FAUSTO DE GOETHE: A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO

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O FAUSTO DE GOETHE: A TRAGÉDIA DO DESENVOLVIMENTO
 
Capítulo I
 
(Do Livro: Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade, Marshall Berman, págs.37-84, Cia de Letras, 1987)
 
A moderna sociedade burguesa, uma sociedade que desenvol­veu gigantescos meios de troca e produção, é como o feiticeiro incapaz de controlar os poderes ocultos que desencadeou com suas fórmulas mágicas.

Manifesto do Partido Comunista
 
Meu Deus!... Os garotões cabeludos perderam o controle!
Um oficial do exército em Alamogordo, Novo México, imedia­tamente após a explosão da pri­meira bomba atómica, em julho de 1945.
 
Vivemos uma era fáustica, destinada a enfrentar Deus ou o Diabo antes que tudo isso se cumpra, e o inevitável minério da autenticidade é nossa única chave para abrira porta.
Norman Mailer, 1971
 
Desde que se começou a pensar em uma cultura moderna, a fi­gura de Fausto tem sido um de seus heróis culturais. Nos quatro sé­culos que nos separam do Faustbuch de Johann Spiess, de 1587, e da História Trágica do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, de 1588, a história tem sido contada e recontada, interminavelmente, em todas as línguas modernas, em todos os meios conhecidos, da ópera ao espe­táculo de marionetes e aos livros cômicos; em todas as formas literá­rias, da poesia lírica à tragédia teológico-filosófica e à farsa vulgar; a história de Fausto provou ser irresistível a todos os tipos de artista em todo o mundo. Embora tenha assumido muitas formas, a figura de Fausto tem sido sempre, praticamente, o "garotão cabeludo", isto é, um intelectual não-conformista, um marginal e um caráter suspeito. Em todas as versões, também, a tragédia ou comédia ocorre quando Fausto "perde o controle" sobre suas energias mentais, que a partir daí adquirem vida própria, dinâmica e altamente explosiva.
Quase quatrocentos anos após sua entrada em cena, Fausto con­tinua a atrair a imaginação moderna. Por isso, o semanário The New Yorker, em um editorial antinuclear, logo após o acidente de Three Mile Island, aponta a figura de Fausto como símbolo de irrespon­sabilidade política e indiferença à vida: "O propósito fáustico que os experts concebem em relação a nós é deixá-los dispor da eternidade com suas mãos humanas e falíveis, e isso não é tolerável".' Enquanto isso, no outro extremo do espectro cultural, um número recente da revista em quadrinhos Capitão América anuncia "os desígnios malé­ficos do... Doutor Fausto!". O vilão, que se assemelha extraordinaria­mente a Orson Welles, sobrevoa o porto de Nova Iorque num gigan­tesco dirigível. "Enquanto observamos", diz ele a duas vítimas acor­rentadas e indefesas, "esses recipientes que contêm meu engenhoso gás mental estarão sendo afixados aos ejetores especiais do sistema de exaustão do meu dirigível. Ao meu comando, os leais [robotizados] agentes da Força Nacional começarão a inundar a cidade com o gás, levando todos os homens, mulheres e crianças de Nova Iorque a caírem sob meu absoluto controle. mental!" Isso quer dizer confusão: na úl­tima vez que conseguiu agir, o Doutor Fausto confundiu as mentes de todos os americanos, levando-os paranoicamente a suspeitar de todos os vizinhos e a denuncia, ]os, ó que gerou o macarthismo. Quem sabe o que está em suas intenções, agora? Nisso, um relutante Capitão Amé­rica interrompe sua pacata vida de aposentado para enfrentar o ini­migo. "E, por mais fora de moda que isso pareça", ele diz a seus embo­tados leitores dos anos 70, "eu preciso fazê-lo, pela Nação. A América jamais poderá ser a terra dos homens livres se Fausto captura-la em sua armadilha!" Quando o vilão fáustico é finalmente derrotado, a aterro­rizada Estátua da Liberdade se sente à vontade para voltar a sorrir.
O Fausto de Goethe ultrapassa todos os outros, em riqueza e pro­fundidade de perspectiva histórica, em imaginação moral, em inteli­gência política, em sensibilidade e percepção psicológica. Ele abre novos caminhos no emergente autoconhecimento moderno, que o mito do Fausto sempre explorou. Sua imaculada imensidão, não apenas em abragência e ambição mas na visão genuína, levou Puchkin a chamá-lo de "Ilíada da vida moderna". (3) O trabalho de Goethe no tema do Fausto começou em torno de 1770, quando ele tinha 21 anos, e prosseguiu intermitente por seis anos; ele não considerou a obra terminada até 1831, um ano antes de sua morte, aos 83 anos, e sua publicação integral só se deu algum tempo depois que ele morre. (4) A obra, portanto, foi concebida e sendo criada ao longo de um dos períodos mais turbulentos e revolucionários da história mundial. Muito de sua força brota dessa história: o herói goethiano e as personagens a sua volta experimentam com grande intensidade muitos dos dramas e traumas da história mun­dial que o próprio Goethe e seus contemporâneos viveram; o movimento integral da obra reproduz o movimento mais amplo de toda a sociedade ocidental.
O Fausto começa num período cujo pensamento e sensibilidade os leitores do século XX reconhecem imediatamente como modernos, mas cujas condições materiais e sociais são ainda medievais; a obra termina em meio às conturbações espirituais e materiais de uma revo­lução industrial. Ele principia no recolhimento do quarto de um inte­lectual, no abstrato e isolado reino do pensamento; e acaba em meio a um imensurável reino de produção e troca, gerido por gigantescas cor­porações e complexas organizações, que o pensamento de Fausto ajuda a criar e que; por sua vez, lhe permitem criar outras mais. Na versão goethiana do tema do Fausto, o sujeito e objeto de transformação não é apenas o herói, mas o mundo inteiro. O Fausto de Goethe expressa e dramatiza o processo pelo qual, no fim do século XVIII e início do seguinte, um sistema mundial especificamente moderno vem à luz.
A força vital que anima o Fausto goethiano, que o distingue dos antecessores e gera muito de sua riqueza e dinamismo é um impulso que vou designar com desejo de desenvolvimento. Fausto tenta explicar esse desejo ao diabo, porém não é fácil fazê-lo. Nas suas primitivas encarnações, Fausto vendia sua alma em troca de determinados bens, claramente definidos e universalmente desejados: dinheiro, sexo, poder sobre os outros, fama e glória. O Fausto de Goethe diz a Mefistófeles que, sim, ele deseja todas essas coisas, mas não pelo que elas representam em si mesmas.

Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos.
O que preciso e quero é atordoar-me.
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
 a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em diante
às dores todas escancaro est'alma.
As sensações da espécie humana em peso,
quero-as eu dentro de mim; seus bens, seus males
mais atrozes, mais íntimos, se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tateie; assim me torno
eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo perdida for, me perderei
com ela. (1765-75)1
 
O que esse Fausto deseja para si mesmo é um processo dinâmico que incluiria toda sorte de experiências humanas, alegria e desgraça juntas, assimilando-as todas ao seu interminável crescimento interior; até mesmo a destruição do próprio eu seria parte integrante do seu desenvolvimento.
Uma das idéias mais originais e frutíferas do Fausto de Goethe diz respeito à afinidade entre o ideal cultural do autodesenvolvimento e o efetivo movimento social na direção do desenvolvimento econômico. Goethe acredita que essas duas formas de desenvolvimento devem ca­minhar juntas, devem fundir-se em uma só, antes que qualquer uma dessas modernas promessas arquetípicas venha a ser cumprida. O úni­co meio de que o homem moderno dispõe para se transformar, - Faus­to e nós mesmos o veremos - é a radical transformação de todo o mundo físico, moral e social em que ele vive. A heroicidade do Fausto goethiano provém da liberação de tremendas energias humanas repri­midas, não só nele mesmo, mas em todos os que ele toca e, eventual­mente, em toda a sociedade a sua volta. Porém, o grande desenvolvi­mento que ele inicia - intelectual, moral, econômico, social - repre­senta um altíssimo custo para o ser humano. Este é o sentido da relação de Fausto com o diabo: os poderes humanos só podem se desenvolver através daquilo que Marx chama de "os poderes ocultos", negras e aterradoras energias, que podem irromper com força tremenda, para além do controle humano. O Fausto de Goethe é a primeira e ainda a melhor tragédia do desenvolvimento.
A história do Fausto pode ser acompanhada através de três meta­morfoses: ele aparece primeiro como O Sonhador; em seguida, graças à mediação de Mefisto, transforma-se em O Amador, e finalmente, bem depois do desenlace da tragédia do amor, ele atingirá o clímax de sua vida, como O Fomentador.

PRIMEIRA METAMORFOSE. O SONHADOR
 
Quando as cortinas se abrem , (6) encontramos Fausto sozinho em seu quarto, tarde da noite, sentindo-se trapaceado. "Ah! Estarei ainda preso nesta jaula? Neste maldito buraco lúgubre nas paredes! (...) De qualquer modo, há um mundo imenso lá fora!" (398-99, 418) Essa cena devia chamar-nos a atenção: Fausto se insere em uma longa li­nhagem de heróis e heroínas modernos surpreendidos falando a si mes­mos no meio da noite. Normalmente, porém, o falante é jovem, pobre, inexperiente - decerto privado de experiências pelas barreiras de clas­se, de sexo ou de raça de uma sociedade cruel. Fausto não é apenas um homem de meia-idade (é um dos primeiros heróis de meia-idade na literatura moderna; o capitão Ahab talvez seja o seguinte), mas um homem de meia-idade tão bem-sucedido quanto é possível, no seu mundo. É reconhecido e estimado como médico, advogado, teólogo, filósofo, cientista, professor e administrador de ensino. Surpreendemos Fausto cercado de belos e raros livros e manuscritos, pinturas e dia­gramas, instrumentos científicos - toda a parafernália de uma vida espiritual bem-sucedida. No entanto, tudo quanto ele conseguiu soa vazio, tudo em volta dele parece um monte de sucata. Ele fala a si mesmo, sem cessar, e diz que nem sequer chegou a viver.
O que leva Fausto a sentir seus triunfos como lixo é que, até esse momento, foram apenas conquistas da vida interior, apenas espiritua­lidade. Ao longo de anos, através da meditação e da experimentação, através dos livros e das drogas - ele é um humanista na acepção ver­dadeira; nada do que é humano lhe é estranho -, ele fez tudo o que pôde para aperfeiçoar sua capacidade de pensar, sentir e ver. Apesar disso, quanto mais sua mente se expandiu, quanto mais aguda se tornou sua sensibilidade, mais ele se isolou e mais pobres se tornaram suas relações com o mundo exterior - suas relações com outras pessoas, com a natureza, até mesmo com suas próprias necessidades e forças ativas. Sua cultura se desenvolveu no sentido de divorciá-lo da totali­dade da vida.
Vemos Fausto invocar seus poderes mágicos e uma esplendorosa visão cósmica se desdobra diante dos seus (e dos nossos) olhos. Mas ele se afasta do brilho visionário: "Um grande espetáculo! Sim, mas ape nas um espetáculo!". A visão contemplativa, ou mística ou matemática (ou ambas), mantém o visionário em seu lugar, o lugar de um espec­tador passivo. Fausto almeja ter com o mundo uma ligação mais vital, ao mesmo tempo mais erótica e mais ativa.

Natureza infinita, como poderei agarrá-la?
Onde estão suas tetas, fonte de toda vida (...)
por quem meu coração vazio anseia (455-60)
 
Seus poderes mentais, interiorizando-se, voltaram-se contra ele e se tornaram sua prisão. Ele luta para encontrar um meio de fazer trans­bordar a abundância de sua vida interior, de expressá-la através da ação no mundo exterior. Folheando seu livro mágico, encontra o sím­bolo do Espírito da Terra e imediatamente

Observo e sinto minhas forças crescerem,
resplandeço embriagado por um vinho novo.
Sinto coragem de mergulhar no mundo,
de carregar todas as dores e alegrias da terra;
de lutar com a tormenta, de agarrar e torcer,
de apertar a mandíbula dos náufragos e jamais desistir. (462-67)
 
Ele invoca o Espírito da Terra e, quando este se manifesta, de­clara seu parentesco com ele; todavia, o espírito ri dele e de suas aspi­rações cósmicas e diz-lhe que procure outro espírito, mais adequado às suas reais dimensões. Antes que se desvaneça diante dele, o Espírito da Terra lançará sobre Fausto em epíteto escarnecedor que terá larga res­sonância na cultura dos séculos seguintes: Ubermensch, "Super-ho­mem". Livros inteiros poderiam ser escritos sobre as metamorfoses desse símbolo; o que importa aqui é o contexto metafísico e moral em que se manifesta pela primeira vez. Goethe traz à tona esse Uber­mensch não tanto para expressar a luta titânica do homem moderno, mas para sugerir que muito dessa luta está mal colocada. O Espírito da Terra diz a Fausto: "Por que, em vez disso, você não luta para se tornar um Mensch - um autêntico ser humano?".
O problemas de Fausto não são apenas seus: eles dramatizam tensões mais amplas, que agitaram todas as sociedades européias nos anos que antecedem a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
A divisão social do trabalho na Europa moderna, da Renascença e da Reforma ao tempo do próprio Goethe, produziu uma vasta classe de produtores de cultura e idéias, relativamente independentes. Esses es­pecialistas em artes e ciências, leis e filosofia produziram, ao longo de três séculos, uma brilhante e dinâmica cultura moderna. Por outro lado, essa mesma divisão do trabalho, que propiciou a existência e o desenvolvimento dessa cultura moderna, manteve inacessíveis ao mun­do em redor suas novas descobertas e perspectivas, seu vigor e fecun­didade. Fausto participa de (e ajuda a criar) uma cultura que abriu uma amplitude e profundidade de desejos e sonhos humanos que se situam muito além das fronteiras clássicas e medievais. Ao mesmo. tempo, ele está inserido numa sociedade fechada e estagnada, ainda incrustada em formas sociais típicas do feudalismo e da Idade Média: formas como a orientação especializadora, que impede o seu desenvol­vimento, bem como o de suas idéias. Como portador de uma cultura dinâmica em uma sociedade estagnada, ele está dividido entre vida in­terior e vida exterior. Durante os sessenta anos que Goethe levou para terminar o Fausto, os modernos intelectuais encontrarão novas formas de luta para romper com seu isolamento. Esses anos assistirão ao nas­cimento de uma nova divisão social do trabalho no Ocidente, e com ele novas relações - plenas de aventuras, mas também, como o veremos, trágicas - entre o pensamento e a vida política e social.
A cisão por mim descrita na figura do Fausto goethiano ocorre em toda a sociedade européia e será uma das fontes básicas do Roman­tismo internacional. Mas tem uma ressonância especial em países social, econômica e politicamente "subdesenvolvidos". Os intelectuais alemães no tempo de Goethe foram os primeiros a ver as coisas desse modo, comparando a Alemanha com a Inglaterra e a França, e com a América em processo de expansão. Essa identidade "subdesenvolvida" foi às vezes fonte de vergonha; outras vezes (como no conservadorismo romântico alemão), fonte de orgulho; muitas vezes, uma volátil mistura de ambas. Essa mistura vai acontecerem seguida na Rússia do século XIX, caso que examinaremos em detalhes mais adiante. No século XX, os intelectuais do Terceiro Mundo, portadores de cultura de vanguarda em sociedades atrasadas, experimentaram a cisão fáustica com invul­gar intensidade. Sua angústia interior freqüentemente inspirou visões, ações e criações revolucionárias - como acontecerá a Fausto no final da segunda parte da tragédia goethiana. Com a mesma freqüência, porém, ela tem conduzido apenas às sombrias alamedas da futilidade e cio desespero - tal como acontece ao Fausto pioneiro, nas solitárias profundezas da sua noite.
Enquanto Fausto permanece sentado noite adentro, a caverna de sua interioridade cresce em escuridão e abismo, até que ele resolve ma­tar-se, trancando-se de uma vez por todas na tumba em que se trans formou seu espaço interior. Apanha um frasco de veneno. Contudo, no ponto extremo de sua mais sombria autonegação, Goethe o resgata e o inunda de luz e afirmação. O quarto inteiro treme, ouve-se um extraordinário bimbalhar de sinos lá fora, o sol se ergue e um impressio­nante coro angelical ressoa: porque é Domingo de Páscoa. "Cristo se ergueu, do útero da decadência!", eles dizem. "Irrompam de suas pri­sões, rejubilem-se com o dia!" Os anjos cantam com elevação, o frasco despenca dos lábios do condenado e ele está salvo. Esse milagre sempre incomodou muitos leitores, como um truque simplista, um arbitrário deus ex machina; mas é mais complexo do que parece. O que salva o herói de Goethe não é Jesus Cristo; Fausto se ri do manifesto conteúdo cristão do que ouve. O que o choca é outra coisa:

