GRITOS E SUSSURROS

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Naufragar é preciso
[Nota crítica originalmente escrita para jornal e publicada em 2 de novembro de 1974]

Relembremos o que nos conta Adolfo Bioy Casares em A invenção de Morel, história de um invento capaz de registrar imagens em terceira dimensão e de projetá-las ao ar livre, de dia ou de noite, sem a ajuda de uma tela ou de alto-falantes. O invento é encontrado muitos anos depois por um náufrago que chega casualmente à ilha onde Morel reunira amigos para experimentar o invento.

Falo da história de Bioy Casares, mas o que de fato está na memória são as imagens do filme que o italiano Emidio Grieco tirou dela. Não importa que A invenção de Morel tenha sido originalmente organizada como um texto para ser lido. Ele é de fato uma coisa para ser vista, coisa escrita para cinema, para o tempo do cinema: parece roteiro de filme ou relato do espectador de um filme imaginário ou de um filme que só esse espectador que escreve viu. Está no papel, que nem um livro, mas fala só de imagens, de cinema.

Na história de Bioy Casares a autenticidade das imagens da invenção de Morel conquistam o náufrago, que se apaixona por elas e passa a vivê-las assim como um fã de cinema vive as cenas de um filme.

Enquanto a gente vê um filme, durante a projeção, passa-se algo semelhante ao que ocorre com o náufrago que descobre a invenção de Morel: apaixonado pelas imagens de Morel, ele decide ligar a máquina e transportar-se para o mundo das imagens.

Naquele espaço de tempo em que, na plateia de um cinema, vemos a projeção de um filme, quase sempre nos comportamos como o náufrago de A invenção de Morel. Entramos no filme. O conhecimento do mecanismo usado para criar a ilusão de realidade não diminui o envolvimento. A repetição dos mesmos gestos a cada nova visão do filme não diminui o envolvimento. Voltamos a entrar no filme. É uma reação comum e desejada. O espectador não é propriamente uma vitima indefesa do poder do filme.

Como o náufrago que decide entrar na máquina de Morel, o espectador de cinema decide, mais ou menos conscientemente, se deixar levar pela realidade imaginada na tela. Como o náufrago que aciona a máquina de Morel, o espectador comanda o projetor que parece comandá-lo.

Esta atitude comum aos espectadores de cinema é uma das principais características do método de trabalho de pelo menos um diretor de cinema, Ingmar Bergman. Para fazer um novo filme ele entra num filme que já fez. De filme para filme retoma os problemas e imagens (rostos pela metade, o sofrimento e a humilhação do doente imobilizado na cama), os intérpretes e os personagens: David, Karin, Ana, Agnes e Maria, as pessoas de Gritos e sussurros (Viskningar och rop, 1972), fazem parte de uma família que se completa com Elizabeth, Alma, Johan, Eva, os Erneman, os Winkelman e os Vogler, parte de uma mesma família ou pelo menos de uma mesma comunidade, de um mesmo grupo que se desespera naquele minuto que parece interminável.

Minuto em que "a noite se transforma em aurora e em que aquele que não dorme é atormentado pela mais profunda angústia". Parte de um mesmo grupo à procura do conhecimento, como o define o cavaleiro de O sétimo selo (Det sjunde inseglet, 1957), Antonius Block: "nem fé nem suposições, mas o conhecimento".

Tal como o náufrago de Casares salta para dentro das imagens de Morel, Bergman mergulha no mundo de seus filmes anteriores como um náufrago – reexamina um personagem, retoma em profundidade um problema anteriormente apenas enunciado.

Procuremos seguir, pelo menos em parte, o exemplo destes náufragos para examinar Gritos e sussurros. Mergulhemos num trecho do filme para tentar, numa análise mais detalhada, identificar o processo de construção geral.

[Escrito originalmente para jornal, publicado na semana de lançamento comercial de Gritos e sussurros no Rio de Janeiro, o texto contou, aqui, com uma nota que se referia à forma de redigir críticas que adotava então. Para não adiantar detalhes da história e assim garantir ao leitor relação viva, de real descobrimento, como o filme se encontrava em exibição, concentrava a análise em uma ou duas cenas para tentar por meio delas discutir o filme como um todo sem revelar maiores detalhes da composição. Por isso anotei neste trecho: "Bem sei que o leitor que de quando bate os olhos no que escrevo deverá estar dizendo com seus botões que é exatamente isto o que costumo fazer com tudo quanto é filme, isolar uma cena e tentar identificar na parte os sinais do todo. É verdade. Faço aqui um pouco como Bergman, que repete sua forma de composição de filme pra filme".

