DISTORÇÕES NO ESPELHO-COVA

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O coveiro, conhecido pelo apelido de Banguela, acordava geralmente bem tarde para que durante a madrugada tivesse bastante energia para seu trabalho secreto.
À uma e pouco, ia do Cemitério da Vila Elizabeth até aquela chácara abandonada, que ficava bem longe do mesmo, onde havia uma grande piscina.
A velha Juciléia lhe pagava por cada viagem que ele fazia.
Um dia, em seu terceiro transporte, quase fora descoberto. 
O cachorro do Zebedeu tinha se soltado e danou a seguí-lo, latindo bem alto. Sorte que o Zumbi, assim chamavam o filho da velha, se livrou dele. Claro que perdeu duas orelhas e um pedaço do braço nessa empreitada.
Banguela não, Estevão é o meu nome, costumava responder aos que insistiam em gritar bem alto seu apelido.
Ele marcava, não esquecia o rosto dos que lhe zombavam. Porque sempre que lhe chamavam pelo apelido, lhe chasqueavam. Costumava, em vingança, mexer nos túmulos dos parentes dos zombeteiros e tirar pedaços de orelha, nariz, mamilos, ou outras coisas quase impublicáveis. Todas essas partes ele colocava em envelopes para enviar um dia ao endereço dos e das idiotas.
Em determinada madrugada, em que umas dezenas de pessoas ainda estavam nas ruas, após louvarem Iemanjá, o Fuinha Preguiça, filho da Dona Engrácia dos Salgados, o seguiu. Empurrando um carrinho de mão com algum objeto enrolado, Estevão Banguela seguia, respirando com dificuldade, parando vez em quando, para limpar o suor da testa ou tirar a água dos joelhos.
Fuinha não sentia no físico as torturas da distância, era um touro de saúde, forte, rápido, um verdadeiro atleta, jogava futebol no time da cidade, participava das maratonas anuais, tinha uma resistência inigualável.
Depois de umas três horas, Banguela chegou à chácara, que ficava do outro lado da cidade. Na entrada da chácara, havia uma piscina, na beira da qual o coveiro parou. Quando apoiou o carrinho, o objeto enrolado caiu e Fuinha viu, estarrecido, o que estava escondido. Ficou de cabelos em pé. Ou de pé nos cabelos.
Era a cabeça de Dona Jurema que ele viu. Ela morrera há uns três dias, por motivos ignorados. Ultimamente, na cidade estava havendo muita morte inexplicável.
Banguela desembrulhou o corpo da mulher um pouco mais e no centro da piscina fez-se um rodamoinho como na história de Ulisses, o grego esperto, do qual nenhum dos dois ouvira falar.
Jurema foi sugada até o centro da piscina como a gente suga o que restou num copo de suco, geralmente com grande intensidade de sucção.
Mal Fuinha se virou, uma pancada atingiu-lhe o quengo, vinda de uma mulher com asas na boca. Quando acordou do desmaio, estava na beira da piscina, transformado num porco. Ao seu lado, Zumbi salivava, pois, adorava carne de suíno.
A piscina ficou cada vez mais vermelha do sangue das inúmeras vítimas trazidas e um grande espelho veio à superfície. Nele viam-se imagens distorcidas pela água e pelo sangue.
Apareceram então, disfarçados com capuzes, surgidos do entorno, vários políticos e endinheirados da região.
A velha Juciléia, que estava com uma asa de frango na boca, cuspiu-a no jardim próximo e começou a, com base nas figuras que surdiam no espelho, desfiar suas previsões, que poderiam ou não favorecer o caminho dos que estavam ali presentes.....menos do porco.

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