 No entanto, eu conheço tão bem esses sons, desde a infância,
que ainda agora eles me chamam de volta à vida. (769-70)
 
Esses sinos - como as aparentemente arbitrárias mas luminosas visões, sons e sensações que Proust e Freud irão explorar um século mais tarde - repõem Fausto em contato com sua infância, toda uma vida soterrada. As comportas da memória se abrem com fragor em sua mente, ondas de esquecidos sentimentos o atropelam = amor, desejo, ternura, unidade -, e ele se vê engolfado pela intensidade de um mondo infantil que sua vida de adulto o tinha forçado a esquecer. tomo um náufrago que se ergue à tona para ser salvo, Fausto inadver­tidamente se abriu a toda uma dimensão perdida do seu próprio ser, entrando em contato com fontes de energia capazes de renová-lo. Ao recuperar a lembrança da infância, os sinos da Páscoa o fazem chorar com alegria e enternecimento, ele se surpreende chorando novamente, pela primeira vez desde que deixou de ser criança. Agora a onda trans­borda, e ele pode emergir da caverna do seu quarto para a ensolarada primavera; em contato com as mais profundas matrizes de seus senti­mentos, ele está pronto para iniciar nova vida no mundo exterior. (7)
Esse instante do renascimento de Fausto, composto em 1799 ou 1 M(X) e publicado em 1808, é um dos pontos altos do Romantismo eu­ropeu. (O Fausto de Goethe contém vários desses pontos, e exploraremos alguns deles.) É fácil perceber como essa cena prefigura algumas das grandes realizações da arte e do pensamento modernista do século XX: a ligação mais óbvia é com Freud, Proust e seus vários seguidores. Mas talvez não esteja claro em que medida a redescoberta da infância, empreendida por Fausto, está relacionada com outro de nossos temas básicos, e também o tema da segunda parte do Fausto: a moderniza­ção. De fato, muitos escritores dos séculos XIX e XX veriam a derra­deira metamorfose de Fausto, seu papel como fomentador industrial, em termos de uma radical negação da liberdade emocional que nós o vi­mos reencontrar aqui. Toda a tradição conservadora, de Burke a D. H. Lawrence, vê o desenvolvimento da indústria como uma radical nega­ção do desenvolvimento emocional. (8) Na visão de Goethe, porém, as rupturas psicológicas da arte e do pensamento romântico - em particular a redescoberta dos sentimentos da infância - podem liberar tre­mendas energias humanas, capazes de gerar amplas doses de poder e iniciativa a serem desviados para o projeto de reconstrução social. As­sim, a importância da cena dos sinos para o desenvolvimento de Fausto - e do Fausto - revela a importância do projeto romântico de libe­ração psíquica no processo histórico da modernização.
Primeiro, Fausto se emociona ao voltar para o mundo. É Do­mingo de Páscoa, e milhares de pessoas atravessam as portas da cidade para usufruir alguns breves momentos de sol. Fausto acompanha a multidão - multidão que ele tinha evitado em toda a sua vida adulta - e se sente revigorado pela vividez e o colorido da variedade humana. Ele nos oferece uma tocante celebração lírica (903-40) da vida - da vida natural na primavera, da vida sobrenatural na Ressurreição da Páscoa, da vida humana e social (especialmente a vida das oprimidas classes inferiores) na pública festividade do feriado e da sua própria vida emocional nesse retorno à infância. Ele sente agora a ligação entre os seus fechados e esotéricos sofrimentos e esforços e aqueles do hu­milde trabalhador urbano ao seu lado. Após muito tempo, pessoas individualizadas emergem da multidão; embora não vissem Fausto há anos, eles o reconhecem imediatamente, saúdam-no com afeição e pa­ram para conversar e lembrar. Suas lembranças revelam-nos outra in­suspeitada dimensão da vida de Fausto. Ficamos sabendo que o Doutor Fausto, filho de um médico, iniciou sua carreira também como médico, praticando medicina e saúde pública entre os pobres do distrito. A princípio, ele se alegra em voltar à antiga vizinhança, gratificado pelos bons sentimentos das pessoas que cresceram com ele. Mas seu coração logo sucumbe; à medida que as memórias retornam, ele se lembra por que abandonou sua velha casa. O trabalho de seu pai, ele o sente agora, era o trabalho de um ignorante amador. Praticar a medicina como uma habilidade manual, na melhor tradição da Idade Média, é tatear alea­toriamente, de olhos vendados, no escuro; embora as pessoas manifes­tem amor, tanto por ele quanto por seu pai, ele está certo de que ambos mataram muito mais seres humanos do que salvaram, e a culpa que ele havia bloqueado enfim aflora. Foi para superar essa herança fatal, ele o lembra agora, que Fausto desistiu de todo o seu trabalho prático com pacientes, fixando-se em sua solitária investigação intelectual, uma investigação que conduziu, ao mesmo tempo, ao conhecimento e à in­tensificação do isolamento e quase o levou à morte na noite anterior.
Fausto começa o dia com uma nova esperança, apenas para ver-­se lançado em uma nova forma de desespero. Ele sabe que não pode retornar ao resguardado conforto de seu lar na infância - embora saiba também que não pode desviar-se tanto de casa, como o fez ao longo desses anos. Sabe que precisa estabelecer uma conexão entre a solidez e o calor da vida entre pessoas - a vida cotidiana vivida na fonte matricial de uma comunidade concreta - e a revolução cultural e intelectual que eclodiu em sua mente. Essa é a chave do seu famoso lamento: "Duas almas, oh, coexistem em meu peito". Ele não pode continuar vivendo como uma mente desencarnada, audaz e brilhante, solta no vácuo; mas também não pode abdicar da mente e voltar a viver nesse mundo que havia abandonado. Ele precisa participar da vida social de uma maneira que faculte ao seu espírito aventuroso uma contínua expansão e crescimento. Porém, serão necessários "os pode­res ocultos" para unir essas polaridades, para fazer tal síntese funcionar.
Para vislumbrar a ambicionada, síntese,  Fausto precisará abarcar toda uma nova série de paradoxos, cruciais para a estrutura tanto da psique moderna como da moderna economia. O Mefistófeles de Goethe se materializa como o grande mestre desses paradoxos - uma versão moderna e complicada de seu papel cristão tradicional como o pai das mentiras. Em uma ironia goethiana típica, ele aparece para Fausto justamente quando este se sente mais perto de Deus. Fausto retorna uma vez mais a seu quarto solitário para meditar sobre a condição hu­mana. Abre a Bíblia, no início do Evangelho segundo São João: "No princípio era o Verbo". Considerando esse princípio cosmicamente ina­dequado, procura uma alternativa e finalmente escolhe e escreve um novo princípio: "No princípio era a Ação". Ele se entusiasma com a idéia de um Deus que se define através da ação, através do ato pri­mordial de criar o mundo; ilumina-se de vibração pelo espírito e pelo poder desse Deus, e se declara pronto a reconsagrar sua vida a ações amplamente criadoras. Seu Deus será o Deus do Velho Testamento, do Livro do Gênesis, que se define e demonstra sua divindade criando os céus e a terra.2
 É nesse exato momento - para desenvolver o sentido da nova revelação de Fausto e para lhe dar o poder de imitar o Deus concebido por ele - que o diabo aparece. Mefistófeles explica que sua função é personificar o lado sombrio, não só da criatividade mas da própria divindade, e com isso esclarece o subtexto do mito judaico-cristão da criação. Pode Fausto ser tão ingênuo a ponto de acreditar que Deus realmente criou o mundo "a partir do nada"?  Com efeito, nada provém de nada; é apenas em função "de tudo aquilo que você chama pecado, destruição, mal" que pode ocorrer qualquer criação. (A criação do mundo, por Deus, "usurpou o antigo posto e domínio da Mãe Noite".) Assim, diz Mefisto,

Eu sou o espírito que tudo nega!
E assim é, pois tudo o que existe
 merece perecer miseravelmente.
 
Não obstante, ele é ao mesmo tempo "parte do poder que não criaria / nada a não ser o mal, e no entanto cria o bem". (1335 segs.) Paradoxalmente, assim como a força e a ação criativa de Deus são cosmicamente destrutivas, a concupiscência demoníaca pela destruição vem a ser criativa. Só se trabalhar com esses poderes destrutivos, Fausto será capaz de criar alguma coisa no mundo: de fato, só traba­lhando com o mal, não desejando "nada além do mal", é que ele pode terminar do lado de Deus, "criando o bem". O caminho para o paraíso é pavimentado de más intenções. Fausto anseia por destravar as fontes de toda criatividade; em vez disso, ele se encontra agora face a face com o poder de destruição. Os paradoxos vão ainda mais fundo: Fausto não será capaz de criar nada a não ser que se prepare para deixar que tudo siga o seu próprio rumo, para aceitar o fato de que tudo quanto foi criado até agora - e, certamente, tudo quanto ele venha a criar no futuro - deve ser destruído, a fim de consolidar o caminho para mais criação. Essa é a dialética que o homem moderno deve apreender para viver e seguir caminhando; e é a dialética que em pouco tempo envol­verá e impelirá a moderna economia, o Estado e a sociedade como um todo. 3
Os receios e escrúpulos de Fausto são intensos. Anos antes, lem­bremo-nos, ele não apenas abandonara a prática da medicina mas de­sistira de qualquer atividade prática, porque ele e seu pai tinham inad vertidamente matado pessoas. A mensagem de Mefisto não consiste em acusar ninguém pelas baixas da criação, pois essa é justamente a lei da vida. Aceite a destrutividade como elemento integrante da sua partici­pação na criatividade divina, e você poderá lançar fora toda culpa e agir livremente. Nada de sentir-se inibido pelo freio da dúvida moral: Deveria fazê-lo? Na ampla estrada do autodesenvolvimento, a única questão vital é: Como fazê-lo? De início, Mefisto mostrará como, a Fausto; mais tarde, à medida que se desenvolva, o herói aprenderá a fazê-lo por si próprio.
Como fazê-lo? Mefisto oferece alguns breves conselhos:

Pois bem, você tem mãos e pés,
cabeça e artes inteiramente suas;
se posso encontrar prazer nas coisas,
isso por acaso as torna menos minhas?
Se eu posso comprar seis cavalos,
a força deles não se tornará minha?
Posso correr com eles, e ser um verdadeiro homem,
como se suas dúzias de patas fossem minhas. (1820-28)
 
O dinheiro funcionará como um do mediadores cruciais: como diz Lukács, "o dinheiro como extensão do homem, como poder sobre outros homens e circunstâncias"; "mágica ampliação do raio de ação humana por meio do dinheiro". Fica óbvio, assim, que o capitalismo é uma das forças essenciais no desenvolvimento de Fausto. (9) Porém, há vários temas mefistofélicos, aí, que ultrapassam o campo de ação da economia capitalista. Primeiro, a idéia evocada nos primeiros versos de que a mente e o corpo humanos, com todas as suas capacidades, estão aí para serem usados, quer como ferramentas de aplicação imediata, quer como recursos para um desenvolvimento de longo termo. Corpo e alma devem ser explorados com vistas a um máximo retorno - mas não em dinheiro, e sim, em experiência, intensidade, vida vivida, ação, criatividade. Fausto se alegrará em servir-se do dinheiro para atingir esses fins (Mefisto fornecerá o suprimento necessário), todavia a acu­mulação de dinheiro não é um dos seus objetivos. Ele se tornará uma espécie de capitalista simbólico, mas seu capital, que ele colocará inces­santemente em circulação, no encalço de uma expansão ininterrupta, será ele próprio. Isso tornará seus objetivos complexos e ambíguos, de uma maneira desconhecida pela linha de conduta capitalista. Por isso, diz Fausto,

(...) de ora em diante
às dores todas escancaro est'alma.
As sensações da espécie humana em peso,
quero-as eu dentro de mim; seus bens, seus males
mais atrozes, mais íntimos, se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tateie; assim me torno
eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo
perdida for, me perderei com ela. (1768-75)
 
Temos aqui uma emergente política econômica de autodesenvolvimen­to que pode transformar a mais humilhante perda humana em fonte de ganho e crescimento psíquico.
A economia de Mefisto é mais primitiva, mais convencional, mais próxima do primarismo da própria economia capitalista. Mas não há nada de intrinsecamente burguês nas experiências que ele pretende levar Fausto a comprar. Os "seis cavalos" mencionados nos versos su­gerem que o bem mais valioso, segundo a perspectiva de Mefisto, é a velocidade. Em primeiro lugar, a velocidade tem sua utilidade: quem quer que pretenda realizar grandes empreendimentos no mundo preci­sará mover-se para todos os lados, com rapidez. Além disso, porém, a velocidade gera uma aura nitidamente sexual: quanto mais rápido ele puder "correr com eles", mais "verdadeiro homem" - mais mascu­lino, mais sexual - Fausto será. Essa equação de dinheiro e veloci­dade, sexo e poder, está longe de ser exclusiva do capitalismo. É igual­mente fundamental para a mística coletivista do socialismo do século XX e para as várias mitologias populistas do Terceiro Mundo: os imen­sos posters e grupos escultórios nas praças públicas, evocando grupos de pessoas em marcha, seus corpos arfando de energia e potência, como se fossem um corpo só, uma onda impetuosa que emerge para
desbancar o estéril e combalido Ocidente. Tais aspirações são univer­salmente modernas, qualquer que seja a ideologia sob a qual a moder­nização se dá. Universalmente moderna, também, é a pressão fáustica para utilizarmos todas as partes que nos formam e a todos os demais, a fim de nos impelir e aos outros o mais longe que pudermos ir.
E aqui desponta outra questão universalmente moderna: afinal para onde será que estamos indo? Até determinado ponto, o ponto em que realiza sua negociação, Fausto sente que o fundamental é continuar movendo-se: "Se eu aceito parar (Wie ich beharre) serei um escravo" (1692-1712): ele sabe que entregará sua alma ao diabo no primeiro minuto de repouso - ainda que de satisfação. Ele se regozija com a possibilidade de "mergulhar no turbilhão do tempo, na enxurrada dos even­tos" e diz que o que importa é o processo, não o resultado: "um homem se afirma pela atividade infatigável" (1755-60). No entanto, alguns mo­mentos depois, ele se preocupa com a espécie de homem que vai aca­bar provando ser. Deve haver algum tipo de objetivo último para a vida humana; e

Ah, que serei eu se não puder
atingir a coroa da humanidade, que se ri
dos nossos anseios, suplicando inutilmente? (1802-05)
 
Mefistófeles lhe responde de uma maneira tipicamente críptica e equívoca: "Você está no fim - o que você é". Fausto carrega essa ambigüidade porta afora e impregna com ela o mundo em seu redor,'à medida que caminha.