Ao retomar o texto agora talvez caiba uma outra observação: no momento em que ele foi escrito só era mesmo possível ver cinema nos cinemas, não contávamos com cópias em vídeos ou dvd para rever os filmes em casa; para retomar e pensar o cinema, só as anotações feitas depois da projeção, enquanto o filme continuava aceso na memória. Deste modo, já que hoje é possível montar uma filmoteca e levar o filme para casa, ou ilustrar a descrição com a reprodução de fotogramas, a descrição a seguir parece ainda mais pálida, incapaz até de minimamente reconstituir a cena que pode ser consultada sem dificuldades; ela se mantém apenas como expressão do prazer experimentado diante da excelência da composição.]

Tomemos, então, uma cena como exemplo: o trecho em que o padre vem rezar ao lado do corpo de Agnes. A imagem começa no detalhe de duas velas, uma delas é acesa na chama da outra. A câmera recua e vemos duas mulheres vestidas de preto em torno do leito de Agnes. Uma ajeita a roupa da morta, a outra caminha em torno da cama para colocar a vela que acabara de acender do outro lado. Ajeitada a roupa, colocadas as velas, as duas se encontram ao pé do leito, curvam-se numa reverência, abrem a porta do quarto e se colocam ao lado dos portais. Pela porta aberta vemos, sentadas no salão vizinho, o padre, Maria, Ana e Karin. Com o padre à frente, os quatro se encaminham para o quarto. O padre pára um instante na porta, olha em torno e sai da imagem pelo canto direito. Em quadro permanecem as duas irmãs e a empregada de Agnes. Toda esta ação é descrita num único plano. A câmera se coloca ao lado da cabeceira da cama e faz um movimento: aproxima-se um pouco da porta, ajusta o campo visual da lente zoom, tira de quadro as mulheres na porta para ver mais de perto os personagens que caminham da sala ao lado para o quarto onde se encontra o corpo de Agnes - ou seja, na direção em que se encontra a câmera. O primeiro corte, a primeira mudança no ponto de vista da câmera, ocorre quando o padre começa a falar. Sua voz surge sobre a imagem da bíblia em suas mãos. O plano começa aí e lentamente se desloca para o rosto do padre, e daí para os rostos de Maria, Ana e Karin; a câmera se detém por um instante sobre cada um deles, e tais paradas funcionam como uma espécie de pontuação, pausas visuais no texto do padre. O padre fala como se estivesse se dirigindo à morta:
“Deus nosso pai em sua santa sabedoria chamou você até sua presença ainda na flor da juventude, mas antes disto julgou-a digna de suportar um longo e pesado sofrimento. Você se submeteu pacientemente e sem lamentos, na certeza de que seus pecados seriam perdoados pela morte de Jesus Cristo na cruz. Que nosso pai no céu tenha piedade de sua alma, logo que ela se apresente diante dele. Que os seus anjos afastem de você as memórias dos sofrimentos na terra.”

Depois desta última frase, que ouvimos enquanto a câmera está sobre o rosto de Ana, a câmera muda outra vez de ponto de vista. Novo corte na imagem. Voltamos ao rosto do padre, que olha fixo para o espectador sem nada dizer e assim permanece algum tempo. Parado. Firme. Ainda sem nada dizer ele caminha para a esquerda, seguido pela câmera. No meio do movimento, novo corte. Nova mudança do ponto de vista. O quadro se torna mais aberto. O espectador passa a ver a cena por trás da cama. Na parte inferior o corpo de Agnes e no centro da tela, de pé, diante da janela, cercado da luz que atravessa a vidraça e o tecido fino da cortina, o padre. Ele se ajoelha, e no meio do movimento um novo corte. A câmera se desvia para ver Karin, Maria e Ana ajoelhando-se também. O plano dura pouco tempo na tela. Um outro corte nos coloca de novo diante do rosto do padre, com a claridade da janela ao fundo – e a oração recomeça.

