Ciganos: A oralidade como defesa de uma minoria étnica

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1. INTRODUÇÃO

Pode-se falar sobre a origem, a história e a tradição de um povo, sob o ponto de vista dos pesquisadores, ou seja, uma visão científica do fato e/ou sob a ótica do próprio povo.
E, por se tratar de CIGANOS, a ótica do próprio povo assume um caráter de maior importância, visto que se trata de um povo de tradição oral. Neste sentido é fundamental se destacarem as histórias do povo contadas por ele mesmo, não só por refletirem essencialmente sua tradição, seus costumes, sua cosmovisão, mas também por ditarem normas de comportamento para os que as ouvem: são os mais velhos passando o seu verdadeiro ouro — os paramiches — aos mais jovens e às crianças, ao pé do ouvido, de boca em boca, de geração a geração.

Este trabalho procura mostrar a visão científico-social da importância da ORALIDADE para o povo cigano, porém faz questão de ressaltar o pensamento do ROMA sobre a ROMANIPEN, mormente no que diz respeito à chibe e aos paramiches.

Não podemos, no entanto, nos ater à característica da oralidade, sem antes nos referirmos, em linhas gerais, a essa etnia — CIGANOS — a respeito da qual tão pouco se conhece. E, como se sabe, o preconceito é gerado basicamente pela desinformação.

Segundo dados da UNESCO há, na América Latina cerca de 1.500.000 de ciganos, entre nômades, semi-nômades e sedentários. Desses, pelo menos 600.000 encontram-se espalhados pelos 8.152.000 km quadrados do território brasileiro.

A maioria das pessoas já procurou saber, alguma vez, o que significa SER CIGANO? Conhece realmente a cultura desse povo?

Infelizmente só se têm notícias do cigano através de imagens estereotipadas, pícaras, folclóricas.

Não se pode conhecer o cigano isolado de seu contexto, isto é, dos condicionamentos sócio-culturais de sua etnia. No entanto, as chaves da identidade desse povo não se encontram no indivíduo, mas no grupo. A cultura e a personalidade cigana moldam-se por completo no grupo e, a partir daí, projetam-se em cada um de seus componentes. Como diz o cigano Samuel Costite, do grupo Kalderash, "prefiro morrer, a viver isolado, longe do meu povo".

É inegável que existe um forte racismo contra os ciganos, o qual tem sido um dos mais silenciosos da História, mas é preciso reconhecer que o próprio cigano tem contribuído para este silêncio. Daí o valor das organizações ciganas internacionais que há meio século vêm desenvolvendo um importante trabalho de afirmação da etnia cigana.

No Brasil já existe, desde 16 de março de 1987, o Centro de Estudos Ciganos do Brasil — CEC —, o primeiro da América Latina, presidido atualmente pela advogada Anny Walmrath Reis, cigana do subgrupo ragari. O objetivo do CEC é unir os ciganos em torno de um ideal comum: a fidelidade a si mesmos, aos seus costumes, aos seus valores, sem no entanto perder a noção da realidade social do país em que vivem.

2. QUEM SÃO CIGANOS?

"Mas, afinal, o que querem os ciganos?
Ir até o fim do mundo e, se possível, voltar."

(Do filme russo "Os Ciganos vão para o céu" de Emil Lotianu)

"Sou cigana, venho de um povo marcado. De onde viemos e para onde iremos, nada disso nos importa. O que importa é o muito que vivemos."
(Esmeralda Liechocki, cartomante, cigana semi-nômade do grupo calon)

"Quem garante que a India não tivesse sido apenas uma etapa duradoura na trajetória do povo rom?
O reconhecimento de alguns estudiosos de uma origem hindu para o nosso povo, ainda deixa dúvidas para se ter esta como uma tese verdadeira."

