“Loucura, mulher e representação: fronteiras da linguagem em Maura Lopes Cançado e Stela do Patrocínio”

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Como era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo. Não aparecia de frente e de corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando na calma. Só o busto, recortado numa das janelas da frente, as mãos magras, ameaçando. Os cabelos, brancos e desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos, pragas, numa voz rouca. Eram palavras da Bíblia misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos fortíssimos na sua cólera.
Carlos Drummond de Andrade

Introdução

A escrita literária pode figurar como espaço de representação da loucura em um viés humano, filosófico, estético, conforme se verifica no objeto de análise do presente trabalho – duas obras de diferentes gêneros produzidas no interior da loucura por mulheres rotuladas socialmente como loucas: Hospício é Deus (1965), de Maura Lopes Cançado, e Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (2001), de Stela do Patrocínio.

Inverso ao que ocorre no discurso psiquiátrico, em que a loucura registra-se como negatividade, na obra literária ela atualiza-se em criação e, assim, positividade.

Esses textos trazem o universo da loucura recuperado verbalmente por aquelas que nele vivem e ali se vêem a construir sua identidade como mulheres loucas. Entre os interstícios da loucura e da sanidade, da palavra literária e da palavra insensata, a mulher louca representa-se em seu discurso, legitimando a fala da loucura, ao mesmo tempo em que a desconstrói ao criar um texto autobiográfico centrado em uma rigorosa lógica racional, como ocorre em Hospício é Deus.

Na escrita de seu diário, em que traça a trajetória de sua loucura e assume a identidade da louca, a autora exercita a liberdade da palavra literária, e então linguagem artística e linguagem da loucura se infiltram uma na outra. Essa dissolução de fronteiras radicaliza-se em Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, onde a linguagem da loucura representa-se por meio da liberação do fluxo do pensamento, decorrente do mergulho no delírio. Aí se percebe a palavra em sua total liberdade na criação estética, aproximando-se a linguagem livre da loucura à linguagem aparentemente nonsense da lírica moderna.

Em geral, a loucura é representada literariamente a partir de um olhar que a vê do exterior, o que equivale dizer que é uma interpretação da situação do louco no universo representado na obra.

Em autoras contemporâneas como Lya Luft, Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, várias personagens mergulham na experiência trágica da loucura como resposta a um conflito familiar, social, existencial; e a perspectiva da narração muitas vezes as representa de modo a despertar o sentimento de piedade e solidariedade. Já nas obras de Maura Lopes Cançado e de Stela do Patrocínio pode-se ler uma versão da loucura por dentro, onde a construção da imagem estético-verbal da mulher louca se dá a partir das próprias integrantes do grupo marginalizado.

Quando se busca a recuperação do discurso do louco no domínio da linguagem, procura-se resgatar uma linguagem excluída paulatinamente da cultura ocidental à medida que a loucura foi sendo submetida a uma racionalidade cartesiana que a transformou em objeto da psiquiatria e dominou-a cientificamente. Esse refinamento tem justificado desde então até os dias atuais as práticas de silenciamento, de isolamento, de exclusão e de marginalização do louco, segundo historiciza Michel Foucault (1991). Ainda que a fala do louco se mostre o grau zero do discurso, uma impossibilidade de comunicação e pensamento, ele deve ser acolhido como linguagem-limite, tal qual o discurso desconexo, incoerente e sem referentes da lírica moderna, pois, como escreve Viviane Mosé, em sua apresentação ao livro (2001: 43), “ler e ouvir Stela é integrá-la no discurso que um dia a excluiu”.

Ao lado do problema da linguagem da loucura ou da loucura como linguagem, a escrita das duas autoras enquanto escrita de mulheres e loucas é, inevitavelmente, atravessada por múltiplas questões, algumas das quais serão brevemente apontadas. Enquanto canal de expressão de uma vivência feminina, os textos em estudo poderiam ser analisados como textos de “mulheres que escrevem” ou de loucas que “escrevem como mulher” e, com isso, levantar-se-ia o problema da relação entre escrita, loucura e gênero. Para não se cerrar nesse debate e ainda para além dessas questões, toma-se aqui o pensamento da crítica cultural Nelly Richard, cuja proposta é que, ao invés de se falar em escrita da mulher, essas questões sejam superadas pela feminização da escrita (2002: 133).