Estas ações funcionam, na realidade, como um intervalo. Como um ponto no final da frase. Como o espaço em branco entre a última linha de um parágrafo e a primeira do parágrafo seguinte. Como um espaço vazio cheio de tensão. A comparação com o ponto final ou com o claro que separa um parágrafo do outro talvez nem seja exata. É verdade que os personagens aí não falam nada, fazem gestos mais ou menos banais. É verdade que as imagens que registram tais gestos passam na tela em silêncio. É verdade que tudo parece mesmo em branco. Mas o que os intérpretes dizem nestes momentos através da expressão de seus rostos e de seus corpos transforma estes gestos quase vazios em qualquer coisa cheia de tensão. Não se trata, portanto, propriamente de uma pausa, mas sim de uma repetição do tom amargo da primeira parte da oração e uma preparação para o tom desesperado e agressivo da segunda parte da fala do padre para a morta:
“Se por acaso você tiver reunido todas as nossas dores em seu pobre corpo, se tiver levado nossas dores em sua morte, se encontrar Deus lá em cima, neste outro reino, e se ele se dignar a voltar o rosto em sua direção, se você conseguir falar numa linguagem que ele compreenda, se por acaso conseguir realmente falar a este Deus, então reze por nós. Agnes, minha querida menina, escute agora o que lhe digo: Reze por nós que permanecemos nesta terra sombria e suja, debaixo de um céu vazio e cruel. Coloque seu fardo de dor aos pés de Deus e peça que ele nos conceda o seu perdão. Peça-lhe para nos livrar da ansiedade, do desânimo e da dúvida profunda em que nos encontramos. Peça-lhe para dar um sentido a nossas vidas. Agnes, você que sofreu tanto e por tão longo tempo, deve ser digna de interceder em nosso favor.”

Mais um corte, e temos o quarto filmado agora do ponto de vista da porta, com a câmera num ângulo ligeiramente superior ao de uma pessoa de pé. Na tela aparecem as duas mulheres ainda ao lado dos portais, Karin, Ana, Maria e o padre, todos vestidos de preto, e a cama clara, com o corpo de Agnes vestido de branco. Por trás dos personagens um pedaço da parede vermelha, um vermelho frio, meio coberto de cinza, e um pouco da janela. O padre, já de pé, diz uma outra frase, dirigindo-se agora às irmãs e à empregada de Agnes, num outro tom de voz: “Fui eu que a crismei.” A câmera muda uma outra vez de ponto de vista, aproxima-se do padre, que aparece na tela filmado da cintura para cima. E ele então conclui:
“Nós tínhamos longas e profundas conversas, e sua fé era mais forte que a minha.”

Não é certamente o trecho mais bonito do filme. Se necessário fosse destacar uma cena por sua especial beleza, a escolha seguramente iria recair num pedaço da cena anterior, a agonia e morte de Agnes, ação filmada num único plano: o espectador começa a ver esta ação como se estivesse aos pés do leito da mulher que está morrendo, e fica aí até o final. A câmera se limita a fazer ligeiros movimentos de zoom, para concentrar a atenção do olhar num determinado ponto, e pequenas correções de foco, para registrar a expressão de dor de Agnes, a nervosa tentativa de ajuda de Ana, o desespero de Maria, que cobre o rosto com as mãos sem saber o que fazer, e a solícita presença de Karin, que traz uma pequena bacia de louça à espera do vômito. O movimento dos personagens dentro do quadro é intenso e nervoso. Já a câmera, apesar de presente e atenta, se movimenta discretamente, e o espectador por certo nem sente a sua presença. Tudo parece muito simples. Tudo coloca o espectador dentro da ação. A ilusão de estar ali, vendo a cena com os próprios olhos, é perfeita, tão perfeita quanto a ilusão vinda das imagens tridimensionais que o invento de Morel projetava no ar, sem precisar de tela, projetor, ou sala escura.

Talvez nem se trate, também, do trecho mais expressivo do filme. Se alguma cena pode ser apontada como o momento chave de Gritos e sussurros, como o instante que dá ao espectador a correta dimensão do filme, esta é a da leitura do diário de Agnes. É um dos poucos momentos em que o filme sai do interior da casa, para abrir o campo de visão, para permitir um reexame do sofrimento de Agnes e de suas irmãs.

Mas a oração do padre, se não é a cena mais bonita nem a mais expressiva, é particularmente importante: convém observar o filme a partir daí, do padre que reza ao lado do corpo de Agnes, porque as palavras do personagem parecem uma tradução direta do sentimento comum não só a todos estes personagens mas, num sentido mais amplo, comum aos personagens que formam a família cinematográfica de Bergman. O padre nesta cena fala como se fosse, se não o próprio realizador, pelo menos o narrador criado pelo realizador como o intermediário ideal para contar esta história.