SEGUNDA METAMORFOSE: O AMADOR

Ao longo de todo o século XIX, a "Tragédia de Gretchen", no fecho da primeira parte do Fausto, foi considerada como o coração da, obra; foi imediatamente canonizada e celebrada vezes sem conta como uma das grandes histórias de amor de todos os tempos: Leitores contemporâneos e espectadores, porém, mostram-se algo céticos e impa­cientes com essa história exatamente por alguns dos motivos pelos quais os antigos a amaram: a heroína de Goethe é simplesmente demasiado boa para ser verdadeira - ou para ser interessante. Sua singela ino­cência e sua pureza imaculada pertencem mais ao mundo do. melo­drama sentimental do que à tragédia. Contudo, eu gostaria de propor que Gretchen é uma figura mais dinâmica, mais interessante e mais genuinamente trágica do que estamos habituados a supor. Sua força e profundidade se mostrarão de modo mais nítido, se encararmos o Fausto de Goethe como uma história, e uma tragédia, do desenvolvimento.
Essa passagem conta com três protagonistas: a própria Gretchen, Fausto e o "pequeno mundo" - o mundo fechado da cidadezinha re­ligiosa e devota da qual Gretchen emerge. Esse foi o mundo da infância de Fausto, um mundo ao qual, em sua primeira metamorfose, ele não pôde adaptar-se, mas que, no seu momento de mais fundo desespero, trouxe-o de volta à vida; é o mundo que, em sua derradeira metamorfose, ele destruirá por completo. No momento de sua segunda meta­morfose, ele encontrará meios de enfrentar esse mundo, de interagir com ele; ao mesmo tempo, despertará em Gretchen modos de ação e interação que são exclusivamente dela. Seu caso de amor irá dramati­zar o trágico impacto - a um tempo explosivo e implosivo - de dese­jos e sensibilidades modernos em um mundo tradicional.
Antes de sondar a tragédia que subjaz ao final da história, te­remos de mencionar a ironia de base que se dissemina por essa mesma história, desde o princípio: no curso de suas negociações com o diabo, Fausto se torna um homem genuinamente melhor. O modo como Goe­the faz que isso aconteça merece atenção especial. Como muitos ho­mens e mulheres de meia-idade que vivem uma espécie de renasci­mento, Fausto sente seus novos poderes como poderes sexuais; a vida erótica é a esfera na qual ele aprende inicialmente a viver e agir. Após algum tempo na companhia de Mefisto, Fausto se torna radiante e excitado. Algumas das mudanças decorrem de elementos artificiais: roupas chiques e charmosas (ele nunca havia ligado para a própria aparência; até então, todo o seu rendimento era convertido em livros e instrumentos) e poções mágicas da Cozinha da Feiticeira, que fazem Fausto parecer e sentir-se trinta anos mais jovem. (Esta última obser­vação tem um especial apelo para aqueles - especialmente os de meia­ idade - que viveram na década de 1960.)
Além disso, o papel e o status social de Fausto mudam substan­cialmente: provido de dinheiro fácil e mobilidade, ele está livre agora para abandonar a vida acadêmica (como ele o diz, ele passou anos sonhando fazê-lo) e mover-se no mundo com desenvoltura, como um sonhador e atraente estranho cuja marginalidade faz dele uma figura de mistério e romance. A mais importante das concessões do diabo, porém, é a menos artificial, a mais profunda e mais duradoura: ele encoraja Fausto a "confiar em si mesmo"; assim que Fausto aprende a fazê-lo, passa a esbanjar charme e auto-segurança, que, junto com seu anterior brilho e energia, são suficientes para seduzir qualquer mulher. Moralistas vitorianos como Carlyle e G. H. Lewes (o primeiro grande biógrafo de Goethe e amante de George Eliot) torceram o nariz para essa metamorfose e conclamaram seus leitores a resistir a ela, brava­mente, em nome da transcendência final. Mas a visão do próprio Goe­the sobre a transformação de Fausto é muito mais afirmativa. Fausto não está a ponto de se tornar um Don Juan, como Mefistófeles o incita a ser, agora que tem a aparência, o dinheiro e os recursos necessários. Ele é uma pessoa demasiado séria para brincar com corpos e almas, alheios ou próprios. De fato, ele se torna ainda mais sério do que antes, porque o âmbito de suas preocupações ampliou-se. Após uma vida de auto-absorção cada vez mais estreita, ele de repente se surpreende inte­ressado em outras pessoas, sensível a seus sentimentos e necessidades, pronto não apenas para o sexo mas também para o amor. Se não con­seguirmos ver o real e admirável crescimento humano que ele experi­menta, seremos incapazes de compreender o seu alto custo humano.
Vimos de início Fausto deslocado do mundo tradicional em que cresceu, mas fisicamente ainda vinculado a ele. Então, através da mediação de Mefisto e seu dinheiro, ele foi capaz de se tornar física e espiritualmente livre. Agora ele está claramente descomprometido com o "pequeno mundo"; pode retornar a ele como um estranho, abran­gê-lo como um todo, a partir de sua perspectiva emancipada - e, iro­nicamente, apaixonar-se por ele. Gretchen - a jovem que se torna o primeiro poema de Fausto, depois sua primeira amante, por fim sua primeira vítima - o atrai antes de mais nada como símbolo de tudo o que de mais belo ele havia abandonado e perdido no mundo. Ele se deixa enfeitiçar por sua inocência infantil, sua simplicidade provinciana, sua humildade cristã.
Em determinada cena, ele vagueia pelo quarto dela, um quarto asseado mas pobre de uma pequena casa de família, preparando-se para deixar-lhe um presente secreto. Acaricia a mobília e celebra o quarto como "um brilho", a casa como "um reino do paraíso", a pol­trona onde se senta como "um trono patriarcal".

Que sentimento de calma me envolve,
De ordem e de completa satisfação!
Que prodigalidade nessa pobreza,
E nessa prisão, ah, que arrebatamento! (2691-94)
 
