NOITE FRIA PARA PINGUINS SIBERIANOS

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   Está uma noite fria. Fria para pinguins. De um frio siberiano. Miro caminha até o Bar do Naldo, próximo ao do Otanias, ali na Avenida Vila Nova, quase em frente daquela…perdoem, esqueci o nome.
    Enquanto anda, as pessoas o observam e comentam o seu cabelo verde. Ele não liga. Que pensem dele o que quiserem. Não deve nada a ninguém.
    Quando mais moço, exercia de maneira explosiva sua bissexualidade.

    Saía com meninos e meninas. Mesmo aos quarenta, gostava de menininhos cerca de vinte anos mais novos. 
  Como tinha experiência e era versado em tudo que interessava aos jovens, como futebol, cultura musical e literária (preferência de uns poucos), sendo conhecedor de muitas das merdas da indústria cultural, as suas opiniões, charme e certo cinismo vital eram um chamariz para uns poucos jovens desavisados e ingênuos, da mesma tendência dele. 
    Antigamente, muito antigamente, através da alma, chegava aos corpos e os devorava com método de lutador de MMA.
    Se perdia por instantes, no último momento retomava sempre o seu cinturão de peso-pesado nas artes da sedução.
     Um vício que o fazia cair desde aquela época era o da Dona Cachaça. Bebia esta, acreditava-se, desde a mamadeira.
     Miro com cinquentinha passava por quarenta. Mas, as rugas foram se estabelecendo no relevo do corpo, junto a manchas e à fraqueza orgânica resultante das várias noites de orgia.
     Os amantes jovens de antes amadureceram e partiram pra caminhos diversos. Muitos tornaram-se pais de família de reputação “ilibada”. Os meninos de hoje tem ojeriza por Miro. Ele já esperava por isso. Nunca fora inocente sobre as metamorfoses que o tempo fazia à vida. E da distância que provocava rugas, cabelos brancos e barriga.
     Casara umas três vezes. Seus filhos estavam crescidos.   Dava-se bem com as ex. Com os filhos....mais ou menos.
     Miro é um cara de mais ou menos setenta anos. No entanto, possui um andar ligeiro. Magro e irrequieto, gosta de andar sem eira nem beira pela cidade. Andar miudinho. Cabeça sempre no alto, a afrontar invisíveis e visíveis contestadores.
     Ainda, um sorriso contido, vergonha de mostrar os dentes estragados. O hábito que o distingue é o de passar a língua nos lábios.
     Vestido à moda clássica, com roupas velhas. Cada um tem seu conceito de moda clássica, não é? Só o sapato de duas cores está tinindo.
     Em seu rosto, sinais de lágrimas que fluíram, rios que surgiram de súbito e alagaram rugas nas quais o tempo trabalhava, com lentidão, afiando o gume de sua faca pungente..
     Miro fica indeciso, olha e acaba entrando no bar do Naldo.
     Senta em uma mesinha da entrada. Procura quem possa atendê-lo, girando seus olhos pequenos e negros.

    Constata que é cedo pelos poucos que àquela hora ali se encontram. Aqueles bares começam a encher tarde da noite e ficam abertos até zero horas ou duas da madruga.
     Os frequentadores costumam lotar todas as cadeiras, dentro e fora. No andar de cima, sobre o bar do Otanias, mora um bibelô musical, alheio aos bares, que, por vezes, reage, diante do cheiro nauseante da fumaça de baixo e chama a polícia. Ali ela existe. Uma beleza encerrada em seu castelo. Uma esperança pra o entorno, alma envolta em harmonias e melodias e ritmos.

    Deixêmo-la ali. Torçamos para que a fumaça de mais tarde nos deixe vê-la ao celular, no recorte da janela. Só assim podemos saber de sua existência e acreditar que ainda há música das janelas, ou melhor, das alturas.
     Costumam frequentar o Naldo’s Bar gente da mais variada. Entre este bar e o do Otanias do outro lado, ficam as tribos mais diversas, a maior parte composta de jovens inconformados com as paredes e grades das convenções.
     Há roqueiros, gente de teatro, adoradores de Mozart, Brahms, música renascentista, de samba, funk, presepeiros, torcedores do São Paulo, do Coríntians, do Santos, homens que amam mulheres, outros que amam homens, ainda mulheres que curtem mulheres, e muito cigarro, das mais diversas marcas.

    A regra dos donos dos bares, obedientes às regras do respeito a quem não compartilhe o vício é: fumem longe, não dentro do meu estabelecimento. Às vezes, por flexibilidade generosa dos donos, há uma diminuição da lonjura.
     Todos são muito bem recebidos, todos se entendem, todos se abraçam, choram nos ombros uns dos outros, riem, gargalham, e vão esquecendo as agulhadas do dia.