Parte deste sentimento passa logo numa primeira leitura do texto, numa leitura até não dramatizada, como a que podemos fazer aqui, relendo o monólogo anotado no papel: viver não tem sentido; viver é suportar um longo e pesado sofrimento; vivemos num espaço sombrio e sujo, debaixo de um céu vazio e cruel; não sabemos como nos livrar da ansiedade, do desânimo e da dúvida. Estas ideias aparecem logo à primeira vista. Mas o significado real do texto aparece apenas quando ele é apanhado pelo espectador dentro do especial arranjo formal em que se encontra, marcado pela expressão dos atores e pelo tom geral da imagem.

O cenário em que se passa a cena da oração do padre é aquele mesmo que o espectador se habituou a ver desde o começo do filme, o quarto de Agnes. Quer dizer, é e ao mesmo tempo não é o mesmo. Os móveis, os quadros e enfeites foram todos retirados do quarto. Em cena ficam apenas os atores, o vermelho das paredes, o branco da cama e da janela, o preto das roupas. A primeira parte do texto aparece sobre o rosto dos intérpretes colocados sobre o vermelho liso e neutro das paredes e iluminados por uma luz quase sombria. A imagem se desloca lenta de um rosto para o outro, e o movimento é usado para pontuar as frases.

Depois do primeiro trecho da oração, voltamos ao rosto do padre num instante de silêncio quebrado apenas pelo leve sussurro da sineta de um relógio de mesa, que não aparece na imagem. A pausa segue até o instante em que o padre se ajoelha, e a partir de então a segunda parte da oração se faz ouvir, com o personagem colocado sobre um fundo de luz intensa e branca. O contraste é mais forte. Muda a luz e muda o jeito de falar. O ator recita seu texto com um ligeiro tique no canto da boca, um meio-termo entre um sorriso de ironia e um quase choro de raiva e sofrimento. E a câmera não abandona o rosto do padre, não sai para passear pelo rosto de Karin, de Ana e de Maria. O espectador permanece todo o tempo diante deste homem que o encara desesperado e dá uma outra dimensão ao sofrimento de Agnes.

O espectador, que já viu a agonia e morte da mulher, vê agora o desespero do padre, e não pode fazer como Maria, que para não presenciar o sofrimento da irmã, cobre o rosto com as mãos, fecha os olhos. Aqui a câmera fica lá, não sai do lugar. Desviar os olhos não é permitido. E a dor que se vê aqui é maior. Não é simplesmente uma dor física, não é a dor que vem de uma doença sem cura. Não é sequer qualquer doença, é a própria vida. Viver dói. Estar vivo é sentir dor e sofrimento. A vida inteira é uma prolongada agonia, é carregar uma culpa, pagar um crime desconhecido e sem perdão. O padre não reza para consolar a dor dos parentes ou encaminhar a alma de Agnes a Deus. Vem falar do sofrimento de todos e pedir a Agnes morta que interceda em favor dos vivos, se conseguir por acaso descobrir uma linguagem compreensível por Deus. O texto em si mesmo, tal como pode ser visto aqui, talvez nem pareça tão amargo e agressivo assim. Esta sensação vem muito mais da maneira de dizer do que das coisas que se dizem. Vem muito mais do envolvimento do espectador com a imagem. Não é bem uma coisa para entender, mas uma coisa para sentir.

No roteiro original a cena prossegue com uma conversa entre Maria e o padre, posteriormente abandonada. Ela acompanha o padre até a porta e insiste que ele a perdoe por todos os pecados cometidos; que a perdoe logo, ali mesmo. O padre hesita um pouco e finalmente responde que não pode perdoar nada, que só ela mesma poderia se perdoar.

Ainda uma vez o padre parece falar pelo narrador/diretor. O que Bergman habitualmente solicita/exige de seus personagens é exatamente isto, o conhecimento de sua condição e de seus limites. O conhecimento, nem fé nem suposições, como diz o cavaleiro Antonius Block, mas o conhecimento. O conhecimento de que a vida é como uma dor de dente na alma, ou como um desesperado esforço para não se afogar numa cusparada. O conhecimento de que esta dor e desespero cada um de nós tem de suportar sozinho, como um náufrago no oceano. É coisa difícil de expressar, é coisa impossível de dividir com outro.