(Yargo Reis, antropólogo, cigano sedentário do subgrupo ragari)

"Falar de ciganos, muito vos fascina, mas o entusiasmo em breve termina, pois o racismo cruel não vos deixa pensar."
(Marcos Rodrigues, comerciante, cigano nômade do grupo calon)

"Se logo depois do ano 1000 os ciganos aparecem na história e no 1500 estão presentes em toda a Europa, pode-se dizer que no início de 1600 estão presentes no mundo inteiro. Daí em diante o mundo não pode mais escrever a própria história sem levar em conta os ciganos."
(Renato Rosso, italiano, líder da Pastoral de Nômades do Brasil)

O problema da origem dos ciganos é, para os ciganólogos, o mesmo que o da origem do homem para os antropólogos. Há explicações míticas para a origem e a dispersão dos ciganos pelo mundo. Os próprios ciganos, quando são indagados sobre o mistério da sua origem e debandada pelo mundo, respondem:
"Viemos do Egito. A minha raça já fazia as jóias de ouro para os faráos."
(Olga Petrovich, quiromante, sedentária, cigana do subgrupo matchuaia)

"Cigano não tem que ficar trabalhando dia e noite igua a gadjo, porque somos descendentes de Adão e uma outra mulher, antes de Eva. Não temos nada a ver com essa história de pecado original."
(Juan González, motorista de táxi, sedentário, cigano do grupo calon da Espanha)

Existem, no entanto, explicações científicas para a origem dos ciganos pois, a par de estudos comparativos sobre o modo de vida, a capacidade espiritual (superstições de signos ocultos e cabalísticos), trajes, ofícios (ferreiros, músicos e adivinhos), caracteres físicos dos ciganos e de tribos nômades que há no Noroeste da India, atual Paquistão — os laubadies—, o que mais incentivou os pesquisadores a determinar esse local como a terra de origem dos ciganos foram estudos etnolinguísticos (século XVIII) que comprovaram que o romanê — língua dos ciganos — é aparentado com o sânscrito — língua da India Antiga. Sobre a pré-história dos ciganos, isto é, a história deles na India Antiga, quase nada se sabe. Presume-se que começaram a nomadizar, ainda em solo hindu, porque não se adaptaram à nova ordem social imposta com a invasão dos árias, dentro da qual os ciganos eram considerados párias. O fato é que eles exerciam profissões como amestradores de animais, ferreiros e forjadores de metal e quiromantes e esses ofícios repugnariam as castas superiores da India Antiga. Um dos nomes por que são conhecidos os ciganos até hoje é BOÊMIOS, palavra esta originária do sânscrito BOAHA Ml (afaste-se de mim), ou seja, os ciganos eram considerados malditos e feiticeiros, principalmente por trabalharem com o ferro e o fogo e eram, por isto, obrigados a morar afastados dos demais. Ante essa imposição humilhante e como forma de preservar suas tradições, restou-lhes a opção de caminhar. E assim ficaram caminhando durante um milênio, na India, até chegarem à Europa, presumivelmente entre os séculos XIII e XIV. Em verdade, o que houve com a chegada dos ciganos à Europa foi um choque cultura. Se, no início eram vistos como um "povo exótico" que, àquela época se imaginava que teria vindo do Egito, logo depois a prática constante do nomadismo — ainda que, naquele tempo, outros povos fossem nômades também — os trajes diferentes e, basicamente, o conhecimento e o uso das artes de adivinhação (cartomancia e quiromancia), geraram espanto às populações dos locais por onde passavam e atitudes severas por parte das autoridades.

Como consequência desse choque de culturas, de visão de mundo, passou a existir, a partir do século XV, uma legislação anticigana que, na maioria dos países, durou cerca de quatro séculos e que deixou marcas profundas nas relações entre ciganos e não-ciganos até os nossos dias.

Ao cigano era então proibido: falar o romanê, ser nômade, ler as linhas da mão e usar trajes específicos de sua cultura. O castigo variava de degredo e açoites até a pena de morte. Tiravam-se-lhes os filhos brutalmente para serem entregues a mestres europeus, pois se julgava que a educação cigana era perniciosa.

No Brasil, o primeiro cigano que chegou foi João Torres, em 1574, e veio na condição de degredado de Portugal, pois, segundo os dizeres de um alvará da época, "Porém, em podendo, haveremos de deitar fora essa má casta".