    Ali são combinados movimentos, ações, reações, encontros, desencontros, etc.
     Miro repara no relógio. São vinte e duas horas. Caramba, ficara ali um tempo enorme e nada pedira. Não fora notado. Aqueles dias estavam tumultuados. A cidade em polvorosa por causa das passeatas civis. Devia ser por isso que o Naldo estava tenso e não o vira.
    As pessoas começavam a chegar. Logo, os bares do Naldo e do Otanias estariam chapados. Observou dois homens que chegaram e sentaram próximas a uma mureta. Parece que tiraram textos de suas bolsas. Seriam doidos? Tudo dava no mesmo. Um era careca de todo. Detesto carecas, pensou Miro. O outro cabeludo em demasia. Adoro cabeludos, salivou Miro. Ruminava: será que ele é hetero-flexível?
     Miro se sentia um Walt Whitman: "
Se há alguma coisa sagrada é o corpo humano."

    Saiu dali sem pedir nada. Queria um bar menos movimentado e mais fuleiro. Tinha vontade de chafurdar na lama. Encher a cara com bebidas estragadas, de marcas discutíveis. Ali não dava pra ele.
     Miro saiu a procurar destino para os lados da Vila Desejo, no fim da Avenida Vila Nova. Lembrou do Bar da Maluca, logo no início do bairro. Era para lá que iria. Decidiu.
     Ao chegar perto do bar, enxergou um bêbado sendo surrado e roubado. Reconheceu a vítima. Era o Tico, um colega seu que fora da polícia rodoviária.
     Conhecera ele quando o mesmo se casara com a Tonha, moça muito culta e muito apreciada no meio cultural. Ninguém entendia por que Tonha gostara dele, que já aprontava das suas quando se conheceram.

    Tico já era viciado. Só se o que deu a liga para uní-los foi o amor pelo rock. Nisso, ambos eram cúmplices.
    Devido ao vício, porém, era questão de tempo ele ser expulso da corporação rodoviária. E....aconteceu.
     Quando isso ocorreu, Tonha o largou. E ele começou a beber mais. Deu de imitar Janis Joplin, Morrison, de fazer vergonha com seu comportamento de amante do rock.

    Quando encontrava um amigo dos velhos tempos, danava a esganiçar a voz e a cantar Mercedes Benz.
     Miro espera Tico ir embora todo em sangue. Fica sem entender como, depois de tanto chute, ainda estava vivo.
Ao entrar no bar, percebe que há gente nova. Faz tempo que não passeava para aqueles lados.
     Uma puta – nome de guerra: Mulher Melanina - coça a bunda com a maior desfaçatez. Está na mesa com um cara bêbado chamado por todos de Velho Canastra.
     Quiasco, enfeitado como um pavão, encostava-se em um e outro, no banheiro fedido, querendo filar um cigarro ou pegar no pau dos caras.
     Miro pede uma pinga, em voz rochosa, mas audível.
     Maria se aproxima, vendo ali uma oportunidade de fazer grana. Um outro bêbado acaba morrendo na mesa. Ninguém percebe. As moscas o rodeiam como urubus. Parece um sono passageiro. Só notarão sua morte quando a polícia fizer a limpeza.
     Maria senta ao lado de Miro e chama Maluca, lésbica convicta, e dona dali.
     Maluca é apaixonada há muito tempo por Maria. Maluca tinha uns quarenta e cinco anos. Quando jovem, fora muito bela. Sabia e abusava disso. 

    Maluca até não tinha muito escrúpulo. Desde há muito. Quando mais jovem, atraíra, um dos grandes e velhos músicos da cidade. Grande, mas pobre. De marré de si.
Maluca, dissimulada, conseguia do músico tudo o que queria. Transavam rapidinho sempre. Ela só deixava nas coxas. Ele cada vez mais sedento, ela lhe sorrindo, dissimulada. 