Gritos e sussurros é uma nova visita a este universo desencantado. Aí encontramos de novo os personagens de sempre e o mecanismo de sempre: a ação é pouca e principalmente reflexiva; os personagens são apanhados num momento em que se dão conta da extensão do sofrimento humano e começam a pensar em voz alta. Ou a pensar e não falar de todo. Ou a pensar e falar numa linguagem incompreensível. Às vezes eles conversam entre si. Às vezes falam para a câmera, como se ela fosse um personagem invisível, ou um espelho. Às vezes se agridem, com palavras ou com pequenos atos. Tudo é igual e ao mesmo tempo não é igual, porque de filme para filme Bergman depura seu estilo de narração. Faz assim como fez com o cenário do quarto de Agnes para filmar a oração do padre: retira os enfeites, retira os sinais habitualmente usados para dar à imagem uma atmosfera natural.

Mas a descrição do sofrimento de Agnes e da angústia de suas irmãs e da empregada e amiga, interessam não como a reconstituição da dor de uma possível família de verdade diante do desespero da doença e da morte. Os personagens são feitos à imagem e semelhança de gente de verdade, mas não são gente de verdade. São imagens. São reflexos. Pertencem a um mundo especial, se movem dentro de convenções particulares, dentro de um universo paralelo, feito de imagens e sons em movimentos.

Por uma questão de hábito, talvez, por uma formação basicamente humanista que nos é comum, talvez, pelo sentimento generalizado de que o cinema envolve o espectador pela ilusão de realidade de suas imagens, talvez, por qualquer uma destas coisas, a gente tende a imaginar que quando um filme atinge mais forte a sensibilidade das pessoas isto acontece porque ele parece coisa viva de verdade. Parece real. Mas com relação a Gritos e sussurros – e aos últimos filmes de Bergman de um modo geral – parece acontecer uma outra coisa. O envolvimento vem (exageremos um pouco) de um tom abstrato. Ou surrealista. Os gestos e as palavras dos personagens parecem reais. Liv Ullmann, Anders Ek, Harriet Andersson, Max von Sydow, Erland Josephon, agem como atores realistas. Compõem seus personagens com detalhes que parecem resultado de uma preocupação fotográfica. Trabalham como se quisessem imitar com perfeição uma qualquer pessoa viva e conhecida. No contexto do filme, no entanto, na imagem, no jeito de fotografar, na textura a imagem, este aparente realismo se transfigura.

Na família que sofre em Gritos e sussurros o que a gente vê não é bem uma família, mas uma representação, alegórica, fantástica, como aquela de O sétimo selo, onde o cavaleiro Antonius Block joga xadrez com a morte. E uma das ideias de base do filme de agora parece exatamente vir, em particular, de um diálogo entre o cavaleiro e a morte, daquele realizado quinze anos antes:
“A vida – diz Antonius Block – é só horror e humilhação. Ninguém pode viver em face da morte sabendo que tudo é sem sentido”.

“A maior parte das pessoas – responde a morte – jamais pensa a respeito da morte ou da futilidade da vida”.

“Mas um dia – continua o cavaleiro – quando nos encontramos diante do último momento da vida, temos de ficar de pé e olhar para esta escuridão”.

A história de Gritos e sussurros tem exatamente esta intenção: confrontar as pessoas com “o horror e a humilhação da vida” – coisa tão sem sentido quanto um jogo de xadrez com a morte, tão sem sentido quanto um jogo em que não podemos nada além de adiar a derrota. A história de Gritos e sussurros pretende realizar um confronto semelhante àquele proposto pelo pintor de O sétimo selo:
“Por que pintar coisas aparentemente sem sentido? Serve para ajudar as pessoas a pensar que irão morrer. Não é de todo má ideia assustar alguém de quando em quando. Assustadas as pessoas pensam. E quando pensam ficam um pouco mais assustadas”.

Para compreender melhor o que Bergman vem procurando dizer em seus filmes, a cena da oração do padre em Gritos e sussurros é um bom começo. Pelo significado dos gestos filmados, pelo significado da maneira de filmar. Se o espectador se concentra no que os personagens fazem dentro do cenário, recebe apenas a impressão de que o narrador fala de sua desesperança absoluta, de um beco sem saída. Se o espectador percebe também a imagem que torna visível a ação dos personagens, percebe um outro sentimento que vai além do sofrimento de Agnes, de Karin, de Maria, de Ana e do padre. Percebe o narrador por trás da situação narrada, percebe que ele, como o pintor de O sétimo selo, procura assustar as pessoas para que elas pensem – como Agnes anota em seu diário – que viver vale a pena mesmo que se consiga viver de verdade pouco mais que um instante num jardim, num balanço, numa tarde de sol.

Fonte: Escrever Cinema

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