O idílio voyeurístico de Fausto é quase insuportavelmente incô­modo para nós, porque sabemos - por meios que até esse ponto ele desconhece - que sua homenagem ao quarto dela (leia-se: o corpo dela, a vida dela) faz parte de uma manobra, é o primeiro passo de um processo fadado a destruí-lo. E não sem alguma malícia da parte dele: só destruindo o seu domínio é que ele será capaz de ganhar seu amor ou expressar o seu próprio. Por outro lado, ele não seria capaz de subver­ter o mundo dela se ela fosse tão feliz em casa como ele supõe. Veremos como, na verdade, ela é tão inquieta aí quanto Fausto o era em seu estúdio, embora lhe falte o vocabulário para expressar seu desconten­tamento, até a aparição de Fausto. Não fosse por essa inquietação in­terior e ela seria insensível a Fausto; ele não teria nada a lhe oferecer. Seu trágico romance não-se desenvolveria se eles não fossem espíritos afins, desde o início.
Gretchen entra, sentindo estranha comoção, e canta para si mes­ma uma tocante balada de amor e morte. Então descobre o presente - jóias providenciadas por Mefisto; coloca-as e se olha no espelho. Enquanto se contempla, percebemos que Gretchen é mais afeita às coisas mundanas do que Fausto espera. Ela sabe tudo a respeito de homens que adulam moças pobres com presentes valiosos: como eles se comportam depois e como a história normalmente termina. Ela sabe, tam­bém, como a pobre gente a sua volta cobiça essa espécie de coisas. É um fato doloroso da vida que, a despeito da atmosfera de pio moralismo que sufoca essa cidade oprimida, a amante de um homem rico vale muito mais que um santo faminto. "Pois o ouro acirra os ânimos,/ Depende do ouro tudo o que pesa sobre nós, os pobres!" (2802-04) Ainda, por causa de toda a sua precaução, sabe-se que algo real e autenticamente valioso está acontecendo a ela. Nunca ninguém lhe deu nada; ela cresceu pobre, tanto de amor como de dinheiro; nunca pen­sou em si como merecedora de presentes ou das emoções que presentes supostamente implicam. Agora, enquanto se olha no espelho - talvez pela primeira vez na vida - uma revolução acontece em seu íntimo. De súbito ela se torna reflexiva; capta a possibilidade de se tornar dife­rente, de mudar - a possibilidade de se desenvolver. Se alguma vez ela se sentiu à vontade nesse mundo, nunca mais voltará a adaptar-se a ele.
À medida que o caso evolui, Gretchen aprende a ser ao mesmo tempo desejada e amada, ao mesmo tempo ansiosa e amorosa; é for­çada a desenvolver muito rápido um novo sentido de si mesma. Ela se queixa de que não é esperta. Fausto diz-lhe que isso não importa, que ele a ama por sua doce brandura, "o maior dos dons da natureza"; mas na verdade Goethe mostra que ela se torna cada vez mais esperta, pois só através da inteligência é possível enfrentar os abalos emocionais que está vivendo. Sua inocência precisa desaparecer - não apenas sua virgindade mas acima de tudo sua ingenuidade - pois ela necessita construir e manter uma dupla vida, atenta à vigilância da família, vi­zinhos, padres; atenta às fortes pressões daquele pequeno mundo fe­chado e provinciano. Ela deve aprender a desafiar sua própria cons­ciência culpada, uma consciência que pode aterrorizá-la muito mais violentamente do que qualquer força externa. À medida que seus novos sentimentos se, chocam com seu antigo papel social, ela chega a acre­ditar que suas necessidades próprias são legítimas e importantes, e a sentir uma nova espécie de auto-respeito. A criança angelical amada por Fausto desaparece diante de seus olhos; o amor faz que ela cresça.
Fausto se assusta ao observar esse crescimento; ele não se dá conta de que é um crescimento precário, pois carece de suporte social e não tem qualquer simpatia ou confirmação a não ser da parte do próprio Fausto. A princípio, o desespero dela se manifesta através da  pai­xão desenfreada, e ele se delicia. Porém, em pouco tempo o ardor se con­verte em histeria, para além do que ele pode controlar. Ele a ama, mas no contexto de uma vida plena, com passado e futuro, e em meio a um largo mundo que está decidido a explorar; para ela, o amor por ele ignora qualquer contexto e constitui seu único apoio na vida. Forçado a enfrentar o intenso desespero das necessidades dela, Fausto entra em pânico e abandona a cidade.
Seu primeiro movimento o conduz a uma romântica "floresta e caverna", onde ele medita solitário, imerso em embevecimento lírico, em meio à riqueza, à beleza e à prodigalidade da Natureza. A única coisa que perturba a sua serenidade, então, é a presença de Mefistó­feles, lembrança dos desejos que comprometem sua paz interior. Me­fisto expõe uma severa crítica à adoração da Natureza, tipicamente romântica, de Fausto. Essa Natureza, assexuada, desumanizada, ex­purgada de conflitos, submetida apenas à calma contemplação, é uma mentira covarde. Os desejos que o conduziram a Gretchen são tão au­tênticos quanto tudo o que ele encontra nessa idílica paisagem. Se Fausto pretende realmente unir-se à Natureza, seria melhor enfrentar as conseqüências humanas de sua própria natureza emergente. En­quanto ele faz poesia, a mulher cuja "naturalidade" ele amava e com quem fazia amor está cada vez mais afastada dele. Fausto se atormenta com sentimento de culpa. Na verdade, ele exagera essa culpa, minimi­zando a vontade própria e a iniciativa de Gretchen em seu caso amo­roso.
Goethe se serve disso para mostrar como uma emoção culposa pode ser autoprotetora e ilusória. Se ele é uma pessoa tão inteiramente desprezível, alvo do ódio e da zombaria de todos os deuses, que espécie de benefício poderá trazer a Gretchen? O diabo, de maneira surpreen­dente, age aí como sua consciência e submerge-o no mundo da respon­sabilidade humana e do respeito mútuo. Mas ele se safa depressa e empreende outro movimento ainda mais excitante. Fausto passa a sen­tir que Gretchen, por lhe ter dado tudo o que podia dar, despertou nele um apetite que ela não é capaz de saciar. Ele se dirige, no meio da noite, às montanhas Harz, com Mefisto, para celebrar um Walpurgis­nacht, um orgiástico Sabá de Feiticeiras. Ali desfruta mulheres incom­paravelmente mais experientes e despojadas; drogas ainda mais ine­briantes; estranhas e maravilhosas conversações que valem por verda­deiras viagens. A cena, delícia de coreógrafos e cenógrafos inventivos, desde o início do século passado, é uma das peças de resistência de Goethe; com isso, o leitor ou o espectador, como o próprio Fausto, se diverte. Ë só no fim da noite que ele tem uma iluminação agourenta, pergunta pela moça que havia abandonado e vem a saber do pior.
Enquanto Fausto esteve longe, expandindo-se para além do al­cance de Gretchen, o "pequeno mundo" de que ele a havia arrancado - aquele mundo de "ordem e completa -satisfação" que achara tão doce - desabou sobre ela. Assim que a notícia correu, seus antigos amigos e vizinhos caíram sobre Gretchen com bárbara crueldade e fú­ria vingativa. Ouvimos Valentino, seu irmão, inexpressivo soldado, di­zer como a pusera num pedestal, vangloriando-se de sua virtude; agora, no entanto, qualquer moleque pode rir-se dele, de modo que ele a odeia do fundo do coração. A medida que ouvimos - e Goethe sublinha suas diatribes para termos certeza de que entendemos -, damo-nos conta de que ele nunca havia reparado nela então, como não repara agora. Antes ela era um símbolo do paraíso, agora um símbolo do inferno; todavia, sempre um suporte para seu status e vaidade, nunca uma pes­soa em seu direito pleno - portanto, Goethe tocando o mecanismo íntimo da família no "pequeno mundo". Valentino ataca Fausto na rua, este o fere mortalmente (com a ajuda de Mefisto) e foge para salvar a vida. Em seu último suspiro, Valentino ofende a irmã com obsceni­dades, acusa-a por sua morte e incita o povo da cidade a linchá-la. Em seguida, morre sua mãe, e outra vez ela é acusada. (A culpa é de Me­fisto, mas nem Gretchen nem seus perseguidores se dão conta.) Depois ela tem um filho - filho de Fausto - e novos gritos de vingança se ouvem. As pessoas da cidade, felizes de encontrarem um bode expia­tório para suas próprias culpas e luxúria, clamam por sua morte. Na ausência de Fausto, ela se vê inteiramente desprotegida - num mundo ainda feudal onde não apenas o status mas a sobrevivência dependem da proteção dos mais poderosos. (Fausto, é claro, gozou sempre da melhor proteção possível.)
Gretchen leva seu lamento à igreja, na esperança de aí encontrar conforto. Fausto, é bom lembrar, fizera o mesmo: os sinos da igreja o livraram da morte. Mas nessa oportunidade Fausto pôde relacionar-se com o cristianismo, assim como se relacionou com as coisas e pessoas em volta, incluindo a própria Gretchen: pôde ficar com o que precisava para seu próprio desenvolvimento e abandonou o resto. Gretchen é de­masiado correta e honesta para fazer uma seleção semelhante. Por isso, a mensagem cristã, que ela interpreta como símbolo de vida e alegria, se opõe de modo violento às suas intenções: "O dia da ira, esse dia dissolverá o mundo em fogo", é o que ela ouve. Tormento e aflição é tudo quanto seu mundo pode oferecer-lhe: os sinos que salvaram a vida de seu amante agora dobram pela sua condenação. Ela sente que tudo se fecha em seu redor: o órgão a ameaça, o coro lhe dissolve o coração, os pilares de pedra a aprisionam, o teto. abobadado desaba sobre ela. Ela grita. e cai no solo em delírio e horror. Esta cena terrível (3776­-3834), expressionista em sua escura e desolada intensidade, constitui uma crítica particularmente mordaz ao mundo gótico como um todo - um mundo que os filósofos conservadores iriam idealizar de modo exa­gerado, sobretudo na Alemanha do século seguinte. Talvez, em algum momento, a visão gótica do mundo tenha oferecido à humanidade um ideal de vida e ação, de luta heróica na direção do paraíso; agora, porém, como Goethe a apresenta no final do século XVIII, tudo o que ela tem a oferecer é o peso da morte subjugando as pessoas, destruindo seus corpos, estrangulando suas almas.
Os acontecimentos se precipitam: o filho de Gretchen morre, ela é lançada no cárcere, julgada como assassina e condenada à morte. Em uma derradeira cena de forte comoção, Fausto vai à sua cela no meio da noite. De início, ela não o reconhece. Toma-o pelo carrasco e, num gesto insano mas terrivelmente apropriado, oferece-lhe o próprio corpo para o sacrifício derradeiro. Ele lhe jura seu amor e tenta convencê-la a fugir com ele. Tudo pode ser arranjado: ela necessita apenas caminhar até a porta e estará livre. Gretchen se comove, todavia não se moverá. Alega que o abraço de Fausto é frio, que ele em realidade não a ama. E há alguma verdade nisso: embora ele não queira que ela morra, tam­pouco gostaria de voltar a viver com ela. Impelido na direção de um novo universo de experiências, ele sente as necessidades e medos dela como uma espécie de arrebatamento pernicioso. Mas a intenção de Gretchen não é culpá-lo: mesmo que ele a quisesse, mesmo que ela se dispusesse a escapar, "De que adianta voar? Eles mentem ao dizer que me esperam" (4545). Eles mentem dentro dela. Ainda quando ela tenta divisar a liberdade, a imagem da própria mãe se ergue, sentada em um rochedo (a Igreja? o Abismo?), balançando a cabeça, barrando o cami­nho. Gretchen permanece onde está e morre.
Fausto adoece de culpa e remorso. Num campo desolado, num (fia sombrio, ele enfrenta Mefisto e clama contra seu destino. Que es­pécie de mundo é esse onde as coisas acontecem dessa forma? Nesse ponto, toda a poesia fenece: Goethe enquadra essa cena em prosa seca e descarnada. A primeira resposta do diabo é ríspida e cruel: "Por que você aceita parceria (Gemeinschaft) conosco se não pode levá-la adian­te? Você quer voar mas fica logo aturdido". O crescimento humano tem custos humanos; qualquer um que o deseje tem de pagar o preço, e o preço é altíssimo. Em seguida ele acrescenta algo que, embora soe rude, parece conter algum conforto: "Ela não é a primeira". Se a devastação e a ruína fazem parte intrínseca do processo humano de desenvolvimento, Fausto pode ser pelo menos em parte absolvido de culpa pessoal. O que ele poderia ter feito? Ainda que tivesse pretendido estabelecer-se com Gretchen, deixando de ser "fáustico " - admitindo­-se que o diabo o permitisse, contrariando os termos do acordo -, ele jamais se adaptaria ao mundo dela. Seu único encontro direto com um representante desse mundo, Valentino, resultou em violência mortal. Claramente, não há possibilidade de diálogo entre um homem aberto e um mundo fechado.
Mas a tragédia tem outra dimensão. Mesmo que, de algum modo, Fausto pretendesse e estivesse apto a adaptar-se ao mundo de Gretchen, ela própria não o desejaria e não o conseguiria. Movendo se de maneira dramática em direção à sua vida, Fausto põe Gretchen em movimento, num curso determinado por ela mesma. Porém, sua trajetória estava fadada a terminar mal, por razões que Fausto devia ter antevisto: razões de sexo e razões de classe. Mesmo em um mundo de enclaves feudais, um homem com muito dinheiro e sem vínculos com a terra e a família, e sem ocupação, tem virtualmente uma ilimi­tada liberdade de movimento. Uma mulher pobre, atrelada à família, não tem qualquer liberdade de movimento. Está destinada a ver-se à mercê de homens que não têm comiseração por uma mulher que não conhece seu lugar. No seu mundo fechado, loucura e martírio são os únicos caminhos à sua disposição. Fausto, se chegou a aprender al­guma coisa do destino de Gretchen, aprende que, se deseja envolver-se com outros em benefício do desenvolvimento próprio, deve assumir parte da responsabilidade pelo desenvolvimento alheio - ou, antes, deve ser responsável pelos seus destinos.
Além disso, para sermos justos com Fausto, devemos reconhecer que Gretchen deseja com intensidade ser condenada. Existe alguma coisa aterradoramente voluntária na maneira como ela morre: ela permite que tudo se volte contra si mesma. Sua auto-aniquilação talvez corresponda a loucura, mas ao mesmo tempo há algo aí de estranha­mente heróico. A obstinação com que enfrenta a própria morte mostra-a como algo mais do que vítima indefesa, quer do amante, quer da sociedade: ela se torna um herói trágico, em seu pleno direito. Sua au­todestruição é uma forma de autodesenvolvimento, tão autêntico quan­to o do próprio Fausto. Tal como ele, ela está tentando ir além das li­mitadas fronteiras da família, da Igreja e da cidade, um mundo onde a devoção cega e a autocastração são os únicos caminhos da virtude. Po­rém, enquanto ele procura escapar do mundo medieval pela criação de novos valores, ela toma a sério os velhos valores e tenta realmente viver à altura deles. Embora rejeite as convenções do mundo materno como formas vazias, ela capta e agarra o espírito que subjaz a essas formas: um espírito de dedicação e empenho ativos, que tem a coragem moral de re­nunciar a tudo, incluindo a própria vida, em nome da fé nas suas cren­ças mais fundas e queridas. Fausto luta contra o velho mundo, de que ele se libertou, transformando-se em um novo tipo de pessoa, que se afirma e se conhece, que na verdade se torna ela própria através de uma auto-expansão interminável, sem descanso. Gretchen colide de modo igualmente radical com esse mundo, assumindo suas mais eleva­das qualidades humanas: pura concentração e empenho do ser em no­me do amor. Seu caminho com certeza é mais belo, mas o de Fausto, enfim, é mais frutífero: o caminho dele pode ajudar o indivíduo a sobreviver, a lutar contra o velho mundo com mais possibilidades de êxito, à medida que o tempo passa.
Esse velho mundo é que vem a ser o protagonista final da tragédia de Gretchen. Quando Marx, no Manifesto Comunista, descreve as autênticas e revolucionárias conquistas da burguesia, a primeira delas é que a burguesia "pôs um fim a todos os condicionalismos feudais, patriarcais e idílicos". A primeira parte do Fausto se dá num momento em que, após séculos, esses condicionalismos feudais, patriarcais e so­ciais estão vindo abaixo. A esmagadora maioria das pessoas vive ainda em "pequenos mundos", como o de Gretchen, e esses mundos, como vimos, são extremamente fortes. No entanto, essas pequenas cidades celulares começam a ruir: primeiro, através do contato com explosivas figuras marginais, de fora - Fausto e Mefisto, acenando com dinhei­ro, sexo e idéias, são os clássicos "agitadores alienígenas" tão caros à mitologia conservadora -, mas, acima disso, através da implosão, acionada pelo incipiente desenvolvimento interior que seus próprios fi­lhos, como Gretchen, começam a experimentar. A draconiana resposta tio meio ao anseio espiritual e sexual de Gretchen constitui, na verdade, a declaração de que os velhos não pretendem adaptar-se ao desejo de mudança de seus filhos. Os sucessores de Gretchen irão direto ao pon­to: eles arrancarão e viverão a partir do ponto em que ela parou e mor­reu. Nos dois séculos entre o tempo de Gretchen e o nosso, centenas de "pequenos mundos" serão esvaziados, transformados em conchas va­zias, e seus jovens partirão na direção de grandes cidades, fronteiras mais amplas, novas nações, em busca da liberdade de pensar, amar e crescer. Ironicamente, portanto, a destruição de Gretchen pelo peque­no mundo revelará ser um momento-chave no processo de sua própria destruição. Relutante ou incapaz de se desenvolver junto com seus fi­lhos, a cidade fechada se converterá em cidade-fantasma. Os fantas­mas de suas vítimas serão abandonados com uma última gargalhada.4
  Nosso século tem sido prolífico na invenção de fantasias idealizadas da vida em cidadezinhas tradicionais. A mais popular e influente dessas fantasias está no livro de Ferdinand Toennies Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e Sociedade, 1887). A tragédia de Gretchen, segundo Goethe, nos fornece o que deve ser o retrato mais devastador, em literatura, de uma Gemeinschaft. Tal retrato devia gravar para sempre em nossas mentes a crueldade e brutalidade de tantas formas de vida que a modernização varreu da face da Terra. Enquanto nos lembrarmos do destino de Gretchen, seremos imunes ao nostálgico fascínio dos mundos perdidos.

TERCEIRA METAMORFOSE. O FOMENTADOR

Muitas interpretações e adaptações do Fausto de Goethe se de­têm no final da primeira parte. Após a condenação e a redenção de Gretchen, o interesse humano tende a fenecer. A segunda parte, escrita entre 1825 e 1831, encerra um brilhante jogo intelectual, porém sua vida se vê sufocada sob um portentoso peso alegórico. Ao longo de mais de 5000 versos, pouca coisa acontece. Somente nos atos IV e V é que as energias dramáticas e humanas revivem: aqui a história de Fausto che­ga a seu clímax e a seu final - Fausto assume o que chamei de sua terceira e última metamorfose. Na primeira fase, como vimos, ele vivia só e sonhava. Na segunda, ele entreteceu sua vida na de outra pessoa e aprendeu a amar. Agora, em sua última encarnação, ele conecta seus rumos pessoais com as forças econômicas, políticas e sociais que diri­gem o mundo; aprende a construir e a destruir. Expande o horizonte de seu ser, da vida privada para a pública, da intimidade para o ativismo, da comunhão para a organização. Lança todos os seus poderes contra a natureza e a sociedade; luta para mudar não só a sua vida, mas a vida de todos. Assim encontra meios de agir de maneira efetiva contra o mundo feudal e patriarcal: para construir um ambiente social radical­mente novo, destinado a esvaziar de vez o velho mundo ou a destruí-lo.
A última metamorfose de Fausto se inicia em um momento de profundo impasse. Ele e Mefistófeles se encontram sozinhos no alto pico de uma montanha, olhando o vazio que se perde nas nuvens do espaço, sem destino. Eles haviam empreendido exaustivas viagens atra­vés da história e da mitologia, haviam explorado inúmeras possibili­dades de experiência e se viam agora na estaca zero, pois sentiam bem menos vigor do que quando tudo começou. Mefisto está ainda mais de­primido que Fausto, pois parece que abriu mão de todas as tentações; ensaia algumas sugestões digressivas, mas Fausto apenas boceja. Aos poucos, porém, Fausto começa a se agitar. Contempla o mar e evoca liricamente sua encapelada majestade, sua primitiva e implacável ener­gia, tão impenetrável aos esforços humanos.
Até aí, temos o típico tema da melancolia romântica, e Mefisto quase o percebe. Não é nada pessoal, ele diz; os elementos da natureza sempre foram assim. Nisso, de repente, Fausto se ergue enraivecido: por que os homens têm que deixar as coisas continuarem sendo como sempre têm sido? Não é já o momento de o homem afirmar-se contra a arrogante tirania da natureza, de enfrentar as forças naturais em nome do "livre espírito que protege todos os direitos" (10 202-05)? Fausto co­meça a usar uma linguagem política pós-1789 num contexto que até então ninguém havia encarado como político. E prossegue: é um ab­surdo que, despendendo toda essa energia, o mar apenas se mova, para a frente e para trás, interminavelmente - "sem nada realizar!". Isso talvez soe natural para Mefisto e, sem dúvida, para muitos dos leitores de Goethe, mas não para o próprio Fausto:
 
Isso me leva à beira da angústia desesperada!
Tanta energia propositalmente desatrelada!
Isso desafia meu espírito para além de tudo o que já vi;
Aqui, sim, eu lutaria, para a tudo isso subjugar (10 218-21)
 
