Temporadas no Abismo — Capítulo 2: O Resultado de um Bullying Mal feito

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Camilla chegou na escola, levada pelo pai, no seu carro, uma Mitsubishi Eclipse vermelha e branca.

— Tenha uma boa aula, querida.

— Obrigada. — Respondeu seca, como se não estivesse nem aí para o seu primeiro dia de aula, entrou na escola tranquilamente, na entrada tinha uma funcionária muito bonita, que deu um simpático cumprimento, e a levou até a sala 4, onde ficavam os alunos que acabavam de entrar no nível básico escolar.

Era uma escola
elementar na cidade de Tóquio, a sala não era muito grande, cheia de carteiras, com apenas 3 crianças que chegaram antes dela. Camilla era uma menina muito pequena para sua idade, tinha cabelos totalmente negros e olhos da mesma cor, uma menina japonesa de olhos apáticos, parecia sempre estar observando sem tomar partido, não se importar com o que acontecia à sua volta, e nem com as pessoas, como se realmente não fizesse diferença. Seu nariz era um pouco pontudo, e era bonito de se ver, o cabelo era muito liso, longo e caído, parecia ser alvo de dezenas de “chapinhas”, mas era natural, não era bem cuidado, caía-lhe na frente dos olhos e às vezes atrapalhava sua visão, mesmo assim, não cortavam, já que os pais não reparavam nesse pequeno problema e ela nunca tivesse reclamado, sempre resolvendo o problema com as mãos, afastando as tiras de cabelo para os lados com bastante graça.

Sentou-se com um livro na mão, um pequeno manual de desenho, gostava de desenhar, e era muito boa nisso, mas não deixava de ler a parte teórica, pela qual se interessava bastante também, o pai designer era sua principal influência, estava no seu sangue.

— Oi, qual é seu nome? — Uma das garotas que já estavam na sala quando ela chegou a chamou de sua carteira, era uma menina muito bonita com longo cabelo negro, assim como Camilla, só que menos liso, e também tinha olhos mais puxados, e castanhos ao invés de pretos, mas o equilíbrio dos elementos de sua face, boca, nariz, olhos, formato, sobrancelhas, tudo garantia que ela fosse realmente linda, no futuro poderia ser uma grande modelo se cuidasse bem do corpo.

— O que quer? — Camilla virou o rosto, sua voz saiu fraca, mas podia ser ouvida, sua feição permanecia a mesma, embora sua frase pudesse soar grosseira, o tom não foi, foi apenas vazio.

— Saber seu nome. — A outra menina se sentia ligeiramente desconfortável com a resposta que não respondia sua pergunta.

— Camilla Hitokaze. — Respondeu e voltou o rosto à sua leitura, a outra menina percebeu que ela não queria conversa, e chamou outra criança da sala, perguntando o nome, era óbvio que a baixinha não queria nem falar o nome e nem saber o nome dos outros, apenas ler seu livro tranquilamente.

A professora chegou na sala, uma japonesa de porte médio, gorda, de olhos e cabelos castanhos, tinha um penteado curto, mas elegante, chegava com dois livros nas mãos, a primeira aula deveria ser especial, aquilo era novidade para a maioria dos alunos ali, e teria que apresentá-los ao mundo escolar. Todos os 20 alunos da sala estavam bagunçando e se divertindo quando chegou, ela deu duas batidas no quadro com o livro, e chamou atenção:
— Olá crianças, gostaria que se sentassem. Eu sei que isso aqui é uma novidade para todos vocês, é o primeiro dia no ensino fundamental, não é isso? — Seu tom de voz chegava a ser simpático, combinando com o sorriso otimista que tinha.

— Sim. — As crianças responderam em coro, pareciam animadas pro primeiro dia de aula, bastante inquietas também, apenas uma não disse nada, exatamente a baixinha de cabelo liso, a professora não reparou nesse pequeno detalhe, mas reparou que a garota nem sequer olhava para ela, mas que ficava lendo seu livro sem dar a mínima.