Assim, aplicar as questões de gênero aos textos dessas duas escritoras é insuficiente para lidar com textos tão transgressores, no sentido de que sua linguagem os coloca no exterior de qualquer norma, transformando-os em momentos de ruptura. Dessa forma, quando se trata da mulher louca, dá-se então uma dupla suspensão de seu discurso, uma vez que, conforme se sabe, a mulher confinada ao longo dos séculos nos papéis sociais de mãe, esposa, filha, amante, tem estado na sociedade patriarcal em posição inferiorizada socialmente, a subalterna destituída mesmo de voz.

Logo, as obras das autoras em estudo constituem, além de peças de inegável qualidade estética, obras de transgressão, porque representam mais do que um texto escrito por mulheres, uma feminização da escrita. Isso significa que todo texto que desregule “a tese do discurso majoritário”, “qualquer literatura que se pratique como dissidência da identidade, a respeito do formato regulamentar da cultura masculino-paterna, assim como qualquer escrita que se faça cúmplice da ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil levaria o coeficiente minoritário e subversivo (contra-dominante) do ‘feminino’” (Richard, 2002: 133). Nesse sentido, o texto da mulher louca carrega em si uma elevada carga de subversão porque lida com a desestruturação de toda a estabilidade do universo patriarcal e põe em questão não apenas os pressupostos da lógica racional, mas sobretudo os valores literários canonizados, porquanto a escrita de uma minoria durante muito tempo silenciada traz em si, virtualmente, uma transgressão. E, atualizada na linguagem artística, a expressão do louco reveste-se de um valor político, pois extrapola o espaço da interioridade e atinge o campo da cultura (Frayse-Pereira, 1985: 101).

E ainda que a categoria de mulheres loucas seja integrada por um sem-número de pessoas que se desviam dos padrões normalizadores de conduta social, cada qual vivendo sua experiência singular da loucura, as auto-representações de Maura Lopes Cançado e Stela do Patrocínio contêm elementos comuns e universais à vivência daquelas que, em determinada altura de suas vidas, se viram excluídas de todos os processos da dinâmica social e, reclusas em instituições psiquiátricas, passaram a conviver com o estigma e o rótulo de louca.

Diários da loucura

Nas páginas iniciais de Hospício é Deus, a autora-narradora apresenta um mergulho no passado, no qual o medo e a insegurança ocupam papel central, e atribui à sua remota infância, de onde recompõe sua formação psicológica, a gênese de sua loucura. Para isso, ela remonta às concepções morais íntimas em choque com dificuldades e obstáculos que enfrenta a fim de chegar à maturidade. A sexualidade reprimida e o temor religioso levam-na a um profundo complexo de culpa que lhe provoca atitudes extremas, como se deitar no chão e gritar desesperadamente, como se a expulsar de si, com esse comportamento, “algo escuro, indefinível, insuportável” (HD, 25).

À medida que a narrativa evolui, constata-se que a loucura da protagonista pode ser explicada pelos tipos de relações familiares no contexto repressor da classe burguesa dos anos 1950 e 1960.

Do ponto de vista moral, sua loucura representa o fracasso em relação aos modelos sociais de comportamento. Em diversos momentos de sua trajetória, a personagem mostra a loucura como um rótulo imposto socialmente por representar um desvio dos padrões estabelecidos no espaço conservador e taciturno das Minas Gerais, além da punição com o estigma da mulher livre, divorciada, o que incomoda à época por ela pertencer a uma das mais tradicionais famílias mineiras. Se na infância e adolescência a desmedida insatisfação com tudo ao seu redor se ameniza com o refúgio nos sonhos, na vida adulta os sonhos são substituídos pelo mergulho em um estado de total descompromisso e irresponsabilidade,representado pela loucura. Logo, o enlouquecimento significa um modo de estar sozinha e livre de qualquer compromisso com a lógica masculino-repressiva dominante, escapando-se ao dever de desempenhar o papel da mulher, tal como ele se desenhava então.
A sigla HD será utilizada doravante sempre que se fizer referência à obra Hospício é Deus.
Assim sendo, por meio do rótulo de louca, a mulher podia ser encarcerada, reprimida, enfim, punida por se liberar da normalização. Ainda que representasse uma suposta libertação, a loucura significava a neutralização da voz e da ação da mulher na sociedade, pois a partir do momento em que essa voz é socialmente invalidada por meio do rótulo e do estigma, sua figura torna-se passiva e sua ação passa a não ter sentido.

Porém a narradora, por sua vez, não se submete a quaisquer normas e regras da sociedade e nem mesmo às do hospício.

Antes, ela própria define seu comportamento em cada situação. Daí ser ela um elemento potencialmente subversor no ambiente alienante do hospício.