A batalha de Fausto contra os elementos semelha ser tão grandiosa quanto a do rei Lear, ou, mais a propósito, a dó rei Midas agitando as ondas. Mas a empresa fáustica será menos quixotesca e mais frutífera, porque vai dirigir-se à própria energia da natureza e canalizá-la para a obtenção de combustível para novos projetos e propósitos humanos, coletivos, que nenhum rei antigo chegou sequer a sonhar.
À medida que a nova visão de Fausto se desdobra, vemo-la retor­nar à vida. Agora, porém, suas visões assumem uma forma radical­mente nova: nada de sonhos e fantasias, nem sequer de teorias, mas programas concretos, planos operacionais para transformar a terra e o oceano. "E isso é possível! (...) Rápidos em minha mente, planos e mais planos se desenvolvem." (10 222 segs.) De súbito a paisagem à sua volta se metamorfoseia em puro espaço. Ele esboça grandes projetos de recuperação para atrelar o mar a propósitos humanos: portos e canais feitos pela mão do homem, onde se movem embarcações repletas de homens e mercadorias; represas para irrigação em larga escala; verdes campos e florestas, pastagens e jardins, uma vasta e intensa agricultu­ra; energia hidráulica para animar e sustentar as indústrias emergen­tes; pujantes instalações, novas cidades e vilas por construir - e tudo isso para ser criado a partir de uma terra desolada e improdutiva, onde seres humanos jamais sonharam viver. Enquanto desdobra seus pla­nos, Fausto percebe que o demônio está atordoado e exausto. Ao me­nos uma vez ele não tem nada a dizer. Tempos atrás, Mefisto mencio­nara a visão de um cavaleiro veloz como paradigma do homem que se move pelos caminhos do mundo. Agora, contudo, seu protegido o ul­trapassou: Fausto pretende mover o próprio mundo.
De repente nos encontramos diante de um ponto nodal na histó­ria do moderno autoconhecimento. Assistimos ao nascimento de uma nova divisão social do trabalho, uma nova vocação, uma nova relação entre idéias e vida prática. Dois movimentos históricos radicalmente diferentes convergem aí e começam a fluir juntos. Um grande ideal do espírito e da cultura se transforma em emergente realidade material e social. A romântica procura de autodesenvolvimento, que levou Fausto tão longe, desenvolve-se a si própria, agora, através de uma nova forma de atividade, através do esforço titânico do desenvolvimento econômico. Fausto está se transformando em uma nova espécie de homem, para adaptar-se a uma nova situação. Em seu novo trabalho, irá expe­rimentar algumas das mais criativas e algumas das mais destrutivas potencialidades da vida moderna; ele será o consumado destruidor e criador, a sombria e profundamente ambígua figura que nossa época virá a chamar "o fomentador".
Goethe sabe que a questão do desenvolvimento é necessariamente uma questão política. Os projetos de Fausto vão exigir não apenas um imenso capital, mas o controle sobre vastas extensões territoriais e um grande número de pessoas. Onde ele pode conseguir esse poder? A solução está no ato IV. Goethe parece pouco à vontade nesse interlúdio político: seus personagens. aí se tornam surpreendentemente pálidos e flácidos, e sua linguagem perde muito da força e da intensidade habi­tuais. Ele não se identifica com nenhuma das opções políticas existen­tes e deseja passar depressa por essa parte. As alternativas, tal como estão definidas no ato IV, são: de um lado, um fragmentário império multinacional que vem da Idade Média, dirigido por um imperador que é simpático, mas venal e inteiramente inepto; de outro lado, desafiando-o, uma gangue de pseudo-revolucionários, atraídos apenas pelo poder e a pilhagem, e respaldados pela Igreja, que Goethe vê como a força mais voraz e mais cínica de todas. (A idéia da Igreja como van­guarda revolucionária sempre pareceu forçada a muitos leitores, po­rém os eventos recentes do Irã sugerem que Goethe sabia o que estava dizendo.)
Não devemos invectivar contra esse simulacro de revolução mo­derna esboçado por Goethe. Sua função básica é fornecer a Fausto e Mefisto um fácil instrumento racional para a barganha política que eles promovem: eles emprestam suas mentes e sua magia ao Impe­rador, para ajudá-lo a tornar seu próprio poder novamente sólido e eficiente. Este, em troca, lhes dará ilimitados direitos de desenvolver toda a região costeira, incluindo carta branca para explorar quaisquer trabalhadores de que necessitem e livrar-se de quaisquer nativos que en­contrem no caminho. "Goethe não podia percorrer o rumo da revolu­ção democrática", escreve Lukács. A barganha política de Fausto mos­tra a visão goethiana de "um outro caminho" para o progresso: "O irrestrito e grandioso desenvolvimento de forças produtivas tornará su­pérfluas as revoluções políticas". '° Assim Fausto e Mefisto ajudam o Imperador a prevalecer, Fausto ganha a sua concessão e, com grande estardalhaço, começa o trabalho do desenvolvimento.
Fausto se entrega apaixonadamente à tarefa. O ritmo é frenético - e brutal. Uma velha senhora, que reencontraremos mais adiante, posta-se ao lado do canteiro de obras e conta a história:

Eles iriam esbravejar em vão todos os dias,
Cavar e esburacar, pazada por pazada;
Onde as tochas enxameavam à noite,
Havia uma represa quando acordávamos.
Sacrifícios humanos sangravam,
Gritos de horror iriam fender a noite,
E onde as chamas se estreitam na direção do mar
Um canal iria saudar a luz. (11 123-30)
 
A velha senhora sente que há algo miraculoso e mágico nisso tudo, e alguns comentadores crêem que Mefistófeles deva estar trabalhando por trás da cena, para que tamanha realização ocorra em tão pouco tempo. Na verdade, porém, Goethe atribui a Mefisto o papel mais secundário nesse projeto. As únicas "forças subterrâneas" em atividade aqui são as forças da moderna organização industrial. É de observar, também, que o Fausto de Goethe, ao contrário de muitos de seus su­cessores, especialmente no século XX, não realiza nenhuma fascinante descoberta científica ou tecnológica: seus homens parecem usar as mes­mas pás e enxadas que vinham sendo usadas há séculos. A chave do seu êxito é uma organização do trabalho visionária, intensa e sistemática. Ele exorta seus capatazes e inspetores, guiados por Mefisto, a "usar todos os meios disponíveis / Para engajar multidões e multidões de tra­balhadores./ Incitem-nos com recompensas, ou sejam severos,/ Pa­guem-nos bem, seduzam ou reprimam!" (11 551-54). O ponto crucial é não desperdiçar nada nem ninguém, passar por cima de todas as fron­teiras: não só a fronteira entre a terra e o mar, não apenas os limites morais tradicionais na exploração do trabalho, mas também o dualis­mo humano primário do dia e da noite. Todas as barreiras humanas e naturais caem diante da corrida pela produção e a construção.
Fausto festeja seu novo poder sobre as pessoas: trata-se, especifi­camente, para usar uma expressão de Marx, do poder sobre a força de trabalho.

Levantem-se da cama, meus servos! Todos os homens!
Deixem olhos felizes contemplar meu plano audacioso.
Apanhem suas ferramentas, agitem suas pás e cavadeiras!
O que foi planejado tem de ser imediatamente cumprido.
 
Ele encontrou, afinal, um objetivo que preenche o seu espírito:
 
O que cheguei a pensar, me apresso a cumprir;
A palavra do mestre, sozinha, contém real necessidade!...
Para concluir o maior de todos os trabalhos,
Uma só mente por milhares de mãos - e basta! (11 501-10)

 Mas, se ele pressiona seus trabalhadores, pressiona igualmente a si mesmo. Se os sinos da igreja o chamaram de volta à vida, tempos atrás, é o som das enxadas que o vivifica, agora. Aos poucos, à medida que o trabalho avança, vemos Fausto radiante de verdadeiro orgulho. Ele enfim atingiu a síntese de pensamento e ação, usou sua mente para transformar o mundo. Ajudou a humanidade a assumir seus direitos sobre os elementos anárquicos, "devolvendo a terra a si própria,/ Es­tabelecendo fronteiras para as ondas, /Colocando um anel em redor do oceano" (11541-43). E é uma vitória coletiva que a humanidade poderá desfrutar, quando Fausto se for. De pé sobre uma colina artificial cria­da pelo trabalho humano, ele contempla todo esse novo mundo que ele trouxe à vida, e tudo parece bem. Ele sabe que fez pessoas sofrerem ("Sacrifícios humanos sangravam,/ Gritos de horror iriam fender a noite..."). Mas está convencido de que são as pessoas comuns, a massa cie trabalhadores e sofredores, que obterão o máximo benefício, dessa obra gigantesca. Ele substituiu uma economia exaurida e estéril por outra nova e dinâmica, que "abrirá espaço para muitos milhões/ Vive­rem, não com segurança, mas com liberdade para agir (tatig frei. É um espaço físico e natural, que, no entanto, foi criado através da organização e da ação sociais.

Verdes são as campinas, férteis; e em alegria
Homens e rebanhos convivem nessa nova terra,
Assentados ao longo das abas da colina
Erguida pela audaz, operosa vontade das massas.
Um verdadeiro paraíso terra adentro,
Deixem agora as represas se moldarem pelas ondas bravias,
E enquanto elas se agitam, para correr com força plena,
A vontade de todos preenche os vazios e corrige o curso.
Essa é a mais alta sabedoria que eu possuo,
A melhor que a humanidade jamais conheceu;
Liberdade e vida são obtidas somente por aqueles
Que aprendem a conquistá-las de novo a cada dia.
Cercado por esse perigo, cada um se esforça,
Criança, adulto, idoso - todos têm uma vida ativa.
No meio dessa multidão eu gostaria de estar,
Caminhar no chão livre ao lado de pessoas livres! (11 563-80)

 Caminhando na terra, ao lado dos pioneiros do seu novo empreendimento, Fausto se sente mais à vontade do que já se sentira junto do povo simpático mas estreito de sua cidade natal. Estes, agora, são homens novos, tão modernos quanto o próprio Fausto. Emigrantes e refugiados de uma centena de vilas e vilarejos góticos - egressos da pri­meira parte do Fausto - eles aí chegaram à procura de ação; aventura, um ambiente no qual eles podem, como Fausto, sentir-se tatig frei, livres para agir, livremente ativos. Eles chegaram juntos para formar um novo tipo de comunidade: uma comunidade-que não se concentra na repressão da livre individualidade para manter um sistema social fechado, mas sim na livre ação construtiva, comunitária, para proteger as fontes coletivas que permitem a cada indivíduo ser tatig- frei.
Esses homens novos se sentem em casa na sua comunidade e or­gulhosos dela: estão ansiosos para erguer sua vontade e espírito comu­nitários contra a energia do próprio mar, certos de que vencerão. Entre tais homens - homens que ele ajudou ã se tornarem o que são - Fausto pode realizar um desejo que alimentou desde que deixara a casa paterna: pertencer a uma autêntica comunidade, trabalhar com e para pessoas, usar sua mente-em-ação em nome da vontade e do bem-estar comuns. Assim, o processo de desenvolvimento econômico e social gera novos modos de autodesenvolvimento, situação ideal para homens e mulheres que podem crescer nesse emergente mundo novo. Finalmen­te, também, o processo fornece um lar para o próprio fomentador.
Assim, Goethe encara a modernização do mundo material como uma sublime realização espiritual; Fausto, em sua atividade como "o Fomentador" que põe o mundo em seu passo certo, é um herói moder­no arquetípico. Todavia, o fomentador, como Goethe o concebe, é não apenas heróico, mas trágico. Para compreender a tragédia do fomen­tador, é preciso julgar sua visão de mundo, não só pelo que ela revela - pelos imensos novos horizontes que abre para a espécie humana -, mas também pelo que ela esconde: pelas realidades humanas que se recusa a ver, pelas potencialidades que não é capaz de enfrentar. Faus­to vislumbra, e luta para criar, um mundo onde crescimento pessoal e progresso social possam ser atingidos com um mínimo de sacrifícios humanos. Ironicamente, sua tragédia decorre exatamente de seu desejo de eliminar a tragédia da vida.
A medida,que Fausto supervisiona seu trabalho, toda a região em seu redor se renova e toda uma nova sociedade é criada à sua imagem. Apenas uma pequena porção de terra da costa permanece como era antes. Esta é ocupada por Filemo e Báucia, um velho e simpático casal que aí está há tempo sem conta. Eles têm um pequeno chalé sobre as dunas, uma capela com um pequeno sino, um jardim repleto de tílias e oferecem ajuda e hospitalidade a marinheiros náufragos e sonhadores. Com o passar dos anos, tornaram-se bem-amados como a única fonte de vida e alegria nessa terra desolada. Goethe toma de empréstimo seus nomes e situação das Metamorfoses de Ovídio, em que eles são os úni­cos a dar hospitalidade a Júpiter e Mercúrio, disfarçados, e em recom­pensa somente eles são salvos quando os deuses inundam e destroem a terra inteira. Goethe lhes confere mais individualidade do que eles têm em Ovídio, e atribui-lhes virtudes nitidamente cristãs: generosidade inocente, humildade, resignação. E investe neles, também, um pathos nitidamente moderno. Eles representam a primeira encarnação literá­ria de uma categoria de pessoas de larga repercussão na história mo­derna: pessoas que estão no caminho - no caminho da história, do progresso, do desenvolvimento; pessoas que são classificadas, e descar­tadas, como obsoletas.
Fausto se torna obcecado com o velho casal e sua pequena porção de terra: "Esse casal de velhos devia ter-se afastado,/ Eu quero tílias sob meu controle,/ Pois 'essas poucas árvores que me são negadas/Comprometem minha propriedade como um todo./ ... Por isso nossa alma se debruça sobre a cerca,/ Para sentir em meio à plenitude, o que nos falta" (11 239-52). Eles precisam ser afastados para dar lugar àqui­lo que Fausto passa a ver como a culminação do seu trabalho: uma tor­re de observação, do alto da qual ele e os seus possam "contemplar a distância até o infinito", soberanos sobre o novo mundo que construí­ram. Ele oferece a Filemo e Báucia uma importância em dinheiro ou uma transferência para outra propriedade. Mas, na sua idade, que fa­riam eles com dinheiro? E, depois de viver toda a sua vida aí, próximos (to fim da vida aí, como poderiam começar nova vida em outra parte? Hes se recusam a mudar. "Resistência e teimosia assim/ Frustram o êxito mais glorioso,/ Até um ponto em que, lamentavelmente, o ho­mem começa a se cansar de ser justo."(11 269-72).
Nessa altura, Fausto comete de maneira consciente seu primeiro ato mau. Convoca Mefisto e seus "homens fortes" e ordena-lhes que tirem o casal de velhos do caminho. Ele não deseja vê-lo, nem quer saber dos detalhes da coisa. Só o que lhe interessa é o resultado final: quer que o terreno esteja livre na manhã seguinte, para que o novo projeto seja iniciado. Isso é um estilo de maldade caracteristicamente moderno: indireto, impessoal, mediado por complexas organizações e funções institucionais. Mefisto e sua unidade especial retornam "na calada da noite" com a boa notícia de que tudo estava resolvido. Faus­to, de repente preocupado, pergunta para onde foi removido o velho casal - e vem a saber que a casa foi incendiada e eles foram mortos. Fausto se sente pasmo e ultrajado, tal como se sentira diante de Gre­tchen. Protesta dizendo que não ordenara violência; chama Mefisto de monstro e manda-o embora. O príncipe das trevas se vai, elegantemen­te, como cavalheiro que é; porém ri antes de sair. Fausto vinha fingindo irão só para outros mas para si mesmo, que podia criar um novo mundo com mãos limpas; ele ainda não está preparado para aceitar a respon­sabilidade sobre a morte e o sofrimento humano que abrem o caminho. Primeiro, firmou contrato com o trabalho sujo do desenvolvimento; agora lava as mãos e condena o executante da tarefa, tão logo esta é cumprida. É como se o processo de desenvolvimento, ainda quando transforma a terra vazia num deslumbrante espaço físico e social, re­criasse a terra vazia no coração do próprio fomentador. É assim que funciona a tragédia do desenvolvimento.
Contudo, existe ainda um elemento de mistério no ato mau de fausto. Por que, enfim, ele o faz? Será que realmente precisa daquelas terras, daquelas árvores? Por que sua torre de observação é tão impor­tante? Por que os dois velhos são tão ameaçadores? Mefisto não vê mistério algum nisso: "Aqui, também, ocorre o que sempre ocorreu:/ Você ouviu falar das vinhas de Nabot" (11 286-87). A intenção de Me­fisto, invocando o pecado do rei Acab, em Reis 1:21, é mostrar que não há nada de novo na estratégia de apropriação empregada por Fausto: o narcisistico desejo de poder, mais desenfreado nos mais poderosos, e uma história antiga como o mundo. Ele sem dúvida está certo; Fausto é cada vez mais impelido pela arrogância do poder. Todavia, resta ainda outro motivo para o assassinato, que não decorre apenas da personali­dade de Fausto, mas de um movimento coletivo, impessoal, que parece ser endêmico à modernização: o movimento no sentido de criar um ambiente homogêneo, um espaço totalmente modernizado, no qual as marcas e a aparência do velho mundo tenham desaparecido sem deixar vestígio.
Apontar para essa difusa necessidade moderna, porém, é apenas ampliar o mistério. Sentimo-nos inclinados a empatizar com o ódio que Fausto nutre pelo viciado mundo gótico, fechado e repressivo, em que tudo começou - o mundo que destruiu Gretchen, e ela não foi a pri­meira. Mas nessa altura, quando se torna obcecado com Filemo e Báu­cia, ele aplica no mundo gótico um golpe mortal: Fausto criou um novo sistema social, vibrante e dinâmico, um sistema orientado na direção da livre atividade, da alta produtividade, das trocas em larga escala e   j do comércio cosmopolita, da abundância para todos; cultivou uma ca­tegoria de trabalhadores livres e empreendedores que amam seu novo mundo, que arriscarão suas vidas por ele, que estão prontos para er­guer sua força e seu espírito comunitários contra qualquer ameaça. Fica claro, portanto, que inexiste qualquer efetivo perigo de reação. Sendo assim, por que Fausto se sente ameaçado pelo mais ínfimo vestí­gio do velho mundo? Goethe revela, com extraordinária penetração, os medos mais profundos do fomentador. O casal de velhos, como Gre­tchen, personificam o que de melhor o velho mundo pode oferecer. São demasiado velhos, demasiado teimosos, talvez demasiado estúpidos para se adaptar e mudar; no entanto, são pessoas belíssimas, o sal da terra em que vivem. É sua beleza e nobreza que deixam Fausto tão in­comodado. "Meu reino é infinito diante dos olhos; pelas costas eu ouço a zombaria." Ele sente que é aterrorizador olhar para trás, encarar o velho mundo. "Se eu tivesse me detido lá, pelo calor, suas sombras me encheriam de medo." Se ele parasse, algo muito escuro nessas sombras o aprisionaria. "O pequeno sino toca e eu me enfureço!" (11 235-55)
Os sinos da igreja, é claro, representam o som da culpa e do in­fortúnio, e todas as forças psíquicas e sociais que destruíram a jovem que ele amava: quem poderia condená-lo por tentar silenciar esse som para sempre? Além disso, os sinos da igreja foram também o som que o chamou de volta à vida, quando estava a ponto de morrer. Há mais de si mesmo nesses sinos e naquele mundo do que ele gostaria de pensar. O mágico poder dos sinos na manhã de Páscoa representa o poder que pôs Fausto em contato com sua própria infância. Sem esse vínculo vital com o passado - fonte primária de energia espontânea e prazer de vi­ver - ele jamais chegaria a desenvolver a força interior capaz de transformar o presente e o futuro. Mas, agora que ele firmou sua plena identidade como desejo de mudança e como poder de satisfazer esse desejo, aquele vínculo com o passado o aterroriza.
 