— Bem, já que somos uma sala pequena, quero começar conhecendo vocês, estão começando uma nova fase em suas vidas, e ficaremos um bom tempo juntos, o ano todo, acho que seria bom que realmente nos conhecêssemos, para podermos nos dar bem com maior facilidade. — A professora apoiou as mãos na sua mesa e se inclinou um pouco, sorrindo com muita simpatia, quase rindo, demonstrava que realmente gostava do que fazia, senão não teria escolhido aquele trabalho. — Bem, eu começo, eu sou a professora Mizumi, tenho 33 anos, gosto de dar aula, ler livros, estar com meu marido, cuidar dos meus filhos, ver filmes românticos, gosto de comer lamén e chocolate, ir em parques de diversão, e gosto de ouvir jazz e pop. — Contou pequenos detalhes de sua vida, embora a maioria dos alunos certamente não fizesse nem ideia do que seria Jazz.

A sala estava ouvindo sem interromper, embora se movessem muito e não se sentassem, até que eram alunos educados, não interrompiam a professora e ouviam, mas não sabiam como agir, ninguém ali sabia, era realmente uma novidade.

— E então, quem gostaria de se apresentar primeiro?

— Eu! — A garota bonita que chamou Camilla antes da aula foi a primeira a falar, nem chegou a levantar a mão, mas sim a pular, era o primeiro modo de chamar atenção que vinha em sua cabeça, muito extrovertida. — Eu, meu nome é Chiaki Takahashi, eu tenho 7 anos, gosto de tocar piano, cantar, filmes de comédia, da maravilhosa Kylie Minogue, e de meninos bonitos. — Sua apresentação mostrava que certamente, no futuro, seria uma líder de alguma banda, ou uma cantora pop, de qualquer modo, uma artista ligada à música, seu entusiasmo era bem perceptível quanto falou o nome de Kylie Minogue, a cantora australiana que a inspirava fortemente, dava pra ver no brilho dos seus olhos.

— Oh, então temos uma música aqui na sala?

— Sim. — Chiaki riu, estava feliz em falar de si mesma para todos ouvirem, uma garota muito extrovertida.

— Bem, eu vou escolher o próximo. — Mizumi avisou, com o olhar estilo “hum”, pensativa, foi caçando na sala o aluno que queria, como uma águia, não era uma escolha difícil, seria certamente feita por acaso, se não fosse a pequena garota que era uma das poucas sentadas corretamente, e única que não olhava para frente e nem para os lados, olhava para seu livro. — Você, qual é seu nome? — Apontou pra Camilla, parecia muito curiosa. Não teve uma resposta, como a garota não estava olhando, nem percebeu que estava falando com ela, a professora esperou de braços cruzados e não teve resposta, até que uma garoto de cabelo bagunçado cutucou a escolhida:
— Ei, ela tá falando com você.

— Ah, é? — Abaixou o livro e levantou o olhar para a mestre. — Eu sou Camilla Hitokaze, sou filha de Satoshi Hitokaze, gosto de livros, filmes de terror, desenhar é o que faço, artes marciais, mangá, a banda Slayer e vídeo-game, o resto não me importa. — Explicou com tranquilidade, e depois retomou sua leitura, realmente desinteressada, até que ela tinha mais interesses do que se esperava, mas mesmo assim nenhum deles teria qualquer ligação com “um mundo exterior”, tudo era para se fazer só, trancada no quarto, provavelmente.

— Ah, então temos desenhista na sala? — A professora sorriu largamente novamente, mas dessa vez era forçado, a secura na voz da garota chegava a ser um incômodo, um grande incômodo, sentia uma sensação ruim falando com ela.

— É. — Confirmou sem parar de ler.