No entanto, a narradora constrói de si própria uma imagem dúbia, instável, volúvel. Ao longo da narrativa, estados de espírito contraditórios se alternam e se mesclam, como confirmação de sua instabilidade emocional: ao mesmo tempo em que critica e procura desacreditar, agredir e rejeitar a moral burguesa, a sociedade em que se formou e o sistema psiquiátrico, ela busca desesperadamente ser aceita por esse mundo e se pune por não conseguir se adequar a seus padrões: “Considero-me uma paciente de ‘elite’, com direito a exigir a mesma condição do terapeuta” (HD, 205). Por apresentar um comportamento que não corresponde às expectativas de sua classe social, ela é rejeitada no colégio interno, nos hotéis familiares onde busca viver em Belo Horizonte e nos espaços de circulação comuns às pessoas da elite sócio-econômica. Mas a sociedade que a reprova é também rejeitada pela narradora, que elege para si o universo do hospício como seu espaço próprio enquanto idealização de um mundo onde a loucura é a possibilidade de transcendência das limitações materiais. É ao mundo material, com tantas restrições, convenções, preconceitos, que ela dirige toda sua descrença. Instaura, com isso, um movimento de transição em sua existência, rumo ao distanciamento do mundo material e ao encontro de sua interioridade, o que a lança ao desespero, sentimento considerado por Kierkegaard (2002: 25) como próprio do ser humano, já que ele não pode se libertar do seu eu. Desespero que só pode ser sentido por aqueles que, na busca do auto-conhecimento e de sentido para sua existência, mergulham o mais fundo em si mesmo.

Então a personagem busca o hospício como um lugar fora do mundo e a loucura como uma proteção contra esse mesmo mundo onde fracassa em todos os seus movimentos por autonomia e liberdade. O hospício é, assim, uma oportunidade de introspecção e encontro consigo própria:
O que me traz para aqui? (...) Analiso cada passo meu. Sofro cada gesto. Odeio estar aqui – mas vim. O medo de estar só me levaria a morar com os mortos. Mas não têm estado todos mortos para mim? Meu egoísmo é tão grande que não me permite esquecer-me um pouco: sou, sou, sou. Naturalmente a dor não absorve – translúcida. Meu corpo visto através do maior desespero (HD, 77).

Mas, paradoxalmente, esse mundo desejado, romanticamente idealizado, e transmutado no espaço físico do hospício vai ser repudiado como espaço hostil, porque é lugar do convívio indesejável com pessoas aquém de seu nível social, cultural, intelectual. Um outro exemplo da dubiedade de seu discurso é que mesmo após repudiar a violência com que as internas são tratadas no manicômio, ela admite que algumas delas merecem realmente ser castigadas, devido a seu comportamento irascível. Já em outras passagens, ela descreve terna e poeticamente as cenas das loucas dançando livres e alucinadas nos pátios e telhados.

Ainda que sua maior crítica seja à moral da elite burguesa mineira, da qual participa como membro e como intelectual, e inevitavelmente assume os valores, a obra vem reproduzir sua visão de mundo. Debatendo-se entre seu mundo particular – a partir do qual extrai seus parâmetros de elocução – e a consciência das deficiências desse mundo, a visão que a narradora constrói do hospício coloca a maioria daquelas personagens em perversa situação de inferioridade: “As mulheres são geralmente burras e sou inteligente” (HD, 149). A discriminação continua na divisão das internas em doentes mentais e loucas e, a partir disso, da formulação de seu próprio conceito de loucura. Nessa separação, as doentes mentais encontram-se em nível abaixo das loucas, que são aquelas que ela acredita terem alcançado um estágio espiritual elevado; aquelas que, já tendo superado a esfera material do mundo, ingressaram em um estado de completa inocência, grandeza, liberdade, dignidade (HD, 36-7).

Minguados os recursos da herança que a mantinham em caras casas de saúde, a narradora se vê a compartilhar o mesmo espaço degradante em que são empilhadas as loucas miseráveis das classes populares. Seu passado interfere em sua representação já que é a partir da perspectiva de uma mulher pertencente à elite sócio-econômico-cultural que ela se posiciona. Construído sobre valores de classe, seu discurso diferencia sua vivência da loucura da realidade da mulher louca marginalizada imersa no sistema psiquiátrico. Ela própria se distingue socialmente, distinção que se reflete na própria linguagem a ser utilizada com suas colegas, supostamente inferiores: “Sou escritora, minha família é rica e importante – esta mulher não serviria para cozinheira da minha casa. Devo impor-me. Como? Em que língua falar-lhe?” (HD, 47). E assim ela segue julgando o mundo e as pessoas com rigor e severas exigências, quando não com desprezo e humilhação.

