segunda-feira, 13 de agosto de 2012

TIROMANCIA - POR KACH LOUDOME

I


Wellington acordou assustado, sem fôlego... Que pesadelo terrível! Sonhara ser um rato, animálculo horrendo, sem sentimentos, sem sonhos, sem futuro...

N


Se todos os criminosos fossem guilhotinados, a totalidade da movimentação cíclica progressiva dos segundos estaria preenchida por lâminas seguindo a inércia de encontro aos pescoços dos elementos.

Como detalhe inseparável e monótono do caso, todos os dias seriam tomados pelo vai-e-vem indiscriminado dos responsáveis, que cuidariam de todos os trâmites cabíveis e obrigatórios à situação, como o transporte dos condenados até o local da matança, e a limpeza do ambiente.

Mesmo assim, sabendo que onde há um murídeo, certamente outro se esconde, e que teria que comprar, armar, dispor a isca e retirar o cadáver da armadilha, Wellington resolveu comprar uma ratoeira.

Quando pôs o objeto na mão teve certeza de que se tratava de um artigo de quinta categoria, feito por um artesão em condições precárias de confecção, visto a má qualidade da base e a envergadura do metal, que além do mais estava enferrujado, denunciando a utilização em larga escala que ele já sofrera.

Raramente pode-se ver tal roedor durante o dia. Parece que ele descansa sob o solo e espera o apagar das luzes para admitir sua existência, como se sua vida fosse um erro, uma ilegalidade passível de pena de morte (de fato era), uma imoralidade condenável. É tão abjeto que deve viver sem que ninguém saiba, sem que as demais espécies tomem conhecimento de sua vida. É necessário que roa qualquer tipo de material e que se alimente, sendo a procriação a prova maior de que é um animal, e que compõe a biosfera bem como os outros, e que em nada se assemelha com um monstro, mutação ordinária, excluso da hipótese singenesista.

O povo ao qual Wellington pertencia não lhe comia as carnes, não utilizava seu couro nem seu pelo, tampouco seu grande apêndice posterior. A criação por estimação era incabível; além do mais, o animálculo é um veículo transmissor de grave doença. Se ao menos protegesse a casa dos ataques de ladrões e rolasse e sentasse conforme as ordens de alguém, ficaria vivo, mas sequer admitia ter um dono. Roubava comida, pois não sabia ficar com semblante de miserável, balançando o rabo, implorando desesperadamente por qualquer tipo de alimento.

Por esses motivos convincentes, sem margem para qualquer adição complementar, iria morrer – o rato – com o pescoço quebrado sob a pressão do objeto metálico.

II


Dificilmente a ratoeira poderia ser pior: Era torta, coberta por ferrugem, velha e custara valor acima da média. Mas era a única, e contra a inflação nada se podia fazer. Se insistisse em discutir o preço ou se recusasse a adquiri-la, iria assistir outro cavalheiro se apropriar de tamanho artigo, e ir-se-ia embora de mãos vazias, esperando que o pequeno mamífero crescesse até portar tamanho suficiente para atirá-lo pela janela. Mas Wellington tomara decisão acertada: Pagara o valor inicial cobrado pelo pilantra, e a levou para casa, coberto por uma folha de jornal que trazia informações sobre qualquer coisa irrelevante.

Outra particularidade da armadilha – talvez a pior delas – deve ser mencionada, não para macular definitivamente o material, e sim para justificar a vergonha que o proprietário passara nos primeiros dias: A cilada era infinitamente instável, sendo assim, só poderia ser armada de duas maneiras, sendo a primeira forma o modo seguro, tão firme que não só o rato, mas até mesmo um cão poderia comer o queijo sem que o gatilho fosse disparado; ou, em contrapartida, tão mal apoiada que ao soltar o dedo do material, o próprio acionava o dispositivo e o mesmo dedo tomava o imenso golpe velocíssimo da armadilha. Desse modo, a simples missão de armar um estratagema contra um ser irracional se tornou um grande teste de paciência e habilidade.

A primeira noite fora vergonhosa: Wellington armou o artifício e saiu de casa para evitar sua presença no momento da morte do rato. Ele acreditava que, após montar a estrutura, permanecer lá, escondido, fingindo ausência para não assustar o alvo, e assistir por trás dos panos os derradeiros suspiros do murídeo não poderia ser nada se não um assassínio!