"A liri es ye crayi micobó a liri es calé."
("A lei dos reis tem destruído a lei dos ciganos." — dito cigano)

Já numa outra situação, chegam ao Brasil, vindos de Portugal, muitos outros ciganos. Isto ocorreu em 1808, com a Corte de D. João VI. Eles eram os festeiros da Corte, os ferreiros e também os meirinhos, profissão hoje conhecida por oficiais de justiça. E se sua trajetória pela Europa entre os séculos XV e XIX foi dura, também o século XX lhes reservou dolorosos momentos históricos. Mas nem o sistema de castas da India Antiga, a tentativa de dizimação cultural e étnica dos ciganos pelos governos da Europa, a Inquisição — quando os ciganos foram queimados nas fogueiras como bruxos —, a Revolução Industrial — com o advento da Indústria passou-se a produzir em grande quantidade os objetos que os ciganos fabricavam artesanalmente e os ciganos comerciantes de cavalos passaram a concorrer com as máquinas agrícolas e os veículos a motor —, a Guerra Civil Espanhola — quando a Guarda Civil fuzilou, entre outros, os ciganos, como bem denunciou Garcia Lorca em seu Romancero Gitano — e o Nazismo — quando pereceram 600.000 ciganos—, nada impediu que os ciganos continuassem existindo como um grupo étnico até os nossos dias, se bem que os nômades (hoje somente um terço no Brasil e no mundo) se encontrem bastante marginalizados e muitos sedentários já tenham sido incorporados pelo sistema de vida dos gadje.

3. Principais traços culturais dos grupos ciganos

"Cigano não tem rei, nem pátria, nem presidente. Achamos que o melhor mesmo para nós é caminhar pelo mundo, respeitando as nossas leis que são muito antigas, Devel e Jesus, que também era um andarilho como nós."
(Rosa Calderas, quiromante, semi-nômade, cigana do subgrupo Kalderash)

A palavra Cigano vem de ATKINGANO, vocábulo de origem grega que o povo desse país usava para nomear uma seita de músicos e adivinhos que era conhecida no Império Bizantino desde o século VIII. Já no século XIV, os gregos passaram a confundir as pessoas da seita com aquele povo que por ali chegava e passaram a designá-los por atkinganos.
Pode-se dizer que cigano é uma denominação genérica que pressupõe uma unidade. No entanto, é preciso destacar que há grupos e subgrupos e essa diversidade é caracterizada principalmente pelo tipo de atividade exercida — calderia, negócios, circense, musical, etc. — e pelo convívio com os mais diversos povos do planeta.

Os principais grupos de ciganos existentes no Brasil são: o calon, composto por ciganos que chegaram ao Brasil via Portugal e Espanha e o rom, composto por ciganos extra-ibéricos que aqui chegaram procedentes da Iugoslávia, Romênia, Rússia, Alemanha, França, Itália, Grécia, Hungria, Turquia, etc. Dentro do grupo rom há inúmeros subgrupos: kalderash, ragari, horaranó, matchuaia, lovara, etc.

Podem ser nômades — os que caminham o tempo todo e vivem em barracas; semi-nômades — os que tem residência fixa, mas viajam por causa de negócios e os sedentários que não acampam mais, têm residência fixa, um nível econômico melhor e uma minoria deles chegou às universidades, exercendo os mais diversos tipos de profissão, tais como advogados, professores, antropólogos, médicos, assistentes sociais, etc.

Os ofícios tipicamente ciganos como tacheiros de cobre, quiromantes e cartomantes, violinistas, artistas de circo são exercidos pelos nômades e semi-nômades, sendo que atualmente os ciganos são predominantemente comerciantes de automóveis, tapetes, colchas, jóias e bijuterias. Os sedentários que não têm nível universitário geralmente exercem esses ofícios ciganos.

Interessante destacar que no grupo calon sedentário que vive no bairro do Catumbi, cidade do Rio de Janeiro, há muitos ciganos exercendo a profissão de oficial de justiça, à semelhança de seus antepassados que aqui chegaram com a Corte de D. João VI.

