Os riscos da pílula do amor

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“A festa, em todas as sociedades humanas, é o espaço social privilegiado para o consumo de substâncias ilegais e perigosas. Durante as raves, os participantes estão experimentando e criando outras formas de interação, testando alguns limites sociais e individuais”, reflete a doutoranda em Antropologia pela USP Carolina de Camargo Abreu.

Essas relações entre o uso do MDMA, conhecido popularmente como ecstasy, e as festas de música eletrônica deram origem à mais recente investigação do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (CPAD) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, financiada pela Fundação Fogarty e pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa (Fipe). Criado a partir de um estudo similar realizado na Universidade de Delaware (Estados Unidos), sob coordenação do sociólogo James Iniciardi, o projeto tem como título “Padrões de uso e dependência de drogas na cultura rave brasileira — o impacto do consumo de MDMA/ecstasy em usuários de Porto Alegre”.

Origem e ação — Patenteada pelo laboratório farmacêutico Merck em 1914, na Alemanha, a substância foi sintetizada como supressor de apetite, porém nunca chegou a ser utilizada para este fim. As sensações de euforia e sensualidade proporcionadas por ela deram origem ao seu uso recreativo na década de 70, sendo proibido no Reino Unido em 1977 e nos Estados Unidos em 1985.

Também conhecida como “pílula do amor”, devido a sua ação alucinógena e estimulante, ela aumenta o amor próprio, a vontade de interagir fisicamente com os outros e a percepção dos sentidos. “O ecstasy é derivado de uma anfetamina, ele libera energia extra, sensação de bem-estar e de potência. Algo parecido com a cocaína, mas com efeitos posteriores mais brandos”, explica a psicóloga Lysa Remy, uma das investigadoras do projeto do CPAD.

A ação da droga intensifica a atividade de neurotransmissores como a serotonina, a noradrenalina e a dopamina, responsáveis pelo aumento de ânimo, pela elevação da temperatura corporal e pela necessidade de toque. “Existe uma liberação geral, por conta de uma intoxicação no cérebro, mas os dias posteriores ao uso tendem a ser caracterizados por um humor mais deprimido”, esclarece a psicóloga.

Carência de informação — A falta de dados científicos sobre o uso de ecstasy no Brasil e, especialmente, na capital gaúcha foi a principal motivação para o projeto. Lysa diz que as poucas informações existentes sobre o assunto são, em sua maioria, resultado de estudos realizados nos Estados Unidos ou na Europa. Para ela, enquanto no exterior já se discutem políticas de tratamento, no Brasil estão apenas descobrindo os efeitos da droga. “Em Porto Alegre ainda não há uma pesquisa que entreviste os usuários e os acompanhe ao longo do tempo”, afirma.

Para o psiquiatra Flávio Pechansky, diretor do CPAD, por enquanto não se pode prever nenhum resultado, justamente por ser um tema pouco investigado. “Não sabemos nem mesmo se a substância consumida é realmente MDMA. Temos apenas os relatos dos usuários.” A falta de interesse deve-se ao menor risco em relação a drogas como crack e cocaína, além de uma compreensão do impacto social mais discreto, devido ao uso setorizado. “Ninguém sai na rua e agride outra pessoa por ter usado ecstasy; seus efeitos são contrários, por isso é a ‘pílula do amor’”, esclarece o médico.

Metodologia — O projeto teve início em 2008, quando um grupo focal foi criado para examinar como operava a cena eletrônica. A partir desses primeiros entrevistados, a equipe do CPAD aprendeu sobre os diferentes tipos de festas, músicas e grupos existentes nesse universo. Cada um desses indivíduos, chamado de sead (semente em inglês), recebeu três cartões, que deveriam ser distribuídos a outros usuários. Estes, caso houvesse interesse, entravam em contato e participavam da pesquisa, recebendo também três cartões ao final da primeira entrevista, e assim progressivamente.

Esses depoimentos, pelos quais se descobriu forte relação entre o público usuário e a Internet, serviram de base para o desenvolvimento do modo de divulgação. Além dos cartazes e flyers distribuídos nos eventos, o projeto possui perfil e comunidade em um site de relacionamentos e um e-mail pelo qual os interessados podem esclarecer dúvidas. “A gente descobriu que esse público tem uma característica muito eletrônica, pela música, pelo Orkut e pelo MSN, que fazem parte da vivência desses jovens. Assim, nós achamos que chegaríamos neles rapidamente, o que temos conseguido”, diz a psicóloga.

A pesquisa, que ainda está na fase de coleta de dados, tem como meta entrevistar 200 usuários com idade entre 18 e 39 anos que tenham consumido MDMA nos últimos noventa dias. Cada indivíduo será acompanhado por doze meses, sendo avaliado três vezes durante este processo. As coletas individuais duram em média quatro horas e compreendem questionários, entrevistas e testes. “O principal foco é compreender como eles percebem o uso da droga. São investigadas as formas de viver esse uso, os comportamentos de risco, a percepção sobre liberalização, a possível relação com doenças psiquiátricas e os impactos sociais, emocionais e cognitivos”, afirma o médico.

