O AFETO QUE LHE RESTA

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Chegara ali sem esperanças. No começo, a vontade de dar um fim a tudo. O beco, uma caverna de cegos bêbados.

Enrolado na coberta vermelha, o Zé Fedido. Bebia e se drogava.

O mais miserável. Todos perderam a confiança nele. Roubava na cara do lesado. Mas não era rápido o suficiente. Este o motivo das cicatrizes.

Quando batiam, não tinham dó. Um modo de compensar a invisibilidade.

Do seu lado, um cachorro. O Bin Laden. Ele gostava de brincar com ela.

Gozava em sua perna direita. Era a de que ele mais gostava. Mas chinchava um pouco a esquerda. As pernas eram as suas torres gêmeas.

Ela encara o mendigo bicha, com piedade. Fôra queimado pela metade num dia de Natal. Vaidoso, ficou dias sem se cuidar, após o incidente.

Todos tinham de ficar de olho nele. Então, começara a falar sozinho. E a andar nu. Quase o queimaram novamente.

O Maluco dorme afastado de todos. Tem um bonequinho que vive com a boca aberta. Quando está apertado, enfia o negócio dele no boneco e mija dentro.

Quando está excitado, a mesma coisa. Fica uns vinte minutos num movimento de ir e vir.

Durante o dia, anda descalço pela rua, segurando a calça pra não cair.

Ela tem saudade do Velho. Era tão bom. Já teve filho, tinha emprego em Escola e era muito culto. Um dia sumiu. Procurou ele em todo lugar.

Era gostoso ouvir suas histórias. Com ele, aprendera a falar La Fontaine. Ela gostava de fazer-lhe carinhos. Segundo ele, a única que conseguia erigir o seu edifício.

Um dia, ele a levara perto do Museu da Biblioteca e descreveu pra ela tudo que tinha lá dentro. Nem precisou entrar. Ela fechou os olhos e imaginou.

Por onde ele andará? Terá voltado pra casa? A Assistente Social o terá ajudado? Ele também a ajudava a cuidar dos carros de frente ao Paço.

Bin Laden acorda, língua estendida e pingando. Vai em direção às suas torres gêmeas. Ela descobre as pernas finas até em cima. Sabe que é o afeto que lhe resta.

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