O povo cigano não tem pátria — por isto a India em 1976 lhes concedeu a condição de cidadãos hindus no exílio — e valoriza a dispersão pelo mundo como um aspecto importante de sua sobrevivência enquanto etnia. Por causa disto, a família é fundamental pois é ela que lhes dá "consciência de comunidade" mesmo sem ter pátria.

Não há propriamente uma religião cigana, mas uma "religiosidade intrínseca" que faz parte de todos os hábitos da vida do cigano, do nascimento à morte. De acordo com o lugar onde vivem, há uma tendência para adotarem a religião predominante na área. Quanto aos casamentos, são realizados geralmente entre os de sua raça, mas hoje em dia já existem cada vez mais casamentos entre ciganos e gadje, o que, inegavelmente, contribui para a perda de muitos aspectos da tradição cigana.

Há, por fim, que se destacar a ORALIDADE como um dos traços culturais mais importantes do povo cigano, no que concerne à defesa de seus valores culturais. E é neste aspecto que vamos nos deter no próximo tópico.

4. ORALIDADE

"Romani tcha tchipé"
("Só em romanê se diz a verdade")
— Yargo Ragari

"A língua é minha pátria"
(Carlos Calderas, tacheiro semi-nômade, cigano do grupo kalderash)

"Quando eu era um menino, quase um rapaz lembro que me dava muito orgulho haver uma língua cigana, porque nos diferenciava dos outros. E, como havia muito preconceito contra nós, isso nos ajudava a levantar a cabeça".
(Armando Pepino, circense, semi-nômade, cigano do subgrupo kalderash)

Por essas referências acima, feitas por ciganos à sua língua, pode-se perceber o quanto a valorizam. O grupo rom fala o romanê que é a estrutura linguística básica dos ciganos, apresentando algumas diferenças dialetais de acordo com o subgrupo. E o grupo calon fala o dialeto do mesmo nome, no Brasil um pouco influenciado, a nível de estrutura da língua, pelo Português. Na Espanha, o calon é fortemente influenciado pela língua espanhola. Na Europa, em que o movimento já está bastante sedimentado, há inúmeros trabalhos e até dicionários em romanê, com a respectiva tradução para a língua do país onde foi feita a publicação. No Brasil, o movimento está dando os primeiros passos e, neste sentido, os ciganos não vêm com muita simpatia a divulgação de sua língua para os não-ciganos.

A oralidade e o segredo, aliás, são duas caraterísticas fortes do roma e uma atua no sentido de reforçar a outra. Como dizem eles, "para contar segredo, sussurrar a um surdo."

Quando os ciganos são entrevistados por estudiosos de sua cultura, têm uma enorme resistência em falar-lhes, e mais ainda quando percebem que o que estão dizendo será escrito. A explicação que dão é a de que "contar histórias do nosso povo e da nossa tradição é trair os antepassados, os mule roma que irão nos castigar por isto". Por este motivo, têm driblado ao longo dos tempos, com informações incorretas, ambíguas, principalmente os jornalistas, que têm uma preocupação mais imediata com o tema, ao passo que os pesquisadores irão cotejar com mais acuidade — pois esse é o seu trabalho — as informações obtidas.

Costuma-se dizer que se você fizer uma pergunta a vinte ciganos, obterá vinte respostas diferentes e, mais surpreendentemente, se você fizer vinte perguntas a um mesmo cigano, ainda assim obterá vinte respostas diferentes.

Também a variedade do uso de nomes é um traço importante neste sentido. O cigano, de acordo com a tradição, deverá ter seu primeiro nome dado pela mãe após a primeira mamada — ainda de colostro — a qual o soprará no ouvido do filho, não podendo ninguém ouvir e isto servirá para espantar Beng. O filho só saberá desse nome ao se tornar adulto e isto deve ser um eterno segredo entre ele e a mãe. O cigano então, terá um nome para o seu grupo e um outro nome com que será conhecido na sociedade não-cigana.

