenção de Buda algum que a diferença seja diversa da semelhança.
Desejam ele que haja tanto totalidade como diferenciação."


Assim, por exemplo, esta moita de gerânios brancos e rubros é inteiramente diferente daquela parede de estuque que ficou a uns cem metros para trás. Mas o existir de ambas é idêntico, é a mesma e eterna essência de sua transitoriedade.
Uma hora mais tarde, com mais quinze quilômetros de percurso e a visita ao maior drugstore do mundo lá bem para trás, voltamos para casa, já tendo eu tornado àquele estado reconfortante, embora profundamente insatisfatório, conhecido como "estar em seu juízo perfeito".

* * *

[10] Dodona - templo de um famoso oráculo de Zeus no Épiro. O Zeus de Dodona era materializado por um carvalho sagrado, cujo murmúrio da folhagem era interpretado pelo sacerdote.

[11] Yggdrasil - freixo gigante da mitologia escandinava, que simboliza o Universo.

FONTE: http://www.mortesubita.org/psico/textos-de-psicologia-bizarra/portas-da-percepcao/o-mar-vermelho-de-trafego

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