Em parte sua representação é oferecida ao leitor por meio da perspectiva do médico, das funcionárias, das internas do hospício, e de muitas outras vozes que emergem nos diálogos que participam da obra, ainda que mediadas pelo foco da autora-narradora. A partir desses olhares, compõe-se um perfil agressivo, amargo, impetuoso, rebelde, imaturo, mas provocante e sedutor da personagem, projetando sua loucura como uma sensibilidade singularíssima. Com o passar do tempo e a constatação de suas diferenças em relação às demais internas, ela reconhece se beneficiar de um sistema de privilégios dentro do hospício: “Minha condição no hospital é especialíssima; nenhuma doente goza das regalias que gozo” (HD, 256). E assim reafirma sua superioridade sobre as demais, pelos atributos que todos lhe reconhecem: beleza, sensualidade, ousadia, inteligência, perspicácia, cultura.

A partir de sua auto-representação, o leitor pode visualizar a estranha figura de uma mulher louca, bela, sedutora, a tudo percebendo com profundidade e agudeza de espírito. Imagem altamente favorável, exceto pelo fato de constantemente também vislumbrá-la a agredir guardas e colegas, a se despir ou se dirigir acintosamente às diversas personagens, em um comportamento que contrasta agressivamente com o alto conceito que a narradora constrói de si própria. O desejo de total libertação, mas principalmente de atenção e compreensão, culmina com a tentativa de suicídio. Para a narradora, a morte física bem poderia solucionar definitivamente toda a angústia, já que a morte espiritual, representada pela loucura, parece tê-la tornado ainda mais lúcida, uma lucidez que chega a ultrapassar a compreensão racional:
Avanço, cega e desnecessária – não é este o meu tempo. Fora da vida, do mundo, da existência –apesar de enclausurada. Que sou eu?? Não importa. Quem poderia julgar-me? (...) Obrigada a marchar como os outros, aparentando ser o que não sou, ou perturbo a ordem (...) passarei, sem conseguir minha identificação. E não serei jamais alguém, frequentei um tempo errado (HD, 241-2).
Dessa forma, sua loucura consiste em estar no mundo e não poder absorvê-lo nem compreendê-lo. A escrita tem papel crucial nessa jornada de auto-conhecimento. Ela constitui, assim como a loucura, uma tentativa de superação do vazio interior, da angústia e do desamparo. A experiência do suicídio e o desejo de autodestruição são afastados, uma vez sublimados pela transposição dessas imagens para a experiência literária. A consciência de sua loucura como material e espaço de criação leva a narradora a identificar-se com grandes artistas loucos: Van Gogh, Gauguin, Rimbaud, Dostoievski, e a filósofos como Gide e Nietzsche (HD, 149). Ademais, a todo momento ela se reafirma como escritora, que precisa cuidar de sua literatura e conhece a força literária de sua escrita. Formula conceitos sobre estética, moral, ética, e registra suas reflexões acerca da criação e da crítica literária, de obras e autores consagrados. Fatos literários e artísticos da época são invocados com frequência. Figuras que sobressaem na literatura brasileira, como Assis Brasil, Ferreira Gullar, Maria Alice Barroso e outros que participam do movimento literário concretista na época tornam-se personagens de sua narrativa, registrando seu convívio intenso com o mundo literário.

Enfim, Maura Lopes Cançado se narra enquanto personagem de uma experiência trágica sobre a terra: a de não pertencer a este mundo e a nenhum outro. Se “o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros: [já que] pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância” (Foucault, 1999: 11), também na escrita literária a narradora reafirma a consciência da inutilidade de sua palavra, a impossibilidade de, como insana, fazer com que sua palavra seja recebida e validada diante da autoridade hospitalar. Assim, revela: “Mas como chegar a ele, se não me ouve, me encara como psicopata – e pronto?” (HD, 99). O que corresponde simbolicamente à consciência de que também no sistema literário sua obra não virá a ser aceita, já que socialmente ela também não se afirma enquanto mulher, divorciada, no contexto sócio-cultural de uma época em que tanto na vida como na arte [as mulheres] ficam confinadas às construções masculinas [e] qualquer tentativa de autonomia intelectual passa a ser vista como sintoma de algum distúrbio psíquico, pois o dom criativo é considerado masculino, restando à mulher a reprodução, a dedicação ao outro, enfim uma vida sem história própria (Garcia, 1995: 26).