A fidelidade à palavra dada — a jura — é um outro reflexo da cutura oral e o não cumprimento da mesma implica em julgamento pelo krisromani — que é o Conselho de Justiça Cigana, constituído basicamente pelos barôs mais conceituados no grupo — pois é considerado falta grave.

A tradição cigana, como bem demonstra o dito abaixo, vê com desconfiança a escrita:
"É inútil qualquer escritura. A palavra basta."

Daí a resistência que principalmente os nômades têm, até hoje, em tirar certidões de nascimento e demais documentos, o que dificulta-lhes bastante a vida.

O medo da cultura escrita, ou seja, a cultura do gadjo, reflete-se no índice de analfabetismo que há entre os nômades no Brasil — 90%. Em relação aos nômades, que normalmente acampam na periferia das cidades, a escola viria romper, somente para se falar em termos práticos, a economia grupal, pois as crianças maiores costumam ajudar a cuidar dos irmãos menores, enquanto suas mães vão às principais praças das cidades ler as linhas da mão e seus pais, comerciar. Além do mais, pelo fato de viajarem, em geral trimestralmente, não há no sistema de ensino brasileiro algo que se adeque a esta realidade.

Na Itália, existe o movimento pioneiro que se iniciou há cerca de 15 anos — Lacio Drom — e que conta com professores ciganos e representantes da Igreja Católica que viajam com os ciganos e alfabetizam as crianças através de uma escola itinerante. Aqui no Brasil, o Padre italiano Renato Rosso, líder da Pastoral de nômades do Brasil, realiza este trabalho pioneiro com os nômades, fruto de sua experiência de duas décadas com os ciganos da Itália. O mais importante é que ele e seu grupo não impõem uma outra cultura aos ciganos, mas alfabetizam considerando e respeitando os valores culturais ciganos e, por causa disto, o seu trabalho é muito bem recebido pelos nômades.

Entre os sedentários há um melhor nível econômico, mas somente uma minoria chega às universidades, pois o cigano ainda resiste em deixar seus filhos na escola por muito tempo. Acham que é importante eles aprenderem a ler, a escrever e a ter algumas noções de matemática, "para não serem enganados pelos gadje". Esta reação ocorre porque os ciganos têm valores próprios que hoje em dia se chocam com os da chamada sociedade de consumo: hospitalidade, profundo respeito aos mais velhos e aos antepassados, capacidade de adaptação à vida ("hoje está bom, amanhã pode não estar"), crença ilimitada em uma força superior ao homem. Eles também temem que seus filhos, indo às escolas por longo período, percam ou se envergonhem de suas tradições, consideradas pelos não-ciganos primitivas, levando-os por este motivo a se afastarem delas, o que ameaça a sobrevivência da etnia. Além do mais, é inegável que há o preconceito de outras crianças, dos pais das crianças e às vezes até dos próprios educadores, em relação a frequência de crianças ciganas às escolas.

A base da tradição cigana seria, então, a educação moral que implica no forte respeito dos jovens pelos mais velhos, o que leva à conscientização da necessidade de preservação da etnia cigana. E o sustentáculo da cultura cigana é inegavelmente a família que seria para eles uma espécie de tábua de salvação, pelo fato de não se submeterem a uma sociedade que os hostiliza e lhes é oposta em nível de costumes, tradições e sobreudo aspirações. Neste sentido, são importantes as fortes relações de parentesco e a tradição oral, pois é o avô que conta aos filhos e netos a história dos ciganos. Os velhos dentro da cultura cigana são considerados sábios, o que eles têm de mais importante e, para os ciganos é absurda a ideia dos não-ciganos de "internar em asilos" os velhos, porque eles não "servem" mais para viver com a família.