Era natural que acabasse sofrendo tentativas de bullying na escola na primeira semana, mas era a mesma coisa de tentar perseguir e humilhar uma estátua, algumas colegas chegavam, tentavam chamá-la de nomes desagraveis, fazer piadas, mas eram ignorados. A primeira pessoa que a incomodou sem ser apenas verbalmente, mas usando de agressão, nunca mais ousou chegar perto, uma patricinha de cabelo tingido de dourado, que a chamou enquanto, pra variar, lia no banco do parquinho, no quinto dia de aula:
— Por que você é tão esquisita, Camilla? Você não tem pai não? — A menina a abordou com tom de voz bastante grosseiro, e o rosto aparentemente irritado, pelo jeito, a existência da pequena era o bastante para irritá-la, e realmente, sua presença chegava a ser um pouco perturbadora. Camilla nem sequer olhou para ela, como se não ouvisse, mas ouvia, ignorava por não ser um assunto de seu interesse. — Você é surda? Me responde, é sério, por que você é assim? — Aumentou o tom de voz, estava irritada, esperou por uma resposta, então se exaltou e meteu a mão na nuca da colega, com força, mas não demais, doeu bastante. Camilla jogou o livro no chão e agarrou a mão da colega, arranhando até sangrar, apertando com força, tinha unhas extremamente afiadas, não foi difícil, mas sua força física era pouca na época, ainda não tinha começado o karatê, e acabou levando vários
murros no rosto, com o nariz sangrando, ela caiu pra trás, mas fez um tremendo estrago no braço da patricinha, chegou a perfurar a veia no pulso dela, o sangue saía muito rápido, só nessa hora que a professora rapidamente interveio, quando Kushira subia em Camilla, que não reagia, e a estrangulava, também apertando suas unhas no pescoço da baixinha, mas não tão afiadas, nem chegando a perfurar, começou a chorar nos braços da professora, enquanto sangrava e sentia muita dor, Camilla apenas se levantou, sentindo muita dor, com o nariz quebrado, mas sem chorar e nem ao menos gritar ou dizer um "ai", então sorriu vendo a adversária que sangrava e gritava nos braços da professora, rapidamente dois monitores se aproximaram, na verdade, a ação não foi demorada, mas a briga tinha sido muito rápida e violenta, um deles agarrou a menina de unhas afiadas, que ria bastante, sentindo uma sensação muito boa, estava feliz, ela estava sempre séria, raramente se sentia feliz mesmo, mas agora estava, estava sentindo intensamente como se a vida realmente valesse a pena.

— Meu Deus. — A professora não acreditava naquilo, levando a garota desesperada para a enfermaria, mas antes estancou o ferimento com um lenço que usava para limpar o próprio suor, não tinha tempo pra ficar escolhendo, aquilo ia parar o sangramento, a coitada tinha dificuldades para ficar de pé, Hitokaze também foi levada para a enfermaria, depois que reclamou de sentir uma dor violenta no nariz, apesar de rir, o monitor mais velho conferiu a fratura com os dedos e a levou para ser cuidada. Mizumi consolava Kushira, que chorava sem parar, na maca, tendo os braços enfaixados, Camilla tirou o sorriso da face quando entrou lá, e ficou em silêncio, mas ainda estava feliz, se divertindo como há tempos não se divertia. Aquele foi um caso incomum, desde aquilo muitos outros ocorreram, mas nenhum tão feio, o corte no pulso a deixou próxima de uma expulsão da escola na primeira semana. O pai a repreendeu com seriedade, dando uma surra de cinto, mas ela simplesmente não reagiu, ficou toda marcada, mas não chorou, não gritou, nem pediu pra que ele parasse, ele bateu até ele mesmo não poder mais, sabia que ia acabar machucando demais ela se continuasse, mas se continuasse até ela reclamar, a mataria. Aquilo foi realmente impressionante, Satoshi ficou com medo da filha, enquanto ela, com as roupas finas que tinha colocado para receber o castigo, sangrava por alguns machucados, sem reclamar, olhando fixa e séria pra ele, ela não soltou nenhum chiado, não tinha nenhuma reação, reflexo, nada, era como bater em um poste.

— É, é isso filha, não faça de novo, se não eu vou ficar muito triste. — Tentou apelar para o respeito que ela tinha por ele, já que a força não daria certo, ele sabia que ela tinha se defendido na escola, apenas reagido, mas o jeito como ela fez tinha obviamente que ser repreendido, ela quase matou a colega e ainda ficou rindo. Não podia deixar que a pequena Camilla fosse expulsa da escola, que tivesse problemas, ordenou que ela se comportasse, que reagisse com suavidade, e não arrancando os pulsos das pessoas à unhadas. Torcer o braço, segurando a mão e apertando, isso sim seria mais apropriado, e menos perigoso de causar expulsão, suspensão e todo tipo de punição por má conduta escolar.