Aquele sino, o doce perfume daquelas tílias.
Me envolvem como uma igreja ou uma tumba.
 
Para o fomentador, deixar de mover-se, permanecer nas sombras, ser envolvido pelos velhos - é o mesmo que morrer. Não obstante, para esse tipo de homem, trabalhar sob as explosivas pressões do desenvolvimento, torturado pela culpa aí implícita - a promessa de paz do sino deve soar como bem-aventurança. Exatamente porque acha os sinos tão doces, as árvores tão encantadoras, tudo tão escuro e profundo, é que Fausto é levado a se desfazer de tudo isso.
Comentadores do Fausto raramente se dão conta da ressonância humana e dramática desse episódio. De fato, ele é capital para a pers­pectiva histórica de Goethe. A destruição de Filemo e Báucia, por Fausto, vem a ser o clímax irônico da vida deste último. Ao matar o casal de velhos, ele pronuncia sua própria sentença de morte. Tendo eliminado todos os vestígios deles e do seu velho mundo, não lhe resta mais nada a fazer. Agora ele está pronto para dizer as palavras que selam de realização a sua vida e, por isso, o conduzem à morte: Ver­weile doch, du bist so schoen ! (Pára, instante que passa, és tão formoso!) Por que Fausto deve morrer agora? As razões oferecidas por Goethe se referem não somente à estrutura da segunda parte do Fausto, mas a toda a estrutura da história moderna. Ironicamente, assim que esse fomentador conseguiu destruir o mundo pré-moderno, destruiu tam­bém qualquer razão para continuar no mundo. Em uma sociedade por inteiro moderna, a tragédia da modernização - incluindo seu trágico herói - chega naturalmente a um fim. Tão logo se livra de todos os obstáculos no caminho, o fomentador vê a si próprio no meio do caminho e deve ser afastado. As palavras de Fausto são mais ver­dadeiras do que ele supunha: os sinos de Filemo e Báucia tangem por ele, antes de mais nada. Goethe nos mostra como a categoria de pessoas obsoletas, tão importante para a modernidade, acaba por tragar aqueles que lhe dão vida e poder.
Fausto quase se apercebe de sua própria tragédia - apenas quase. Enquanto, à meia-noite, observa do balcão as ruínas que na manhã seguinte darão lugar à construção, a cena súbita e dissonante mente se altera: do concreto realismo do canteiro de obras, Goethe nos transporta para a ambiência simbolista do mundo interior de Fausto.
De repente, quatro mulheres espectrais, de cinza, levitam na sua direção e proclamam seus próprios nomes: elas são a Necessidade, a Pobreza, a Culpa e a Ansiedade. Todas elas são forças que o programa de desen­volvimento de Fausto havia banido do mundo exterior, mas se insinua­ram de volta como espectros dentro dele. Fausto está perturbado, no entanto se mantém inflexível e expele os três primeiros espectros. Toda­via, o quarto, o mais vago e profundo deles, a Ansiedade, continua a persegui-lo. Ele diz: "Ainda não consegui abrir inteiramente o meu caminho em direção à liberdade". Quer dizer com isso que ainda é presa de feitiçaria, magia, fantasmas da noite. Ironicamente, porém, a ameaça à liberdade de Fausto decorre não da presença dessas forças sombrias, mas da ausência que ele logo tenta impor a elas. O problema é que não pode olhar de frente essas forças e conviver com elas. Ele se empenhou em criar um mundo isento de pobreza, necessidade e culpa; nem sequer se sente culpado por Filemo e Báucia - embora o episódio o entristeça. Contudo, não é capaz de banir a ansiedade da própria mente. Isso pode eventualmente tornar-se fonte de força interior, caso ele venha a enfrentar o fato. Porém, ele não é capaz de aceitar o que for que ponha sombras em seu trabalho e vida luminosos. Fausto expulsa a ansiedade de sua mente, como havia expulsado o demônio algum tem­po atrás. Mas, antes de partir, ela sopra seu bafo sobre ele - e cega-o com esse bafo. Enquanto o toca, ela lhe diz que esteve cego todo esse tempo; todas as suas ações e visões cresceram fora da escuridão inte­rior. A ansiedade que ele jamais admitiria,lançou-o em profundidade muito além do seu entendimento. Ele destruiu o casal de velhos e seu pequeno mundo - o mundo de sua própria infância - para que o âmbito de sua visão e atividades pudesse ser infinito; ao fim, a infinita "Mãe Noite", cujo poder ele se recusa a enfrentar, é tudo quanto ele vê.
A súbita cegueira de Fausto, em sua última cena na terra, con­fere-lhe uma grandiosidade mítica e arcaica: ele aparece como um par­ceiro de Édipo e Lear. Mas trata-se de um herói nitidamente moderno, cujo ferimento, a cegueira, apenas o impele e aos seus operários a con­cluir a tarefa rapidamente:
 
A noite profunda agora parece cair ainda mais profundamente,
Mas ali dentro de mim resplandece uma luz brilhante;
O que cheguei a pensar me apresso a cumprir;
A palavra do mestre, sozinha, contém real necessidade (11 499 segs.)
 
E assim tudo prossegue. É nesse ponto, em meio ao ruído da constru­ção, que ele se declara plenamente vivo; logo, pronto para morrer. Mesmo no escuro, sua visão e energia continuam pulsando; ele conti­nua a lutar, desenvolvendo a si mesmo e ao mundo em redor, a cami­nho do fim irremediável.
 