É comum até hoje nas famílias ciganas — no que se entende, obviamente, por família extensa — haver longas conversas em que os mais velhos são o centro das atenções, e falarão sobre a origem, os costumes mais antigos — hoje, muitos já caíram em desuso, como os laços de sangue para os noivos, por exemplo — o porquê do nomadismo e da sedentarização de alguns grupos, os rituais, a fuga do nazismo, os valores morais, as crenças mais profundas, os segredos da calderaria, do trabalho com o cobre, as histórias de circo, cantarão as músicas, ensinando as letras (que normalmente contêm ensinamentos da filosofia de vida cigana) e o ritmo; dançarão os passos típicos, fazendo o gestual específico com as mãos e os pés e sobretudo FALARÃO A LÍNGUA, hoje já bastante modificada pela introdução de vocábulos novos de acordo com o país em que vivem e apresentando grande índice de ciganos que a perderam parcial ou totalmente.

Em geral o que permite esses encontros frequentes, reavivando a chama da tradição, é a realização dos brodes ou patchíus, para os quais acorrem, às vezes, ciganos de várias partes do país e que também fucionam como uma cadeia de informações rápida e eficiente de nevipens romani. E tudo isto — a valorização de seus traços culturais orais, a dispersão e o segredo — existe basicamente para sustentar o mais precioso dos bens do povo cigano: A LIBERDADE.

"Si considerarmos que no hay en Ia faz de la tierra ningún pueblo que ame tanto la libertad como el Pueblo Gitano, habrá que pensar que estamos anteponiendo los temas de educación, vivienda, sanidad etc. e ignorando uno vital: la libertad, sin la que no se pueden conseguir ni la educación, ni la sanidad, ni la fraternal convivencia payo-gitana."
(Antônio Martínez Amador — Presidente do Secretariado Gitano em Ubeda, Espaha; membro da União dos Ciganos Espanhóis e da União Romani Internacional, organização reconhecida pelas Nações Unidas em 28 de fevereiro de 1979 em Nova Iorque).

BIBLIOGRAFIA

CHINA, J. B. Oliveira
1936, Os Ciganos do Brasil. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado.

HANCOCK, lan
1987, The Pariah Syndrome: an account of Gypsyslavery and persecution. Michigan, Karoma Publishers Inc.

HEREDIA, Juan de Dios Ramírez
1983, Nosostros los gitanos. Barcelona, Ediciones 29.

LOCATELLI, Moacir Antônio
1981, O Ocaso de uma cultura (Uma Análise antropológica dos ciganos). Santa Rosa, Barcelos Livreiro e Editor.

MORAES FILHO, Mello
1886, Os Ciganos no Brasil e Cancioneiro dos Ciganos. Rio de Janeiro, B.L. Garnier ed.

SANTANA, Maria de Lourdes B.
1972, Os Ciganos — Aspectos da Organização Social de um Grupo Cigano em Campinas. São Paulo, USP.

VAUX DE FOLETIER, François de
1977, Mil años de Historia de los gitanos. Barcelona, Plaza S. Janes, S. A. Editores.

GLOSSÁRIO (romanê e dialeto calon)

Barôs = ciganos mais velhos.

Beng = Diabo.

Brode = festas do grupo calon.

Calon = grupo cigano de origem ibérica; cigano; dialeto desse grupo.

Chibe = língua.

Devel = Deus.

Gadjo = homem não-cigano; plural: gadje.

Krisromani = justiça cigana.

Lacio drom = boa viagem.

Mule roma = antepassados ciganos.

Nevipens romani = notícias ciganas.

Paramiches = histórias

Payo = homen não-cigano; referente a não-cigano.

Rom = cigano; roma: os ciganos.

Romanipen = ciganidade.

Patchíus = festas do grupo rom.

AUTORA

Cristina de Costa Pereira (Brasil)
Professora de português e literatura brasileira.
Autora de três livros de antropologia sobre os ciganos: Povo Cigano (1986); Os Ciganos Continuam na Estrada (1989) e Lendas e Histórias Ciganas. Escreveu também numerosos artigos sobre o tema para revistas brasileiras e estrangeiras.

Fundadora do Centro de Estudos Ciganos do Brasil, participou como conferencista em numerosos eventos no Rio de Janeiro, assim como em outros países.

FONTE: http://www.lacult.org/docc/oralidad_04_34-39-ciganos-a-oralidade.pdf

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