A narrativa se finda com as páginas do diário sendo amassadas pelas colegas invejosas. A destruição iminente do diário sugere que a dicção da narradora é recusada naquele ambiente já que ela não é capaz de representar com legitimidade as suas companheiras. Mesmo que a loucura seja um traço comum às personagens do hospício, as diferenças intelectuais e sociais distanciam aqueles seres pretensamente iguais, o que faz com que acabe por aparecer na obra a discussão acerca dos dilemas da representação.

O falatório de Stela

Enquanto em seu diário Maura Lopes Cançado procura traçar um percurso de sua loucura e mapear a construção da identidade da mulher louca com acentuado rigor lógico, Stela do Patrocínio importa-se apenas em falar, ainda que em todos os capítulos manifeste uma preocupação com a detenção da palavra e de um nome, fundamental para a preservação da subjetividade. Com isso, a obra Reino dos bichos e dos animais é o meu nome compõe-se do que ela própria chama de “falatório”. Sua fala poética, contínua e rica, desperta na psicanalista Viviane Mosé a certeza da importância desse discurso e o desejo de recolhimento, por meio da gravação, de seus textos e sua transposição para a escrita, em uma obra que se preocupa, segundo ela, em “encontrar a sonoridade dos textos”, já que Stela “usava sempre o mesmo ritmo, possibilitando esta configuração equilibrada que adquirem seus textos quando escritos” (2001: 27).

Embora na condição de interna em regime fechado (e também por isso), a fala de Stela desperta interesse por ser capaz de criar uma tensão em que seu discurso, que se inicia ordenado, fragmenta-se e constrói-se sempre dentro de uma lógica particular, mergulhada no delírio. Também é curiosa a forma de Stela pensar sua posição e articular esses pensamentos em um texto que contém indagações ontológicas, onde sua origem humana, o ser e o estar no mundo, e o estranhamento diante da complexidade da existência constituem seus temas centrais.

Nascidos no seio da loucura, seus textos fascinam pelo que possuem de “neurose necessária para a sedução de seus leitores”, pois “esses textos terríveis são apesar de tudo textos coquetes”, utilizando palavras de Roland Barthes (1999:10), e podem ser lidos como tão transgressores quanto os da lírica moderna.

Na obra está representado literariamente o processo de construção de identidade do louco, que se dá a partir da admissão no manicômio, definido pelo cientista social Erving Goffman como “mortificação do eu” (1990: 24-49). Mais marcante em indivíduos que passam um longo período de suas vidas nas instituições fechadas, como é o caso de Stela, esse processo consiste na introjeção dos mecanismos de sobrevivência no hospício e na adoção de táticas de ajustamento às relações no local. Passa a ser construída uma nova identidade, em cuja composição participam elementos do universo manicomial, percebidos por Stela como sendo alimento para essa reconfiguração identitária: “a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio/E era um banho de chuveiro, uma bandeja de alimentação/E viagem sem eu saber para onde ia” (RBA*, 53). Em sua auto-representação, o eu lírico encontra na própria sociedade a origem de sua loucura, em cuja cronificação o hospício tem importância crucial:
Estava com muita saúde
Me adoecerem
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
(RBA, 51).
De modo muito particular e lúcida de sua condição, ela descreve vários aspectos do modo de vida ultrajante que se vive no hospício e que Goffman (1990: 31) chama de violação dos “territórios do eu”. Essa invasão da individualidade – marcada pela rotina cronometrada e pelo controle rigoroso dos mínimos movimentos dos internos, que devem se limitar pelas regras da instituição – é exercida através de medidas coercitivas. Por exemplo: apesar dos remédios e injeções serem indesejados, a interna é forçada a ingeri-los: “O remédio que eu tomo me faz passar mal/ E eu não gosto de tomar remédio para ficar/ passando mal/ Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico cambaleando/ Quase levo um tombo” (RBA, 54).
A sigla RBA remete à obra Reino dos bichos e dos animais é o meu nome.
Já confinada, ela revela as proibições de se manifestar livremente, circular com naturalidade pelos espaços e o constrangimento da privação de liberdade, expressando-se como condenada a cumprir uma sentença penal: “Estar internada é ficar presa todo dia/ Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão (...) Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais” (RBA, 55). E mesmo já integrada ao espaço asilar, não se resigna com sua condição cerceada, humilhada, em que a falta de liberdade prova-lhe a todo momento sua irresponsabilidade, a incapacidade de agir com autonomia e de responder por seus atos:
Eu sou seguida acompanhada imitada
Assemelhada
Tomada conta, fiscalizada, examinada, revistada...
(RBA, 63)
O sofrimento crônico não leva à resignação, ao contrário produz no ser uma consciência lancinante de sua situação fazendo com que a palavra extrapole os muros da insanidade e se infiltre na razão para provocá-la e mostrar sua precariedade, sua insuficiência diante do humano: “Tem esses que são igualzinhos a mim/ Tem esses que se vestem e se calçam igual a mim/ Mas que são diferentes da diferença entre nós/ É tudo bom e nada presta” (RBA, 63).

