A sala é ampla: algumas cadeiras de estilo clássico, um lustre antigo esculpido ao modo barroco e dois espelhos magnificentes, a Luís XV.
Ele entra, ajeitando vestido e brincos, falando em direção ao banheiro.
Tem paciência, amor! Não foi culpa nossa! A missa é que começou com atraso. Só vou acabar de me trocar! Toma o seu banho e me espera! Hoje, tou doidão pra pegar seu rabão tesudo!
De repente, pára. Nota pessoas na sala. Parecem gêmeos. Dois homens e duas mulheres.
Vocês já tão aqui há muito tempo? Pedimos desculpas! Minha esposa é muito religiosa! Tivemos de passar na igreja, e a gente enfrentou um pequeno contratempo. Mozinho explica mais tarde. Ela tá tomando um banho rápido.
Fica se ajeitando diante do espelho redondo na parede central.
Sabe, nunca amei ninguém assim! Nunca fui de casamento. Até encontrá-la. Foi bater os olhos nela, num site da“internet”, e pensar: “encontrei o meu amor eterno.
Aproxima-se de um dos homens, pele lisa, cabelo duro, cheio de dreads, cujos lábios parecem estar cheios de batom vagabundo.
Você se vestiria assim, como eu, de vestido e peruca? Ou usaria batom e sutiã? Não? Nem por amor? E por um impulso de carnaval?
Bem, vamos à primeira parte da palestra. Mozinho ministrará a segunda parte.
Lápis e papel na mão. Vocês sabem que o erótico, apesar da quebra de muitos tabus, na contemporaneidade, ainda é rebaixado ao nível das coisas vis, imorais, irrelevantes, desagregadoras.
E isso só vai mudar a partir da conscientização efetuada por cursos como os nossos.
Quero que vocês façam agora uma dissertação sobre isso. E anotem também um trabalho pra casa. Vai ser em cima de....Ah, este poema colado no espelho. Vou ler pra vocês:
Título: A UMA MULHER AMADA
Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.
Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.
Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.
São fragmentos de um poema de Safo, na tradução de Joaquim Fontes. Quero uma análise completa.
Olha-se no espelho grande e comprido, colocado na parede oposta à do outro. Volta a falar de si.
Desde o começo, eu e Guiomar sempre conversamos sobre nossos desejos, procurando lhes ser fiel ao máximo.
Sou louco por ela. Ela é aquele tipo de mulher pela qual a gente faz qualquer metamorfose? A gente vira até barata por mulheres assim.
Sou advogado e dono de empresa, bom marido, na cama e fora dela, até bom pai. Tenho uma filha, ela tem dezoito anos. Aliás, fui casado três vezes. Sou muito amigo de minhas ex.
Porém, quando a reportagem saiu, debandaram todos que eu achava que eram meus melhores amigos. Perdi o respeito na praça. Minha clientela ficou a zero.
Não advoguei mais desde então, nem compareci mais às aulas de MMA.
Acho que vocês leram, não? Desde que a revista fez uma reportagem sobre homens que se vestem de mulher. E expuseram meu retrato.
Um leve choro.
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