Ela se comportou no resto do ano, e depois daquilo, as outras crianças a evitavam, mesmo as que eram loucas para incomodá-la, não ousavam, e a professora avisou bem à sala que qualquer um mexesse com ela iria ter uma punição exemplar, não mostrou as ataduras que ficaram nos braços de Kushira por uma semana por causa dos arranhões, mas todo mundo tinha visto aquela briga incomum, não era necessário que a professora avisasse, a intenção não era proteger Camilla, era evitar uma tragédia. Ela só não foi expulsa porque Satoshi era o pai, um homem muito influente, mas naquele caso desastroso ,o diretor, os paramédicos escolares, os monitores, e até mesmo os alunos entenderam que Camilla não era o tipo de pessoa com a qual deveria se mexer, a péssima combinação de indiferença e reações violentas. Ela tinha que ser mantida em controle, e todos os funcionários daquela escola se preocupavam com isso, e garantiam que não mexessem com a garota, que apesar de tudo, era a mais brilhante de sua sala, com notas fantásticas e uma excelente escrita, era impressionante que uma pessoa aparentemente sem capacidade de se relacionar socialmente podia se comunicar bem por escrito, redações, e até mesmo falando, quando queria ou precisava. Em alguns casos, ela discutiu com colegas, trocou insultos, chegou a dar e levar empurrões, com algumas pessoas muito ousadas, mas nunca ocorreu novamente algo parecido com a primeira e pior briga. Quando foi
levada para conversar com a diretora por causa do acontecido, junto com os pais, Kushira, os pais de Kushira e a professora Mizumi, se apresentou muito bem.

— Bem, primeiro eu gostaria de saber o que aconteceu, professora Mizumi, diga o que foi que você viu exatamente. — A diretora colocou os cotovelos sobre a mesa e perguntou, olhando séria e pensativa para a funcionária.

— Eu vi que a Camilla estava lendo em um canto, quando Kushira se aproximou, falou alguma coisa, sem resposta, e então deu um tapa na nuca da colega, foi aí que Camilla cortou os pulsos dela, eu fui correndo na hora, Kushira ainda deu murros na cara da Camilla, fazendo-a cair no chão, e pulou no pescoço dela quando ela tava caída, o que me assustou, foi que enquanto a colega a socava e sangrava, ela ficou rindo, rindo como se tivesse ouvido uma piada ótima, e ela estava com o nariz quebrado, os socos foram fortes, ela devia estar chorando, que nem a outra, que eu peguei em lágrimas, sangrando que nem louca pelo braço profundamente perfurado à unha. Foi isso, Camilla não atacou do nada, mas aquilo... Meu Deus. — Mizumi contava meio amedrontada, lembrando da cena que ocorrera há pouco tempo, tinha sido horrível, era algo que levaria em sua memória até o fim de sua vida.

— Está bem, agora é a vez de Camilla. — Virou o olhar de juíza para a pequenina, que tranquilamente olhava em volta,

— Bem, Kushira me atacou, eu estava lendo e ela me chamou e perguntou por que eu era estranha. Eu não respondi aquela pergunta idiota, ela me deu um tapão, que doeu, fiquei com raiva, agarrei os braços dela e arranhei com toda a força que eu tinha, bem na veia, pra me defender, e se eu ri, bem, foi porque foi engraçado, ela tava sangrando e gritando feito a garota do filme "A Hora do Pesadelo", quando vê o namorado ser reduzido à suco de gente. — Já não parecia aquela garota introvertida e calada de sempre, mas sim uma menina tranquila, feliz e extrovertida, que contava tudo com o maior prazer, Satoshi a observa preocupado, aquela sinceridade toda poderia lhe dar sérios problemas. — A dor no meu nariz, eu tava sentindo, mas bastou concentrar em outra coisa, no caso, os gritos e o sangue que escorria na Kushira, muito sangue, ficava engraçado, muito engraçado, aí eu ri e esqueci a dor e vim aqui, só.

Nunca naquela escola houve tanta discussão quanto naquele dia, ela foi mandada para a psiquiatra, para fazer análises e talvez ser compreendida, ela se esquecia da dor porque via o sangue e achava engraçado, podia ser considerada um projeto de criminosa, coisa pior, talvez. Eles mesmo interrogaram a outra menina, Kushira, e a explicação confirmava o que a professora e a baixinha tinham dito, embora sob outro de ponto de vista.


TEXTO DE LORD CANDELÁRIA.

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