Ao lidar com o sentimento de desamparo e abandono, o eu-lírico posiciona-se de forma ambivalente, dando a ver o abismo que há entre os desejos e sua situação real. Capaz de suplantar a solidão ao forjar seu pertencimento a uma comunidade ainda maior: “Tô na família do cientista” (RBA, 129) ou “Uma família pra mim é uma reunião de médicos e cientistas” (RBA, 130), em outras ocasiões expressa-se como uma voz que se ergue de um depósito de seres humanos rebaixados a uma condição primitiva, animalizada:
Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
(RBA, 118).
A vaidade feminina que tanto preocupa a narradora de Hospício é Deus, característica de sua classe social, não é motivo de orgulho e reflexão para Stela. Quando se refere a seu aspecto físico, representa-se de forma negativa, sob o reconhecimento do Outro, como “nega preta e feia/ Que a Ana me disse” (RBA, 66). O desprezo e até repulsa pela própria existência vêm junto a um desejo de auto-aniquilamento, ou apenas de não-ser:
Eu não queria me formar
Não queria nascer
Não queria tomar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber de viver
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
Nem vontade pra essas coisas
E até hoje eu não tenho querer
Nem vontade pra essas coisas
(RBA, 118).
Imersa na experiência existencial, a palavra de Stela guarda os mínimos resquícios da cultura. A natureza primitiva – o reino dos bichos e dos animais – manifesta-se na linguagem instintiva, em que forma e conteúdo se comunicam. Assim, em seu discurso telúrico, meio selvagem, infantil e primitivo, os temas mais caros são alimentação, sexo, maternidade, animais, instintos, natureza. Em uma dicção em que são raras as referências aos elementos da cultura, chama a atenção a alusão a Um homem chamado cavalo, filme norte-americano do diretor Elliot Silverstein, por ser um dos raros momentos em que a cultura entra na construção de seus textos, quando se define como quem fica “pastando no pasto à vontade” (RBA, 50), uma metáfora de seu modo de vida alienado. Ainda que sua linguagem esteja intimamente associada a um movimento natural, instintivo, assim como o próprio conteúdo de sua fala, ao extravasar sua interioridade pela palavra, Stela se situa enquanto indivíduo, canalizando objetivamente a sua necessidade devastadora de auto-expressão para uma representação de sentido cultural.

Dessa forma, o falatório de Stela dá forma à gama de sentimentos que constroem a subjetividade de uma reclusa no sistema psiquiátrico, há tanto tempo segregada do convívio social. Expressando-se como condenada ao encarceramento em um mundo adverso, mesquinho e indesejado, reclama da convivência inevitável com outros indivíduos psicologicamente arruinados. Stela representa seus pares como seres que “vivem sem pensar/ Comem bebem fumam(...)/ Mas não tem ninguém que pense”. Mesmo não se assumindo como intelectual, Stela se reconhece como uma consciência que sobressai em uma multidão e pode contemplar as dolorosas circunstâncias em que sobrevive: “Não trabalho com a inteligência/ Nem com o pensamento/ Mas também não uso a ignorância” (RBA, 62).

Seu discurso apresenta a perspectiva da mulher louca marginalizada até pelo sistema psiquiátrico, microcosmo e metáfora do sistema sócio-político. Contrário ao texto de Maura Lopes Cançado, que constantemente realça sua superioridade sobre as demais colegas, a fala de Stela a representa de forma auto-depreciativa. Em raros momentos, tenta mostrar uma posição socialmente privilegiada na pirâmide social, mas a impressão que permanece é de desconfiança, já que construída com dubiedade e contradições. Por isso, quando fala de sua origem em uma “importante família/ família de cientistas, aviadores/ De criança precoce, prodígio, poderes/ Milagres mistério” (RBA, 67), o leitor é levado a associar a informação à família onde trabalha como empregada doméstica, como em várias passagens faz referências, produzindo sem receber salário.