Paradoxalmente, agir da maneira que agiu, omitindo-se da cena, escapando da visão do ato, configurava acidente, infeliz revés do animal; nada mais do que isso.

Wellington demorou em voltar, com o real intuito de escapar do crime de homicídio, do flagrante delito e mesmo do testemunho do fato. Após secar duas garrafas de bebidas pouco alcoólicas, e de roer diversas porções de saborosas gorduras, ele retornou para casa, e adentrou vagarosamente, ansioso, procurando a ratoeira que, obrigatoriamente, deveria carregar o corpo do cadáver.

N


Se você estivesse lá para acompanhar a postura de Wellington, veria que ele passou o dia inteiro em casa e só saiu quando escureceu, andou pelas ruas, acionou os dentes contra manifestações orgânicas, excretou urina no canto de um muro após beber em demasia, sujou-se de lama ao atravessar uma viela, emitiu sons ininteligíveis, e logo depois voltou para seu esconderijo. O que tens a dizer sobre isso?

III


Quando lançou o olhar contra a ratoeira, Wellington enfureceu-se: Esta estava armada, bem como ele deixara, mas o queijo, tal elemento protéico de forte aroma não estava mais lá, fora roubado pelo rato, animálculo malandro, cheio de artimanhas, que soube usar magnificamente de sua sutileza para furtar a isca com maestria, e devorá-la toda, deixando a ratoeira imóvel, idiota, na mesmíssima posição, como se nem percebesse que havia sido tão vergonhosamente ludibriada.

O homem arrancou um de seus sapatos e o atirou contra aquela guilhotina incompetente, fazendo-a se desmontar com ímpeto, provocando forte e breve barulho.

– Dessa vez eu o pego! Montarei novamente essa parafernália e ficarei aqui, assistindo a flebotomia desse fanfarrão! – Bradou Wellington.

Com nojo de tocar na superfície onde o roedor entrara em contato, Wellington vestiu luvas improvisadas e, após meia hora sendo surrado pela ratoeira, com dois dedos machucados, a armadilha estava perfeita – um grão de areia seria suficiente para desmontá-la com violência.

Após árduo serviço ele deitou-se na cama, escondido sob os lençóis, com seus dois grandes olhos a postos, nervosos, esperando o larápio, a asquerosa animalidade que o trapaceou, e que, sem sombra de dúvidas, deveria de ter rido do ardil ineficiente, após tê-lo humilhado da pior maneira possível, o julgado absenteísta e, com efeito, tecnicamente, tendo provado tal juízo.

IV


Como um atirador de elite – foi assim que Wellington se sentiu enquanto aguardava o murídeo, escondido, camuflado sob os tecidos, esperando o momento certo do disparo; mas o animalejo estava demorando demais... O estômago cheio certamente o acalmara! Evidentemente! Após devorar suculenta porção de caseína fermentada a despreocupação o submeteu! Estava agora passeando, em seu mundo mal cheiroso, divertindo-se de seu modo repulsivo, vangloriando-se de sua esperteza! Mas voltaria... A fome e a necessidade de roer eram incessantes. Logo entraria na casa, (sabe-se lá por onde) guiado pela fragrância do engodo e, dessa vez, teria seu pescoço quebrado. A peça que apenas machucava os dedos de Wellington tiraria a vida daquele infeliz. Essa era a diferença entre ambos, o grande ponto divergente que fazia o homem superior ao rato: O primeiro podia matar o segundo, poderia investir contra ele de súbito ou na covardia, e encerrar-lhe a existência, mandando-o para um lugar mais compatível com sua pequenez.

Os minutos se passaram, logo as horas também se foram... O murino apareceria a qualquer momento; quando menos se esperasse ele estaria ali, ágil, cheirando o queijo, e quando fosse pegá-lo, a surpresa! Tão rápido que nem lhe possibilitaria a chance de perceber que fora morto, atraído por alimento, dessa forma tão desumana e desleal.

A comida e a bebida em demasia cansavam o corpo de Wellington. O sono viera, inevitável, duas horas e trinta minutos após o momento que seu corpo fora posicionado sobre a cama. Seus olhos – claros denunciadores do cansaço – queriam se fechar, tirando-lhe a consciência, levando-o imediatamente para o fantástico mundo dos sonhos.

– Fecharei os olhos, mas os abrirei constantemente; em evidente estado de alerta mental acompanharei os mínimos rumores. – Fez Wellington, confessando e admitindo sua inferioridade em relação à fatalidade biológica.

