EUNUCOS PELO REINO DE DEUS, de Uta Ranke - Heinemann

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No dia 28 de fevereiro de 2013, o Papa oficializou sua renúncia, a primeira em seiscentos anos, em meio a uma sucessão de escandalosas denúncias de abusos sexuais, pedofilia e corrupção que chegaram à mídia de todo o mundo cristão. Segundo as profecias de Malaquias, tempos difíceis aguardam pelo próximo (e último?) Papa, à Magna Igreja que já teve tanto poder, e tribulações para toda a humanidade. Novos tempos, novas profecias, novas realidades. Por isso, não poderia deixar de lembrar do mais bem documentado livro que já li sobre a sexualidade vista pela Igreja Católica, sobre como a opinião deste ou daquele catedrático religioso medieval em escritos dos mosteiros esquecidos no tempo, mas radicais em seus preconceitos, moldariam por séculos o destino de milhões de pessoas, mergulhando o mundo ocidental nas trevas do fanatismo.

Uta Ranke-Heinemann foi considerada uma das maiores teólogas do mundo, e dispôs de tempo, recursos e acesso a uma coleção de documentos, teses e estudos medievais, aos quais nós - pobres mortais! -, jamais saberíamos a existência, não fosse por este livro.

Ao publicar EUNUCOS PELO REINO DE DEUS, Uta Ranke-Heinemann perdeu sua Cátedra na Universidade de Heidenberg. Lendo o livro, não é difícil entender o porquê. Fortemente documentada, ela analisa desde as raízes pagãs do pessimismo sexual cristão, passando pelos teólogos pré e pós Agostinho, um capítulo inteiro sobre a evolução do celibato com seu medo e da supressão das mulheres entre celibatários, a formação do conceito do "sexo sem pecado", feiticeiras, Lutero, a moralidade jesuítica, terminando com os temas da modernidade: o controle da natalidade, o aborto, o onanismo, a homossexualidade, e a teologia moral do século XX.

Mas ao contrário do que se possa imaginar, o livro não induz a nenhum tipo de "teoria conspiratória", nem faz descrer em qualquer fé que porventura se possua. Uta Ranke-Heinemann traça uma cronologia perfeita, desde a origem pagã até os conceitos da modernidade. E em cada período, destaca como e quando cada ideia se tornou falsa, não por falta de fundamentos, mas pelo radicalismo de alguma interpretação.

Ao ler o livro, não ficamos com raiva de ninguém, de nenhuma instituição. Mas somos obrigados a pensar porque, de forma tão persistente e até hoje, associamos a ideia de perfeição como algo antinatural, e como isso deixa cada um de nós, vulneráveis a acreditar em bobagens ditas com persuasão. (Como dizem os psicólogos, o grande problema com os paranóicos, é que sempre tem uma dúzia de neuróticos que acredita...).

Como sociedade, podemos até alardear que em tempos modernos, superamos (em parte) tabus da sexualidade, aqueles tratados neste livro. Mas vamos pensar melhor: já abandonamos a ideia de que a perfeição é antinatural? Que é melhor andar de carro, ao invés de caminhar? Ou prolongar artificialmente a vida, ao invés de morrer com dignidade? Quem teria a ousadia de criticar o ícone da modernidade, shopping centers onde a luz natural nunca entra, onde o ar é fornecido por máquinas, onde nenhuma planta cresce e nenhum animal poderia viver?

Mas tornando desejável e idealizado aquilo que não é natural, é necessário reprimir e impor sobre a maioria, o radicalismo de poucos. Todos sabemos que a depravação é consequência lógica da repressão. E não faz diferença se a repressão é justificada em nome de "deus", da "ciência" ou "da maioria". Na natureza (e não somos todos, animais da natureza?) não há justiça, há consequências. Não há leis, há causa e efeito. Não há "o melhor", há o necessário. Não existe maioria, existe diversidade. Porque é tão difícil aprender que não existem linhas retas na natureza?

EUNUCOS PELO REINO DE DEUS, um livro que abalou a igreja, um trabalho respeitado graças à erudição de sua autora e o incrível levantamento de dados documentais. Polêmico, profundo e inesquecível.


Texto de Elaine Novaes Falco.

FONTE: Escritora Procura Leitores

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