Ao fim das gravações, um profundo cansaço parece ter minado as forças do eu-lírico, que se reconhece fraco, impotente, vazio, pois o despojamento do que ainda lhe resta – o falatório – mostra a inconsequência de sua fala. Como a narradora de Hospício é Deus, Stela sabe que não poderá mudar sua condição, mesmo porque falar significa reivindicar, e reivindicando ela é atendida em suas necessidades mais imediatas, o que acaba por fazê-la calar. Isso confirma apenas que a loucura, que é sua libertação, é ao mesmo tempo o aprisionamento e o silenciamento de sua voz:
Eu já não tenho mais voz
Porque já falei tudo o que tinha que falar
Falo, falo, falo, falo o tempo todo
E é como se eu não tivesse falado nada
Eu sinto fome matam minha fome
Eu sinto sede matam minha sede
Fico cansada falo que tô cansada
Matam meu cansaço
Eu fico com preguiça matam minha preguiça
Fico com sono matam meu sono
Quando eu reclamo
(RBA, 142).
E assim, criar, falar, resulta-lhe em feiúra, porque é assim que seu olhar percebe o mundo que representa: “Me transformei com esse falatório todinho/ Num homem feio/ Mas tão feio/ Que não me aguento mais de tanta feiúra/ porque quem vence o belo é o belo” (RBA, 143).

Mas é nesse reconhecimento que está a força do discurso de Stela. Reconhecer-se como uma consciência que fala da margem da sociedade, do ponto de vista do ser recluso, abandonado e destituído de qualquer privilégio é o primeiro passo para fazer valer um discurso que possa ser significativo no sistema literário. E esse saber parece permear todo o seu falatório, no qual a linguagem da loucura é a própria linguagem da obra.

Loucura significa então transgressão na medida em que fundindo-se linguagem da loucura e linguagem literária cria-se um novo código, nova forma de construir linguagem e literatura, nova forma de vivenciar a loucura.

Conclusão

Se em instituições psiquiátricas o isolamento e a desmoralização são as formas máximas de exclusão e segregação do indivíduo, a palavra constitui a última possibilidade de manifestação da subjetividade e uma forma de comunicação com o Outro. Pela palavra, a loucura dessas mulheres torna-se impulso criativo e canal para o resgate de identidades culturalmente forjadas mas também culturalmente rejeitadas. A condição de mulher que sustenta um discurso próprio, capaz de articular em palavras suas idéias, desejos, emoções, faz com que essas duas mulheres se destaquem objetivamente entre as internas e as diferencia das demais personagens que habitam aqueles pátios e dormitórios da morte.

Hospício é Deus e Reino dos bichos e dos animais é o meu nome apresentam a perspectiva feminina sobre a insanidade e encontram-se à margem do padrão literário oficial. Essas obras, em que duas mulheres loucas se auto-representam, têm talvez mais a dizer sobre a experiência da loucura da mulher que o clássico discurso psiquiátrico masculino-universal que tendia a considerá-la como efeito da hereditariedade e da degeneração.

Insistindo na insanidade como decorrência de uma causa física, o aparelho reprodutivo era apontado como principal fonte da loucura feminina.

Os textos de Maura Lopes Cançado e Stela do Patrocínio confirmam que o conceito da loucura feminina, tantas vezes romanticamente estereotipada, está bem próximo daquilo que propõe Michel Foucault: é mais cultural e histórico, que propriamente médico (1999).

A autora-narradora de Hospício é Deus se auto-representa no limiar entre loucura e sanidade, um espaço fronteiriço onde sua extrema lucidez impede que compreenda, aceite e conviva com todo o aparato cultural repressivo da sociedade, no qual não vê sentido. Por isso, a impressão de que sua loucura cabe apenas como rótulo pelo comportamento anti-social e às vezes amoral. Segundo se depreende de sua auto-representação, a loucura é nela uma presença exterior, e não um modo de pensar enganoso e errôneo, já que sua escrita em nenhum momento do diário se desvia da razão, traindo a lógica do pensamento e do discurso.

Alucinações, delírios, visões não são sequer mencionados na obra. Em relação ao que manifesta o eu-lírico de Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, entretanto, já não há mais distinção entre os planos da realidade e imaginação. Tendo ultrapassado as fronteiras, para Stela do Patrocínio “mundo é o que gira bem íntimo e oculto, uma coisa nevoenta, turbulosa” (HD, 223).

Nesse aspecto, a narradora de Hospício é Deus reconheceria a fala fragmentada, repetitiva, descentrada de Stela do Patrocínio como legitimamente representativa da linguagem da loucura, o que não ocorre com sua própria linguagem – centrada, lógica, convencional. Pertencente a um mundo letrado, Maura Lopes Cançado já detém a palavra silenciada, o que leva a expressar-se com preconceito quando representa sua loucura como um desajuste psíquico, ou doença mental, uma vez que a verdadeira loucura, que ela tanto glamouriza, vista na realidade do pátio das loucas enche-a de asco e leva-a ao desespero (HD, 226-7).