UMA ERA FÁUSTICA E PSEUDOFÁUSTICA

Que tragédia é essa afinal? Qual o seu verdadeiro lugar na longa história dos tempos modernos? Se tentarmos situar o tipo particular de ambiente moderno criado por Fausto, ficaremos perplexos, ao menos de início. A analogia mais imediata parece ser com o extraordinário impulso de expansão industrial vivido pela Inglaterra a partir de 1760. Lukács faz essa conexão e afirma que o último ato do Fausto é a tra­gédia do "desenvolvimento capitalista" em sua primeira fase indus­trial." O problema é que, se prestarmos atenção ao texto, veremos que os motivos e objetivos de Fausto são claramente não-capitalistas. O Mefisto goethiano, com seu oportunismo, sua exaltação do egoísmo e infinita falta de escrúpulos, ajusta-se com perfeição a certo tipo de em­presário capitalista; mas o Fausto goethiano está muito longe disso. Mefisto com freqüência assinala as oportunidades de fazer dinheiro, nos esquemas de desenvolvimento de Fausto; todavia Fausto, por si, é indiferente a isso. Quando ele diz que pretende "oferecer espaço vital a milhões/ Não à prova de perigo, mas livre para gerir sua própria raça", está claro que o empreendimento não é montado em seu próprio e imediato benefício, mas, antes, visando ao futuro da humanidade, a longo prazo, em benefício da alegria e liberdade de todos, que virão a usufruir disso só muito tempo depois que ele se for. Se tentarmos reduzir o projeto de Fausto a uma primária linha de ação capitalista, elimi­naremos o que aí existe de mais nobre e original, mais ainda, o que o torna genuinamente trágico. Na visão de Goethe, o mais fundo horror do desenvolvimento fáustico decorre de seus objetivos mais elevados e de suas conquistas mais autênticas.
Se desejarmos situar os desígnios e visões de Fausto no tempo da velhice de Goethe, deveremos voltar a atenção não para a realidade econômica e social, mas para seus sonhos radicais e utópicos; e, mais ainda, não para o capitalismo desse tempo, mas para o seu socialismo. No fim, da década de 1820, quando as últimas páginas do Fausto es­tavam sendo compostas, uma das leituras favoritas de Goethe era o jornal parisiense Le Globe, um dos órgãos de divulgação do movimento saint-simoniano em cujas páginas foi cunhada a palavra socialismo, pouco antes da morte de Goethe em 1832. (12) As Conversações com Eckermann contêm uma série de referências plenas de admiração pelos jovens escritores de Le Globe, entre os quais havia muitos cientistas e engenheiros, que parecem ter apreciado Goethe tanto quanto ele os apreciava. Uma das características de Le Globe, assim como de todos os escritos saint-simonianos, era o fluxo interminável de propostas de­projetos desenvolvimentistas em larga escala e a longo prazo. Tais pro­jetos estavam muito aquém dos recursos financeiros e imaginativos dos capitalistas do início do século passado, os quais - sobretudo na In­glaterra, cujo capitalismo era o mais dinâmico de todos - se orienta­vam primordialmente na direção do empresário individual, da rápida conquista de mercados, da busca de lucros imediatos. Tampouco esses capitalistas estavam interessados nos benefícios sociais que, segundo Saint-Simon, o desenvolvimento global traria: empregos estáveis e ren­da decente para "as classes mais numerosas e mais pobres", abundân­cia e bem-estar para todos, novos tipos de comunidade que concilia­riam o organicismo medieval com a energia e a racionalidade mo­dernas.
Não surpreende que os projetos saint-simonianos fossem descar­tados em sua quase totalidade como "utópicos". Mas foi exatamente esse utopismo que atraiu a imaginação do velho Goethe. Ei-lo em 1827 entusiasmado com o projeto de um canal do Panamá e deslumbrado com a perspectiva de um glorioso futuro de progresso para a América. "Eu ficaria chocado se os Estados Unidos deixassem escapar de suas mãos essa magnífica oportunidade. É possível antever que essa jovem nação, com seu decidido amor pelo Oeste, terá ocupado, em trinta ou quarenta anos, a larga extensão de terra além das Montanhas Ro­chosas."
Vendo ainda mais longe, Goethe acredita "que ao longo da costa do Pacífico, onde a natureza formou os mais amplos e seguros portos, importantes cidades comerciais serão erguidas, pouco a pouco, para o incremento de um grande intercâmbio entre a China e as Índias Orien­tais e os Estados Unidos". Com a emergência de uma esfera de ativi­dade transpacífica, "comunicações mais rápidas entre as costas leste e oeste da América do Norte (...) serão não apenas desejáveis, mas indis­pensáveis". Um canal entre os oceanos, no Panamá ou mais ao norte, desempenhará um papel fundamental nesse desenvolvimento. "Tudo isso está reservado para o futuro e para um espírito empreendedor." Goethe está certo de que "inúmeros benefícios resultarão para toda a raça humana". Ele sonha: "Quem me dera viver para vê-lo! Mas eu não o verei!". (Ele estava com 78 anos, a cinco da morte.) Goethe vis­lumbra então dois outros projetos de desenvolvimento, também acalen­tados pelos saint-simonianos: um canal entre o Danúbio e o Reno, e outro cortando o istmo de Suez. "Quem me dera viver para ver essas grandes obras! Valeria a pena durar mais SO anos para isso!",3 Vemos Goethe aí transformando os projetos e programas saint-simonianos em visão poética, a visão que será concretizada e dramatizada no último ato do Fausto.
Goethe sintetiza essas idéias e deposita suas esperanças naquilo que chamarei de "modelo fáustico" de desenvolvimento. Tal modelo confere prioridade absoluta aos gigantescos projetos de energia e trans­porte em escala internacional. Seu objetivo é menos os lucros imediatos que o desenvolvimento a longo prazo das forças produtivas, as quais em última instância, ele acredita, gerarão os melhores resultados para todos. Em vez de deixar empresários e trabalhadores se desperdiçarem em migalhas e atividades competitivas, o modelo propõe a integração de todos. Com isso criará uma nova síntese histórica entre poder pú­blico e poder privado, simbolizada na união de Mefistófeles, o pirata e predador privado, que executa a maior parte do trabalho sujo, e Faus­to, o administrador público, que concebe e dirige o trabalho como um todo. Isso abrirá espaço, na história mundial, para o papel excitante e ambíguo do intelectual moderno - Saint-Simon chamou-o "o organi­zador"; eu preferi "o fomentador" - capaz de reunir recursos mate­riais, técnicos e espirituais, transformando-os em novas estruturas de vida social. Finalmente, o modelo fáustico criará um novo tipo de auto­ridade, derivado da capacidade do líder em satisfazer a persistente ne­cessidade de desenvolvimento aventureiro, aberto ao infinito, sempre renovado, do homem moderno.
Muitos dos jovens saint-simonianos de Le Globe chegaram a se distinguir, em especial no reinado de Napoleão III, como brilhantes inovadores na esfera das finanças e na indústria. Organizaram o sis tema ferroviário francês; estabeleceram o Crédit Mobilier, um banco de investimento internacional para financiar a emergente indústria mundial de energia; e realizaram um dos mais caros sonhos de Goethe, o canal de Suez. Mas seu estilo e escala visionários foram no geral ofuscados num período em que o desenvolvimento foi predominante­mente privado e fragmentário, os governos permaneceram nos basti­dores (quase sempre mascarando suas atividades econômicas), e a ini­ciativa pública, o planejamento de longo prazo e o sistemático desenvrolvimento regional foram desdenhados como vestígios da iníqua era mercantilista. É só no século XX que o modelo fáustico assume a sua forma plena, emergindo de modo mais intenso no mundo capitalista, tia proliferação de "autarquias públicas" e superagências concebidas para organizar imensos projetos de construção, sobretudo em trans­portes e energia: canais e ferrovias, pontes e rodovias, represas e sis­temas de irrigação, usinas hidrelétricas, reatores nucleares, novas ci­dades, e a exploração do espaço interplanetário.
Na segunda metade deste século, em particular depois da Se­gunda Grande Guerra, essas autarquias foram responsáveis por "um equilíbrio entre poder público e privado", que se tornou uma força decisiva no êxito e crescimento capitalistas." Fomentadores fáusticos do diferentes entre si como David Lilienthal, Robert Moses, Hyman Rickover, Robert McNamara e Jean Monnet utilizaram esse equilíbrio para tornar o capitalismo contemporâneo muito mais imaginativo e flexível do que o capitalismo de um século atrás. Mas o desenvolvi­mento fáustico foi igualmente uma força poderosa nas economias e Es­tados socialistas que emergiram a partir de 1917. Thomas Mann, es­crevendo em 1932, durante o Primeiro Plano Qüinqüenal soviético, es­tava certo ao colocar Goethe no ponto nodal, dizendo que "a atitude burguesa - para quem tenha uma visão suficientemente larga e deseja compreender as coisas não dogmaticamente - passa por cima do comunismo"." Hoje, podemos encontrar visionários e autoridades no poder em todas as partes do mundo, tanto nos mais avançados Estados capitalistas e países social-democratas, quanto em dezenas de na­ções que, qualquer que seja a ideologia nelas reinante, vêem a si mes­mas como "subdesenvolvidas" e encaram o desenvolvimento rápido, heróico, como prioridade absoluta. O peculiar ambiente que constitui o cenário do último ato do Fausto - o imenso canteiro de obras, ampliando-se em todas as direções, em constante mudança e forçando os próprios figurantes a mudar também - tornou-se o cenário da história mundial em nosso tempo. Fausto, o Fomentador, ainda apenas um marginal no mundo de Goethe, sentir-se-ia completamente em casa no nosso mundo.
Goethe apresenta um modelo de ação social em torno do qual gravitam sociedades avançadas e atrasadas, ideologias capitalistas e socialistas. Mas Goethe insiste em que se trata de uma terrível e trágica convergência, selada com o sangue das vítimas, articulada com seus ossos, que têm a mesma cor e a mesma forma em qualquer parte. O processo de desenvolvimento que os espíritos criativos do século XIX conceberam como uma grande aventura humana tornou-se, em nossa era, uma necessidade de vida ou morte para todas as nações e todos os sistemas sociais do mundo. Em conseqüência disso, autoridades fomentadoras, em toda parte, acumularam em suas próprias mãos po­deres imensos, fora de controle e muito freqüentemente letais.
Nos assim chamados países subdesenvolvidos, planos sistemá­ticos para um rápido desenvolvimento significam em geral a sistemá­tica repressão das massas. Isso tem assumido, quase sempre, duas for­mas, distintas embora não raro mescladas. A primeira forma significou espremer até a última gota a força de trabalho das massas - "os sacri­fícios humanos sangram,/ Gritos de desespero cortarão a noite ao meio", como se diz no Fausto - para alimentar as forças de produção e ao mesmo tempo reduzir de maneira drástica o consumo de massa, para gerar o excedente necessário aos reinvestimentos econômicos. A segunda forma envolve atos aparentemente gratuitos de destruição - a eliminação de Filemo e Báucia, seus sinos e suas árvores, por Fausto - destinados não a gerar qualquer utilidade material, mas a assinalar o significado simbólico de que a nova sociedade deve destruir todas as pontes, a fim de que não haja uma volta atrás.
A primeira geração soviética, em especial durante a era stalinista, fornece bons exemplos desses dois tipos de horror. O primeiro projeto-­show desenvolvimentista de Stalin, o canal do mar Branco (1931-33), sacrificou centenas de milhares de trabalhadores, número mais do que suficiente para superar qualquer projeto capitalista contemporâneo. E Filemo e Báucia podiam perfeitamente servir de modelo para os milhões de camponeses assassinados entre 1932 e 1934 porque se posta­vam no caminho do plano estatal de coletivização da terra que eles haviam ganho durante a Revolução, havia pouco mais de uma década.
Mas o que torna esses projetos muito mais pseudofáusticos que propriamente fáusticos é bem menos tragédia que teatro do absurdo e (ta crueldade é o fato doloroso - com freqüência esquecido no Ocidente - de que eles simplesmente não funcionam. O tratado Nixon-Brejenev do trigo, de 1972, devia bastar para nos lembrar que a tenta­tiva stalinista de coletivização da terra não só matou milhões de campo­neses como conduziu a agricultura russa a uma formidável derrocada (te que ela nunca foi capaz de se recuperar. Quanto ao canal, Stalin empenhou-se em criar um símbolo tão visível de desenvolvimento que dis­torceu e amputou o projeto a ponto de retardar a realidade desse mes­mo desenvolvimento. Por isso, operários e engenheiros jamais tiveram o tempo, o dinheiro e o equipamento necessários para construir um canal fundo e seguro o suficiente para o tráfego das modernas embarcações do século XX; em conseqüência, o canal nunca chegou a desempenhar um papel relevante no comércio e na indústria soviéticos. Tudo o que o canal pôde acolher, aparentemente, foram barcaças turísticas, que nos anos 30 singravam suas águas, repletas de escritores soviéticos e estran­geiros forçados a proclamar as glórias da obra. O canal foi um triunfo de publicidade; todavia, se metade do empenho despendido na campa­nha de relações públicas tivesse sido empregado no trabalho propria­mente dito, teria havido muito menos vítimas e muito mais desenvol­vimento real - e o projeto teria sido uma genuína tragédia, não uma farsa brutal em que pessoas de verdade foram mortas por pseudo­eventos.
 Deve-se notar que, no período pré-stalinista dos anos 20, ainda era possível falar nos custos humanos do progresso de uma maneira honesta e especulativa. As histórias de Isaac Babel, por exemplo, estão cheias de perdas trágicas. Em "Froim Grach" (rejeitada pela censura), um velho patife de estirpe falstaffiana é sumariamente morto, sem qualquer razão aparente, pela Tcheka. Quando o narrador, ele próprio membro da polícia política, protesta indignado, o carrasco replica: "Diga-me você, como um tchekista, como um revolucionário: para que serviria um homem desses na sociedade do futuro?". Ao narrador com­pungido não ocorre nenhum contra-argumento, porém ele resolve lan­çar no papel sua visão das vidas fúteis mas saudáveis que a Revolução tinha destruído. Essa história, embora ambientada no passado recente (a Guerra Civil), é uma terrível e muito apropriada profecia do futuro, incluindo o futuro do próprio Babel. (16)
O que torna o caso soviético especialmente deprimente é que suas proezas pseudofáusticas exerceram enorme influência no Terceiro Mundo. Muitos grupos incrustados nas classes dominantes contemporâneas, de militares direitistas a comissários esquerdistas, têm mos­trado fatal atração (mais fatal para os seus subordinados do que para eles mesmos, é evidente) por projetos e campanhas grandiosos que en­carnam todo o gigantismo e a crueldade de Fausto, mas sem uma leve amostra da sua habilidade científica e técnica, sem o seu gênio organi­zacional e sua sensibilidade política para as reais necessidades e desejos do povo. Milhões de pessoas têm sido vitimadas por desastrosas polí­ticas de desenvolvimento, concebidas em compasso megalomaníaco, executadas de maneira primária e insensível, que ao fim desenvolveram pouco mais do que a fortuna e o poder dos seus mandantes. Os pseudo­Faustos do Terceiro Mundo, em apenas uma geração, se tornaram há­beis manipuladores de imagens e símbolos do progresso - campanhas publicitárias pelo autodesenvolvimento se tornaram uma grande indús­tria mundial, espalhando-se de Teerã a Pequim -, contudo se mostraram notoriamente incapazes de gerar progresso real para compensar a devastação e a miséria reais que trouxeram. De tempos em tempos, um povo tenta destronar seus pseudofomentadores - como aquele pseudofáustico em escala mundial, o xá do Irã. Então, por um breve momento - nunca por mais de um breve momento - as pessoas talvez possam tomar o desenvolvimento em suas próprias mãos. Se forem as­tutas e afortunadas, poderão criar e encenar suas próprias tragédias do desenvolvimento, representando simultaneamente os papéis de Fausto e Gretchen/Filemo e Báucia. Se não tiverem muita sorte, seu breve momento de ação revolucionária levará tão-somente a novo sofrimento, que por sua vez não leva a parte alguma.
Nos países mais industrialmente avançados do mundo, o desen­volvimento seguiu de maneira mais autêntica as formas fáusticas. Aí os trágicos dilemas definidos por Goethe conservaram todo o seu emer­gente poder. Tornou-se claro - e Goethe podia tê-lo antecipado - que sob as pressões econômicas do mundo moderno o processo de desenvol­vimento precisa ele próprio caminhar no sentido de um perpétuo de­senvolvimento. Onde quer que o processo ocorra, todas as pessoas, coi­sas, instituições e ambientes que foram inovadores e de vanguarda em um dado momento histórico se tornarão a retaguarda e a obsolescência no momento seguinte. Mesmo nas partes mais altamente desenvolvidas do mundo, todos os indivíduos, grupos e comunidades enfrentam uma terrível e constante pressão no sentido de se reconstruírem, intermina­velmente; se pararem para descansar, para ser o que são, serão des­cartados. O ponto climático no contrato entre Fausto e o diabo - se parar por um só momento e disser: "Verwede doch, du bist so schoen", será destruído - é vivido hoje, até suas conseqüências mais amargas, por milhares de indivíduos, todos os dias.
Na última geração, apesar do declínio econômico dos anos 70, o processo de desenvolvimento espalhou-se, quase sempre em ritmo frenético, pelos mais remotos, isolados e atrasados setores das sociedades mais avançadas. Transformou inúmeros pastos e campos de mi­lho em usinas químicas, quartéis-generais de corporações, shopping centers suburbanos. Quantas laranjeiras foram preservadas no Orange County, (nota do tradutor: literalmente "condado da Laranja") na Califórnia? Transformou milhares de bairros urbanos em entroncamentos de auto-estradas e estacionamentos, ou em centros de comércio mundial e Peachtree Plazas, (nota do tradutor: "Praças ou Mercados de Pessegueiro, nome de famoso centro de compras) ou em vastidões abandona­das, esturricadas - onde ironicamente a grama volta a crescer em meio ao entulho, enquanto pequenos bandos de bravos pioneiros fixam novas fronteiras -, ou, na história bem-sucedida dos padrões urbanos cios anos 70, em armações escovadas e brilhantes, com imitação de nó­doas antigas: paródias das velhas selvas. Dos abandonados milharais (1a Nova Inglaterra às arruinadas minas dos montes Apalaches, ao South Bronx e ao Love Canal, o desenvolvimento insaciável deixou uma espetacular devastação em sua esteira. As escavadeiras que fizeram Fausto sentir-se vivo e produziram o último som que ele ouviu, enquan­to morria, transformaram-se em gigantescos removedores de terra, hoje coroados com dinamite. Até mesmo os Faustos de ontem talvez se sin­tam os Filemos e Báucias de hoje, enterrados sob os escombros onde viveram suas vidas, assim como as jovens e entusiasmadas Gretchens (te hoje são esmagadas pela engrenagem ou cegadas pela luz.
Nas últimas duas décadas, o mito do Fausto serviu como uma espécie de prisma, nos países industrialmente mais avançados, para uma série de visões sobre o nosso tempo e nossas vidas. Vida Contra a Morte (1959), de Norman O. Brown, ofereceu uma penetrante crítica do ideal fáustico de desenvolvimento: "A inquietação fáustica do ho­mem na história mostra que o ser humano não se satisfaz com a simples satisfação de seus desejos conscientes". A esperança de Brown era de que o pensamento psicanalítico, radicalmente interpretado, pudesse "oferecer um caminho para fora do pesadelo do `progresso' interminá­vel e do interminável descontentamento fáustico, um caminho para fora da neurose humana, um caminho para fora da história". Brown vê o Fausto de início como símbolo de ação histórica e angústia: "o homem fáustico é o homem que faz a história". Mas, se a repressão sexual e psíquica pudesse de algum modo ser rompida - esta a esperança de Brown -, "o homem estaria pronto para viver em vez de fazer histó­ria". Então, "a irrequieta carreira do homem fáustico chegaria a um fim, pois ele poderia encontrar a satisfação e dizer: `Verweile doch, du bist so schoen'   (17)
Tal como Marx, depois do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, e o Stephen Dedalus de James Joyce, Brown vivenciou a his­tória como um pesadelo, do qual ele almejou despertar; porém, seu pesa­delo, ao contrário dos outros, não corresponde a nenhuma situação histórica específica, e sim à historicidade enquanto tal. Não obstante, iniciativas intelectuais como a de Brown ajudaram muitos de seus con­temporâneos a desenvolver uma perspectiva crítica sobre seu período histórico, a confortavelmente ansiosa Era Eisenhower. Embora Brown afirmasse detestar a história, referir-se a Fausto foi um gesto histórico de grande audácia - na verdade, um ato fáustico em seu pleno direito. Como tal, não só prefigurou como nutriu as radicais iniciativas da dé­cada seguinte.
Fausto seguiu desempenhando importantes papéis simbólicos nos anos 60. Pode-se dizer que uma visão fáustica animou alguns dos movi­mentos radicais primários e algumas journées da década. Essa visão foi fortemente dramatizada, por exemplo, na marcha coletiva sobre o Pen­tágono, em 1967. Essa demonstração, imortalizada no livro Exércitos da Noite, de Norman Mailer, retratou um exorcismo simbólico; em­preendido em nome de uma vasta e sincrética mescla de deuses fami­liares e estrangeiros, com a intenção de expelir os demônios estruturais do Pentágono. (Liberado do peso, proclamaram os exorcistas, o edifí­cio levitaria e deslizaria ou voaria para longe.) Para os participantes desse notável evento, o Pentágono aparecia como a apoteose de uma construção fáustica enviesada, que ergueu os mais virulentos engenhos de destruição do mundo. Nossa demonstração e nosso movimento pela paz, como um todo, apareceram como uma acusação às visões e desíg­nios fáusticos da América. Por outro lado, essa demonstração consti­tuiu, por si, uma espetacular construção, uma das poucas oportuni­dades que a esquerda norte-americana teve de expressar suas próprias aspirações e aptidões fáusticas. As estranhas ambivalências do evento w fizeram sentir à medida que chegávamos mais e mais perto do edi­fício - a sensação era de que se podia ir chegando perto eternamente, sem jamais chegar lá: era um perfeito ambiente kafkiano - e algumas das pequenas silhuetas dentro dele, emolduradas pelas janelas longín­quas (janelas são ultrafáusticas, afirmou Spengler), apontavam, acena­vam e até mesmo moviam seus braços para nos tocar, como se reconhe­cessem em nós espíritos afins, para nos tentar ou nos desejar boas-vin­das. Após algum tempo, os cassetetes dos soldados e o gás lacrimogêneo esclareceram a distância entre nós; mas o esclarecimento representou tini alívio, quando veio, e houve alguns momentos difíceis antes que isso acontecesse. Mailer provavelmente tinha em mente esse dia quando es­creveu, no finalzinho da década: "Vivemos uma era fáustica, destinada a enfrentar Deus ou o Diabo antes que tudo isso se cumpra, e o inevitável minério da autenticidade é nossa única chave para abrir a porta".  (18)
Fausto ocupou um lugar igualmente importante na visão muito diferente dos anos 60 a qual chamarei de "pastoral". Seu papel na pastoral dos anos 60 foi, literalmente, ser colocado no pasto. Seus desejos, habilidades e iniciativas tinham capacitado a humanidade para realizar grandes descobertas científicas e a produzir uma arte magní­fica, a transformar o ambiente natural e humano e a criar a economia da abundância que sociedades industrialmente avançadas há pouco tinham começado a desfrutar. Agora, porém, em virtude de seu pró­prio sucesso, o "Homem Fáustico" tinha-se tornado historicamente obsoleto. Esse argumento foi desenvolvido pelo biologista molecular Gunther Stent, em um livro intitulado O Advento da Idade de Ouro: Uma Visão do Fim do Progresso. Stent usou as perspectivas da sua própria ciência, em especial a recente descoberta dos DNA, para alegar que as conquistas da cultura moderna deixaram essa cultura saturada e exaurida, sem ter para onde ir. O moderno desenvolvimento econômico e a evolução global da sociedade atingiram, por processo similar, o fim cia estrada. A História trouxe-nos até um ponto em que "o bem-estar econômico é dado como certo", não havendo mais nada significativo que fazer:

E aqui podemos perceber uma contradição interna do progresso. O pro­gresso depende da ação do Homem Fáustico, cuja motivação básica é a vontade de poder. Mas, tendo o progresso chegado a prover-,um am­biente de suficiente segurança econômica para Todos os Homens, o ethos social daí resultante trabalha contra a transmissão do desejo de poder às novas gerações e, portanto, faz abortar o desenvolvimento do Homem Fáustico.
 
Por meio de um processo de seleção natural, o Homem Fáustico estava sendo gradualmente descartado do ambiente que ele mesmo criara.
A geração mais jovem, que cresceu nesse novo mundo, não sen­tia, é evidente, qualquer desejo de ação ou conquista, poder ou mu­dança; só se preocupava em dizer Verweile doch, du bist so schoene em continuar a dizer a mesma coisa, até o fim de seus dias. Essas crianças do futuro podem, ainda hoje, ser vistas balançando-se, can­tando, dançando, fazendo amor e flutuando sob o sol da Califórnia. A visão pictórica da Idade de Ouro, por Lucas Cranach, que Stent reproduziu como frontispício, "não é nada mais que a visão profética de um muito hippie Estar-na-Sua, no Golden Gate Park" (em São Francisco).
A iminente consumação da história seria "um período de êxtase geral"; arte, pensamento e ciência podem continuar existindo, mas com pouca função além de servir para passar o tempo e desfrutar a vida. "O Homem Fáustico da Idade de Ferro veria com desgosto a possibilidade de os seus influentes sucessores poderem devotar sua abundância de tempo disponível aos prazeres sensuais. (...) Mas o Ho­mem Fáustico faria melhor se enfrentasse o fato de que esta Idade de Ouro é precisamente o fruto de todos os seus frenéticos esforços, e não adianta agora desejar que as coisas tomassem outro rumo." Stent ter­mina com uma nota pesarosa, quase elegíaca: "Um milênio de dedica­ção às artes e às ciências finalmente transformará a tragicomédia da vida em um happening". (19) Porém, a nostalgia de um estilo fáustico de vida é certamente sinal de obsolescência. Stent viu o futuro, e ele aconteceu.5
É difícil reler essas pastorais dos anos 60 sem alguma tristeza nostálgica, não tanto pelos hippies de ontem como pela crença virtual­mente unânime - partilhada por aqueles honrados cidadãos que no geral desprezavam os hippies - de que uma vida de estável abundân­cia, lazer e bem-estar tinha chegado aqui para ficar. De fato, existem aí muitos pontos de continuidade entre os anos 60 e 70; todavia, a euforia econômica daqueles anos - John Brooks, em recente apanhado sobre a Wall Street dos anos 60, chamou-os "anos go-go" - parece per­tencer agora a um beatificado mundo estranho. Passado um tempo notavelmente curto, a alegre esperança foi banida por inteiro. A cres­cente crise de energia dos anos 70, com todas as suas dimensões ecológicas e tecnológicas, econômicas e políticas, gerou ondas de desconten­tamento, amargura e perplexidade, chegando algumas vezes ao pânico e ao desespero histérico; mas inspirou uma saudável e severa auto-aná­lise cultural, que, no entanto, muitas vezes degenerou em auto-repúdio e autoflagelação mórbidos.
Hoje, para muita gente, todo o multissecular projeto de modernização aparece como um equívoco desastroso, um ato de arrogância e maldade cósmicas. E a figura de Fausto surge agora em novo papel simbólico, como o demônio que arrancou a espécie humana de sua unidade primordial com a natureza e impeliu-nos ao longo da estrada da catástrofe. "Há um sentido de desespero no ar", escreveu em 1973 um antropólogo cultural de nome Bernard James, "o sentido de que o homem foi condenado pela ciência e a tecnologia a uma nova era de precariedade". Nessa era, "o período final de decadência do nosso mundo ocidental, o diagnóstico é claro. Vivemos em um planeta super­povoado e pilhado, e temos de interromper a pilhagem ou perecer". O livro de James tinha um título apocalíptico bem ao gosto dos anos 70: A Morte do Progresso. Segundo ele, a força letal, que devia ser extirpada antes que extirpasse toda a humanidade, era "a moderna cultura do progresso", e seu herói cultural número um era Fausto. James não parecia pronto a denunciar e renunciar a todas as modernas descobertas científicas e inovações tecnológicas (demonstrou especial carinho pelos computadores). Mas afirmou que "a necessidade de co­nhecer, como é entendida hoje, pode ser um esporte cultural mortí­fero", que deveria ser radicalmente restringido, se não abolido de uma vez por todas. Depois de pintar persuasivos quadros de possíveis de­sastres nucleares e monstruosas formas de guerra biológica e engenharia genética, James insistiu em que esses horrores fluem muito natural­mente da "concupiscência de proveta que leva a cometer o pecado de Fausto (20) Assim, o vilão fáustico, caro aos quadrinhos do Capitão América e aos editoriais do New Yorker do fim dos anos 70, mostra no­vamente as garras. É notável que a pastoral dos anos 60 e o apocalipse dos 70 se juntem ao afirmar que, para a humanidade sobreviver - para viver a boa vida (1960) ou qualquer vida (1970) - o "Homem Fáustico" deve desaparecer.
Ao longo dos anos 70, à medida que se intensificou o debate em torno da conveniência e dos limites do crescimento econômico e das melhores formas de produzir e conservar energia, ecologistas e defen­sores do anticrescimento pintaram Fausto como o típico "Homem-Pro­gresso", que faria o mundo em pedaços, em nome da expansão insaciá­vel sem perguntar ou sem se preocupar com o que o crescimento ili­mitado faria à natureza ou ao homem. Desnecessário dizer que isso é uma absurda distorção da história de Fausto, reduzindo a tragédia a melodrama. (No entanto, assemelha-se ao teatrinho de marionetes fáusticos, visto por Goethe na infância.) O que me parece mais impor­tante é o vácuo intelectual que emerge quando Fausto é deslocado do seu cenário original. Os vários defensores da energia extraída do sol, do vento ou da água, das pequenas fontes de energia, descentralizadas, das "tecnologias intermediárias", da "equilibrada economia estatal", são todos virtualmente inimigos do planejamento em larga escala, da pesquisa científica, da inovação tecnológica, da organização com­plexa. (21)
Contudo, para que muitos de seus planos e visões sejam de fato adotados por um número significativo de pessoas, seria preciso ocorrer a mais radical redistribuição de poder econômico e político. E, ainda, isso - que obrigaria à dissolução da General Motors, da Exxon, da Con Edison e seus filiados e à redistribuição de todos os seus recursos pelas pessoas - representaria apenas o prelúdio de uma ampla e des­concertantemente complexa reorganização de toda a rede que compõe a vida diária hodierna. O fato é que não há nada de bizarro nos argu­mentos em torno do anticrescimento e das fontes alternativas de ener­gia, em si, que, na verdade, estão repletos de idéias engenhosas e ima­ginativas. O bizarro é que, dada a magnitude das tarefas históricas antecedentes, eles deviam exortar-nos, nas palavras de E. F. Schuma­cher, a "pensar pequeno". A paradoxal realidade que escapa à maioria desses escritores é que na sociedade moderna só o mais extravagante e sistemático "pensar grande" é capaz de abrir caminho ao "pensar pe­queno". (22) Portanto, os defensores da contenção energética, do cresci­mento limitado e da descentralização deveriam, em vez de abominá-lo, adotar Fausto como sua palavra de ordem.
O único grupo contemporâneo que não só utilizou o mito fáus­tico, mas apreendeu sua trágica profundidade é a coletividade dos cien­tistas nucleares. Os pioneiros da energia nuclear, que experimentaram um cegante clarão de luz em Alamogordo ("Meu Deus!... Os garotões cabeludos perderam o controle!"), nunca aprenderam a exorcizar aquele ameaçador Espírito da Terra que brotou da criatividade de suas mentes. Os "cientistas conscientes" do período pós-guerra estabelece­ram um peculiar estilo fáustico de ciência e tecnologia, guiados pela culpa e a preocupação, pela contradição e a angústia. Isso se opunha radicalmente ao estilo panglossiano de ciência predominante nos círcu­los militares, industriais e políticos de comando, então como agora, segundo o qual eventuais acidentes serão secundários e irrelevantes, pois caminha bem tudo o que termina bem. Num tempo em que todos os governos mentiam de forma sistemática a seus cidadãos sobre os perigos das armas nucleares e da guerra nuclear, os experimentados veteranos do Projeto Manhattan (Leo Szilard foi o mais heróico deles), acima de todos, expuseram com lucidez a verdade e começaram a lutar pelo controle civil da energia atômica, pelas restrições aos testes nu­cleares e pelo controle internacional do armamento. (23) Seu projeto aju­dou a manter viva certa consciência fáustica e a contestar a proclama­ção mefistofélica de que o homem só poderia realizar grandes empreen­dimentos obliterando qualquer sentimento de culpa e preocupação. Mostraram como tais emoções podem conduzir a ações extremamente criativas no que diz respeito à sobrevivência da humanidade.
Nos anos recentes, os debates em torno do poder nuclear geraram novas metamorfoses de Fausto. Em 1971, Alvin Weinberg, um bri­lhante físico e administrador e por muitos anos diretor do Laboratório de Oak Ridge, invocou Fausto no clímax de um discutidíssimo depoimento sobre "Instituições Sociais e Energia Nuclear":

Nós, envolvidos em ciência nuclear, estabelecemos uma transação fáus­tica com a sociedade. De um lado, oferecemos - no combustível nuclear catalítico - uma inexaurível fonte de energia. (...) Mas o preço que exigimos da sociedade por essa mágica fonte de energia é uma vigilância e uma longevidade das instituições sociais a que não estamos nem um pouco habituados.

A fim de preservar essa "infinita fonte de energia barata e limpa", ho­mens, sociedades e nações do futuro deverão manter "eterna vigilân­cia" sobre graves perigos não só tecnológicos - estes seriam, de fato, os menos graves -, mas sociais e políticos.
Este livro não é o lugar ideal para contestar os méritos e demé­ritos da desconcertante e profundamente emblemática transação nu­clear mencionada por Weinberg. Mas é o lugar para assinalar o que ele faz em relação a Fausto. O ponto decisivo aqui é que os cientistas ("Nós, envolvidos em ciência nuclear") não desempenham mais o papel de Fausto. Em vez disso, assumem o papel do personagem que propõe a negociação - ou seja, Mefistófeles, "o espírito que nega tudo". Uma estranha e ricamente ambígua autoimagem, não destinada a ganhar prêmios de relações públicas, porém cheia de encanto em sua (talvez inconsciente) candura. Todavia, é o corolário dessa encenação que im­porta mais: o protagonista fáustico proposto por Weinberg, que deve decidir se aceita ou rejeita o negócio, é "a sociedade" - ou seja, todos nós. A idéia subjacente é que o impulso fáustico na direção do desen­volvimento anima, hoje, a todos os homens e mulheres modernos. Em conseqüência, "a sociedade precisa fazer sua opção, e é uma opção que nós, envolvidos em ciência nuclear, não temos o direito de impor". (24) Isso significa que, enquanto as negociações fáusticas se realizam - ou não se realizam -, nós temos não apenas o direito mas a obrigação de nos envolvermos na transação.6
  Não podemos transferir a responsabi­lidade pelo desenvolvimento a nenhum clube de experts - exatamente porque, em matéria de desenvolvimento, todos somos experts. Se os quadros científicos e tecnológicos acumularam vastos poderes, na so­ciedade moderna, isso se deve ao fato de que suas visões e valores ape­nas ecoaram, amplificaram e concretizaram os nossos próprios valores e visões. Eles apenas criaram meios para realizar objetivos endossados pelo público moderno: total desenvolvimento do indivíduo e da socie­dade, incessante transformação do mundo interior e exterior. Como membros da sociedade moderna, somos todos responsáveis pelas dire­ções nas quais nos desenvolvemos, por nossas metas e realizações, pelo alto custo humano aí implicado. Nossa sociedade jamais poderá con­trolar seus vulcânicos "poderes ocultos" enquanto pretendermos que apenas os cientistas perderam o controle. Um dos fatos básicos da vida moderna é que todos nós, hoje, somos "garotões cabeludos".
Homens e mulheres modernos, em busca de autoconhecimento, podem perfeitamente encontrar um ponto de partida em Goethe, que nos deu com o Fausto nossa primeira tragédia do desenvolvimento. Ë uma tragédia que ninguém deseja enfrentar - sejam países avançados ou atrasados, de ideologia capitalista ou socialista -, mas que todos continuam a protagonizar. As perspectivas e visões de Goethe nos aju­dam a ver como a mais completa e profunda crítica à modernidade pode partir exatamente daqueles que de modo mais entusiasmado ado­tam o espírito de aventura na modernidade. Todavia, se Fausto é uma crítica, é também um desafio - ao nosso mundo, ainda mais do que ao mundo de Goethe - no sentido de imaginarmos e criarmos novas for­mas de modernidade, em que o homem não existirá em função do de­senvolvimento mas este, sim, em função do homem. O interminável canteiro de obras de Fausto é o chão vibrante porém inseguro sobre o qual devemos balizar e construir nossas vidas.

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