Representações sociais e identidade em grupos de mulheres ciganas e rurais

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Resumo:
A partir das teorias da Identidade Social e das Representações Sociais tivemos como objetivo analisar as relações intergrupais estabelecidas entre comunidades rural e cigana, procurando conhecer os significados e as práticas construídas na dinâmica entre endogrupo e exogrupo. Participaram do estudo 17 mulheres de duas comunidades tradicionais, com idades entre 14 e 67 anos. Realizamos entrevistas individuais a partir de roteiros semiestruturados. Procedemos à análise dos dados através do software ALCESTE e da Análise de Conteúdo. Os resultados indicaram presença de práticas que sugerem a existência de elementos de representação ambíguos orientando as relações intergrupais. Discute-se o conflito produzido pela diferenciação identitária ancorada nos elementos das culturas "cigana" e "rural", reforçado por representações dos ciganos como povo amaldiçoado, e os laços de solidariedade gerados pela identidade feminina comum, que agrega o sentimento de mulheres sofredoras e exploradas pelos homens que detêm o poder em ambos os grupos.

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Introdução

As relações entre indivíduo e sociedade são complexas e envolvem uma intrincada rede de fenômenos, entre os quais podemos destacar os sistemas de valores e crenças. Estes sistemas, sempre ancorados na cultura, contribuem para a construção da realidade e orientação das ações dos indivíduos nos diferentes contextos sociais. Pensar as relações intergrupais nesta perspectiva implica considerar o contexto cultural característico de cada grupo social, buscando em seu percurso histórico as estratégias que possibilitaram a construção de determinadas práticas, visto que “não podemos compreender nenhuma realidade social sem conhecer o contexto sócio-histórico em que se envolve” (Casas, 2005, p. 42).

Segundo Bonin (2000), “viver em grupo já é difícil,
mas o mais problemático é tentar conviver com grupos que têm diferentes regras de relações e de poderes” (p. 65). Tal é a condição dos grupos rural e cigano, uma vez que suas características culturais se
fundamentam em sistemas de crenças e valores marcadamente distintos, que produzem processos identitários também diferentes. Reconhece-se que, no âmbito de cada uma das comunidades, existe diversidade, embora se possa falar de “um rural” e de “um cigano” como categorias, a partir de uma dimensão mais geral da realidade social. A expressão “comunidade” é aqui utilizada para retratar as relações sociais construídas e mantidas por famílias ligadas por laços de parentesco ou não, modos de produção, estratégias de socialização, relações afetivas, crenças e valores partilhados. É nas relações com diferentes grupos que seus membros constroem formas de organização familiar e comunitária, buscando coerência entre suas crenças e o modo como efetivamente vivem.

Os primeiros ciganos teriam chegado ao Brasil em 1574, junto com imigrantes e pessoas expulsas de Portugal (IBGE, 2006; Teixeira, 2000). De acordo com representantes da Apreci (Associação de Preservação da Cultura Cigana), estima-se que mais de 500 mil ciganos estejam vivendo atualmente no Brasil, oriundos das três etnias existentes: Rom (proveniente do leste europeu), Sinti (da França, Itália e Alemanha) e Kalom (da Península Ibérica). No entanto, o governo brasileiro ainda não possui dados oficiais acerca da comunidade cigana que vive em seu território, e pouco tem se preocupado com políticas públicas direcionadas a essa população.

Em um estudo realizado por Mendes (2000), que objetivou analisar as fronteiras entre ciganos e não ciganos a partir da identificação de seus sistemas de crenças e regras grupais, encontramos a descrição de algumas formas de organização do grupo. Segundo a autora, o gênero e a idade constituem os eixos fundamentais na estrutura social dos ciganos, mantidos e afirmados principalmente através das mulheres. Os conflitos decorrentes das relações entre grupos ciganos e não ciganos reforçam as regras internas ao grupo, bem como sua rigidez em relação à assimilação de outras formas de funcionamento grupal.

A identidade étnica persiste não só por via da interação do grupo étnico cigano com outros grupos sociais, mas sobretudo pela oposição entre eles. As diferenças existem e persistem, assim como as oposições, denotando-se nos grupos empíricos uma sobrevalorização defensiva da superioridade moral e social do seu quadro de valores quando em confronto com o dos “Outros”. Neste contexto, a valorização simbólica dos valores de práticas sociais do grupo adquire uma forma reativa e de defesa perante as práticas de exclusão, marginalização e de assimilação de que são alvo e que se inserem num processo de longa duração (Mendes, 2000, sp).

A população brasileira que vive atualmente em áreas rurais, segundo o IBGE, consiste em um quinto da população total, composta por diferentes etnias e sistemas de organização.

Del Priore e Venâncio (2006) destacam que poucos foram os que, de fato, “se debruçaram sobre o destino de lavradores, a vida comunitária, a terra e seus ciclos, tentando iluminar a variedade de modos de vida e de representações sobre o universo rural” (p. 13). A esfera feminina do campo também é parte integrante dessa pluralidade a ser conhecida. As mulheres rurais, de acordo com Brumer (1996), possuem formas variadas de organização, ainda que dentro de um mesmo território. Contudo, o trabalho doméstico e a responsabilidade no cuidado dos filhos
são elementos centrais e comuns na vida dessas mulheres:
“Embora a participação das mulheres varie nessas diferentes sociedades no que diz respeito à sua participação na divisão do trabalho produtivo, existe muita semelhança entre elas no que se refere à sua participação nas atividades de reprodução, tanto as ligadas ao ciclo curto (tais como o trabalho doméstico e as atividades diárias de manutenção), como as relacionadas ao ciclo longo, geracional (tais como a reprodução biológica e educação das crianças)” (p. 40).

Dadas as características que possuem, tanto a comunidade cigana quanto a comunidade rural podem ser vistas como grupos marginais, principalmente em contextos predominantemente urbanos e tecnológicos. “É desse modo que determinados povos se transformaram em ‘não-ser’, em contraposição aos hegemônicos que passaram a ‘ser’” (Guareschi, 1998, p. 160).


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