O mundo das raves

Cores intensas, luzes fluorescentes, música eletrônica e espaços afastados dos centros urbanos: essas são algumas das características comuns aos muitos tipos de raves existentes. Realizadas há cerca de 13 anos no Brasil, elas aumentaram sua popularidade nos últimos anos, tornando-se um dos principais eventos para jovens e levando o país ao primeiro lugar em número de festas do gênero no mundo.

Segundo a antropóloga da USP Carolina de Camargo Abreu, as raves surgiram no início do século XXI em razão de sentimentos como ansiedade, esperança e desilusão. Nesse sentido, “a festa, performance espontânea, é a expressão da experiência urbana da sociedade tecnológica”. Assim, a música eletrônica não é apenas produzida por máquinas, mas também imita seus sons, paisagem sonora das cidades. “Na festa, o ritmo ditado pela máquina – que marca a velocidade dos movimentos do trabalho na cidade – é subvertido para se tornar o tempo a ser dançado. Motores, sirenes são algumas dessas unidades musicais”, conclui Carolina.

A “bala”, como é chamado o MDMA pelos usuários, devido à sua apresentação em forma de pastilhas, associa-se a esse contexto pelo seu efeito estimulante.

“As raves duram muito tempo; a escolha pelo ecstasy é para estimular esse sentido do dançar, pela energia extra que ele dá”, aponta a psicóloga Lysa Remy. É possível, ainda, estabelecer uma relação entre a música eletrônica e a ação da droga: “Esse tipo de som potencializa o efeito, devido a sua pouca variação. Já ouvimos relatos de usuários que relacionam o ritmo da música a tambores tribais ou às batidas do coração”, acrescenta o professor Flávio Pechansky.

Uma fala comum entre os consumidores do MDMA é que ele não causa dependência ou danos ao organismo. Mas, para a psicóloga, não é bem assim: “Há estudos americanos sobre destruição e sobrecarga de neurônios bastante preocupantes. O vício do ecstasy não é como o da cocaína, pois aparentemente não apresenta crise de abstinência. Sobre ele, o que sabemos é que a dependência é psicológica. O corpo não precisa pedir, a cabeça pede”.

De acordo com Pechansky, o que ocorre é uma necessidade menor do uso da substância, devido a sua longa duração. Ele lembra, porém, que seus danos não devem ser medidos a curto prazo e que o mais importante a ser estudado é a exposição ao risco durante o uso. Ao contrário do alarde existente em relação aos casos de ataques cardíacos ocorridos, o médico imagina que não estejam aí os principais danos ligados ao ecstasy. Para ele, o maior perigo estaria na liberação proporcionada, como o sexo casual sem proteção e a interação com álcool e outras drogas. Pechansky adverte que a associação com bebida, maconha ou outros alucinógenos pode levar a uma interação química com efeito tóxico e aumentar a perda de noção.

PARA PARTICIPAR

Os interessados podem agendar uma entrevista com o Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (CPAD) pelo telefone 3330-5813 ou pelo e-mail pperspectiva@gmail.com. O estudo também possui um perfil e uma comunidade no site de relacionamentos Orkut — basta realizar uma busca por Projeto Perspectiva UFRGS.

Perfil dos usuários

“O público frequentador das raves — apesar de ainda não existir nenhum estudo no qual se defina isso — situa-se na faixa etária entre os 20 e os 30 anos e pertence às camadas socioculturais ricas”, refere Carolina. Por enquanto, as coletas feitas pelo CPAD têm confirmado isso. A psicóloga Lysa Remy relata que os usuários são, em sua maioria, universitários pertencentes às classes média e média alta que estudam e trabalham, e consomem a substância apenas nas festas. Beatriz (nome fictício), 25 anos, é DJ em festas de música eletrônica, as quais frequenta pelo menos duas vezes por semana. Foi trabalhando que ela recebeu da equipe do CPAD um folder de divulgação da pesquisa. Apesar de não consumir ecstasy há meio ano, a jovem se interessou em participar do projeto para dar a sua visão sobre o uso da substância. A primeira experiência com a droga ocorreu há cerca de um ano, por influência de amigos, porém agora ela não julga mais necessário o uso. “Eu parei porque vi que não preciso desse efeito, não vale a pena. Posso aproveitar, tendo uma percepção natural da realidade”, garante.

Dica de leitura

Festa Infinita — O entorpecente mundo das raves de Tomás Chiaverini, Ediouro, 2009, 320 págs., R$ 50 (valor médio).

O autor, jornalista que trabalhou na Folha de S. Paulo, apresenta a história das festas rave no Brasil e faz um perfil de seu público. Para isto, ele frequentou eventos de música eletrônica em diferentes lugares do país, realizou entrevistas com DJs e produtores, conviveu com os frequentadores e, inclusive, experimentou ecstasy.

AUTORA: Luciane Costa, estudante do 7.º semestre de Jornalismo da Fabico
FONTE: Jornal da Universidade

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