    Quando, certa feita, ele fez um empréstimo de grande monta, entregando-lhe o dinheiro, Maluca regozijou.   Conseguiu o que queria. Pegou o dinheiro, construiu aquele bar e mandou o músico embora. 
    Onde ele está? Me contaram que anda metido na serra do mar, a compor uma última sinfonia, usando grilos e sapos e borboletas e bugios, etc., com o fim de arrebatar a humanidade e abalar os pilares dos céus.
     Maria chama Maluca, numa voz impaciente e rouca.
–   Malu, uma breja zero!
-    Prefiro uma bebida mais forte.
-    Uma loura e um pele-vermelha, Malu!
     Roçando o corpo qual uma serpente, diz, direta e malemolente, chegando-se em Miro, como uma animadora infantil de TV das antigas.
-    E aí, posso te chupar mais tarde? Miro sorri como que diante de uma criança peralta.
     Maluca traz o que foi pedido, e aproveita pra cantar Maria, que reage.
–   Maluca, segura a onda. Tu tá me devendo dois lambe-lambe. Depois que tu me pagar, posso pensar no teu caso. E outra coisa. Hoje, não tou muito pra mulher, não.
–   Desse jeito, vou me sentir rejeitada.
–   Isso é um problema teu.
     Miro a puxa pelo braço.
–   Vem cá. Quero falar contigo.
     Maluca encrespa.
–   Quer largar ela, manguaceiro?
–    Deixa que eu resolvo isso, malu.
     Maluca se manda pro balcão, contrariada.
     Maria busca ser carinhosa com Miro.
-    Sabe que o senhor parece com o meu pai?
–   Você gosta de seu pai?
–   Ele morreu. Mas eu gostava muito dele. Tanto que lhe dei meu gesto de amor mais caprichado faz dois anos. Com um veneno bem cremoso de rato…Mas voltando a nós. O que tu quer de mim? Uma chupeta?
–    Senta no meu colo?
     Maluca se manifesta de novo.
–   Ei, velho safado. Ela não é pro teu bico.
     Maria não se deixa dominar.
–   Tá com ciúme, bem? Eu sou livre e sento minha bunda onde quero. Não preciso que ninguém me cuide. Ele aqui não me deve, pelo menos.
     Ela senta no colo de Miro.
–   Quer confessar seu sofrimento, tiozinho? Ou quer dar um piço?
–   Você acha o quê do amor?
–   Esse é meu serviço: fazer amor. Quer fazer comigo? Tu não vai se arrepender. E vai ser completinho, viu?
–   Não, não, não é isso.
     Ela se espanta.
–   Como assim?
–   O amor é o caminho. Do teto até o chão. A lagartixa, o limo no muro, o cachorro, o gato e todo ser e objeto que são largados pelos homens. Toda criança sabe disso.
–   Tu é poeta, é? Sabe que meu pai gostava de cordel? Era o lado dele que eu gostava. Ele sempre pedia pra ........
     Enquanto isso, Maluca está lendo um jornal, com espanto. Mete o dedo no nariz e tira uma pelota.
     Maria brada pra Maluca, apressada.
-   Manda uns amendoim aí, Malu!
     Maluca traz o amendoim, cismada com Miro.
–   Toma cuidado. Esse velho não bate bem.
–   É um coitado. Não se mete.
–   Sei não. Ele parece o maníaco pedófilo que tão procurando. Um que gosta de safadezar criança no colo e fazer aquelas coisa. Eu vi na TV inda agora....
–   Maluca, acho que de tanto te chamarem de maluca, tu assumiu.
–   Tá bem, sua ingrata. Fica aí, então. E você, velho, tou de olho, viu?
     Ela mexe os quadris no colo de Miro. Ele pensa alto.
–   Um amor que preencha tudo. Um amor como o das crianças.
–   Eu posso te ajudar começando a te amar agora mesmo.
–   O ser humano é uma escrita sem sentido...
–   Meu pai dizia: o amor é um nervo duro, recheado de cabelo e a raiz nasce no cu...
–   Pode ser que em outra vida...
–   Você quer que eu?
–   Você é um pouco pesada, mas parece uma criança. Uma criança que precisa de carinho....
–   E de dinheiro.Você tem dinheiro, não tem?
–   Já que você só pensa em dinheiro...
     Miro tira uma maçaroca de dinheiro e lhe dá. Ela pega, sôfrega.
–   Se você me der o dobro disso, eu deixo você por no cu.
     Na porta do bar, chegam um pai e seu filho ao colo.
–  É aquele velho, filho?
(....................................)
–   Responde, filho!
–   Parece. Mas vam’ embora, paizinho.
O pai puxa um revólver, preme duas vezes o gatilho, e voam projéteis-colibris velozes como o som, dois assobios para o peito de Miro.
Chegam pelo ar. Parece que chegou a primavera. Miro atingido pela bala emudece, dobra e dorme, caindo em câmera lenta..
Maluca feliz:
- Falei?
     O pai preme mais vezes o gatilho. É preciso calar as testemunhas, que no bar são poucas. Aponta de novo a arma para um a um dos que estão ali.
     Então, Maria, Maluca, as moscas, e, enfim, o bar todo emudece. Vão encontrar São Pedro no bar da entrada dos céus.
     Os corpos no chão como um jardim, cujas flores vermelhas aderem ao solo úmido/chorão, em melodrama súbito.

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