Enfim, cinco minutos após declarar a frase, o homem estava dormindo, estirado sobre a armação de madeira, tão inocentemente, que nem parecia que esperara várias horas para assistir uma cena mortífera.

V


Era um cano espesso, sujo e escorregadio. Wellington mal conseguia percorrer todo o seu formato retilíneo. Era escuro também, e a luz em seu fim não era visível, fazendo com que a viagem se tornasse, a cada passo na escuridão, ainda mais interminável. Por fim, ajudado pelo impulso de suas diminutas patas, chegou à luz, ao contato da vida, da civilização, num quintal amplo, cheio de entulhos – esconderijos naturais – onde ele podia camuflar sua anatomia rasteira. A fome era imensa, há dias não roia algo considerável. O cheiro era evidente, forte, vinha na direção de suas poderosas narinas. Lá dentro da casa, da fortificação desconhecida, por trás da porta colossal estava o queijo, chamando-o, esperando-o, intacto.

Wellington correu o mais rápido que pôde, embora cautelosamente, e espremeu-se com habilidade, conseguindo, no fim da empresa, se posicionar no interior daquele covil macrossômico, repleto de obstáculos, itens estranhos, talvez inúteis, onde repousava o queijo, a poucos metros do buraco que facilitara sua entrada. Wellington moveu-se estranhamente, para lá e para cá, cheirou objetos e captou odores desconhecidos ao próprio dono dos materiais. O alimento-mor, agora muito próximo, expelia fortíssimo aroma, agradabilíssimo, impossível de ser recusado. Avançou sobre este, cheirou-o ainda mais de perto, então, ergueu-se para pegá-lo... A grande surpresa: Forte golpe o submeteu, bem no pescoço, fazendo-o perder os sentidos imediatamente. O queijo? Voara, por conta do impacto, indo parar bem na frente da porta.

N


O desmaio rendeu alguns segundos. Wellington acordara sentindo forte dor. Sua vida ia embora, vagarosamente; era o fim... A necessidade de viver o matara; sua inocência frente ao carrasco cruel fora a causa de seu revés irreversível. Ele via o queijo, estático, abiótico, que nada podia fazer para ajudá-lo. Iria morrer olhando para o que lhe atraíra à forca, para aquela generosa porção suculenta... Tudo estava ficando escuro, quando, do mesmo buraco que o levara até ali, surgiu um rato, asqueroso, maior do que Wellington.

– Uma ratoeira! Que horrendo artifício! Eu mesmo já fui alvo de uma arma como esta... Irei salvá-lo! És mais jovem do que eu, não podes morrer dessa forma, tão cruel; não seria justo vê-lo morrer assim, traído por sua própria imaturidade... De agora em diante jamais chegue perto de uma destas, caso contrário, terás sua existência imediatamente interrompida – Disse o rato.

Enquanto falava, o rato movimentava-se na direção da ratoeira e, não tendo anatomia propícia para erguer o metal e arrancar Wellington de lá, rastejou-se e pôs seu próprio pescoço embaixo da forca, fazendo pressão para cima, ao mesmo tempo que empurrava o corpo de Wellington para fora do ardil; desse modo, após o processo, Wellington estava salvo – mesmo que gravemente ferido – e o rato ficara preso, esperando a hora da morte, que viria, em pouco tempo, em decorrência de iminente asfixia.

N


Era, sem sombra de dúvidas, um belo exemplar de mamífero. Bastante sadio, sem apresentar qualquer indício de ataxia, movimentava-se sem qualquer chance para pausa, como se vivesse em ambiente silvícola, no qual, se alguma exceção para a lentidão se abrir, vê-se, o corpo, fúnebre componente da cruel cadeia alimentar. Exatamente esse fator – sua rapidez – gerava uma observação contundente: Será que esses animais possuem sabedoria a respeito da limitadíssima duração de suas vidas, e por isso se apressam para executar todas as tarefas que lhe são preciosas, da maneira mais rápida possível?

VI


Wellington acordou assustado, sem fôlego... O rato estava lá, em seu lugar, preso na ratoeira; havia sacrificado sua própria vida para salvá-lo! O homem precisava fazer alguma coisa... Ele correu, tropeçando em seus próprios lençóis, e arrancou o rato da armadilha. Tentou reanimá-lo... Tarde demais! Estava morto, em suas mãos, e o queijo voara, por conta do impacto, indo parar bem na frente da porta.



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