Se em desvantagem Stela não detém a escrita – que é a palavra que fica, por outro lado ela pode falar do interior da loucura, atualizando a linguagem do caos, que se marca por tentar se organizar mas ao mesmo tempo se desestabiliza, como é a própria fala do louco. Ao leitor fica a impressão de que se Stela já chegou, Maura está a caminho...

A afirmação de maior ou menor legitimidade do discurso de uma ou outra autora para representar a voz e o lugar do louco na literatura brasileira traria à tona o problemático conceito de loucura e suas múltiplas acepções. Assim como o brilho do pensamento e do discurso de Maura Lopes Cançado a tudo procura abarcar dentro de uma hipertrofiada racionalidade, a percepção instintiva de Stela beira a uma lucidez desconcertante. Nessas formas diversas de representação da loucura, em seus diferentes matizes, o saldo é o resgate da palavra do louco – socialmente interditada há tantos séculos. Na escuta dessa palavra, o fim não é manter a cesura entre razão e loucura, mas reabilitar o discurso e o universo da loucura e integrá-los ao da razão, tornando-as não formas opostas mas sim componentes de um mesmo binômio.

Com isso, o jogo entre identidade e representação fica colocado como ponto central, aflorando os dilemas intrínsecos à questão, pois ao mesmo tempo em que estudar o texto de minorias constitui uma necessidade para tornar possível sua emancipação, torna-se fundamental trabalhar com as tensões e as múltiplas redefinições para que não se fique preso a uma identidade pré-definida, de forma a deixar entrever que em uma identidade estão contidas múltiplas identidades.

Nas duas obras está em jogo, ainda, a relação entre linguagem e loucura, entre loucura e escrita, entre loucura e literatura. A palavra louca das autoras utiliza os mesmos recursos de construção da linguagem artística para se estabelecer, por meio de um sentido que transita entre as duas margens da palavra, “uma margem sensata, conforme, plagiária (...) e uma outra margem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos)” (Barthes, 1999: 12). E a crise da subjetividade se manifesta na linguagem por meio da crise da palavra, que tende a se mover entre essas duas margens dos textos.

Por fim, incluir esses textos no campo consagrado da literatura não é apenas reconhecer sua sensível qualidade literária e os valores estéticos que eles contêm. Acolher as vozes dessas mulheres loucas significa ampliar a representatividade dos grupos sociais marginalizados e integrar as obras das autoras em uma perspectiva de democratização do espaço literário, já que “da mesma forma que é possível pensar na democratização da sociedade, incluindo novas vozes na política e na mídia, podemos imaginar a democratização da literatura”, como resumem as palavras de Regina Dalcastagnè (2002: 38).

Bibliografia

BARTHES, Roland. 1999. O prazer do texto. Trad. de J. Guinsburg. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva.
CANÇADO, Maura Lopes. 1965. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor.
DALCASTAGNÈ, Regina. 2002. “Uma voz ao sol: representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea”. Estudos de literatura brasileira contemporânea, n° 20. Brasília, julho/agosto, pp. 33-87.
FOUCAULT, Michel. 1991. História da loucura na Idade Clássica. Trad. de José Teixeira Coelho Netto. 3. ed. São Paulo: Perspectiva.
_________. 1999. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5ª ed. São Paulo: Loyola.
FRAYZE-PEREIRA, João Augusto. 1985. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense/Abril Cultural.
GARCIA, Carla. 1995. Ovelhas na névoa: um estudo sobre as mulheres e a loucura. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos.
GOFFMAN, Erving. 1990. Manicômios, prisões e conventos. 3ª ed. Trad. de Dante Moreira Leite. São Paulo: Perspectiva.
KIERKEGAARD, Sören. 2002. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret.
MOSÉ, Viviane. 2001. “Stela do Patrocínio: uma trajetória poética em uma instituição psiquiátrica”, em PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, pp. 19-43.
PATROCÍNIO, Stela do. 2001. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial.
RICHARD, Nelly. 2002. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Trad. de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Gislene Maria Barral Lima
Felipe da Silva – “Loucura, mulher e representação: fronteiras da linguagem em Maura Lopes Cançado e Stela do Patrocínio”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº 22. Brasília, janeiro/junho de 2003, pp. 95-111.