Temporadas no Abismo — Capítulo 4: Punhos de Dor

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— Oi, o que você está fazendo? — Chiaki chamou Camilla que lia um livro sobre informática sentada no banco na frente do parquinho, no recreio, a bela criança realmente se interessava pela colega incomum, desde o primeiro dia de aula, a voz dela era agradável, mas a colega nem prestava atenção nesse detalhe.

— Sim, por que? — Ela olhou, tranquila e desinteressada, mas sem nenhuma dúvida, estava mais interessada e simpática do que nos primeiros dias.

— Eu quero ser sua amiga, desde a primeira vez que vi você. — Falou um pouco tímida.

— Ah, que gentil. Você é a Chiaki, não é? Adorarei ser sua amiga. — Ela sorriu, a colega quase não acreditou, uma gentileza da menina mutiladora de veias, era inesperado, mas ótimo.

— Sou sim, sou eu mesma. A gente fica te olhando e te acha muito legal, posso te apresentar minha outra amiga? A gente gostaria que você fosse da nossa turma, você é incrível, tão inteligente e bonita, a gente realmente gostaria muito de ser sua amiga.

— Poxa, é muito bom saber, achei que tivessem medo de mim, desde aquele dia com a Kushira, eu fico muito feliz mesmo. Quem é sua amiga? — A garota parecia tão interessada que seus olhos chegavam a brilhar.

— Mitsumi! — Chiaki virou para trás e gritou bem alto, a colega alta, não muito, e gorda chegou correndo, tinha cabelos loiros e olhos negros, apesar de ser gorda, não era feia, tinha um rosto agradável.

— Oi Camilla. — Estava muito animada, aquelas duas pareciam estar se encontrando com uma celebridade querida, era uma boa sensação de se sentir, se sentir admirada.

— Oi Mitsumi, agora somos todas amigas. — A pequenina abriu os braços e se levantou. Abraço coletivo, e as três se abraçaram todas juntas, apertadas e sorridentes, pareciam realmente felizes, inexplicável, talvez fosse o poder da amizade, uma coisa mágica e incomum.


Algumas pessoas dizem “devemos praticar esportes desde a infância”, mesmo com sua pouca idade, ainda era pequena, aparentemente inofensiva naquele lugar, mais ainda entre mestres da artes marciais, adultos, adolescentes e algumas crianças treinando com atributos avançados sobre o enorme tatame que cobria quase todo o local, todos no Dojô de karatê, conversava com a mulher, sentadas no banco no canto da sala esquerdo da espaçosa sala, usada para ensinar e treinar a luta.

— Disse para o meu pai que eu deveria treinar uma arte marcial, eu pensei em Kung Fu, porque parece muito bom nos filmes do Jackie Chan, mas ele me disse que não poderia treinar isso, porque é uma luta chinesa, e eu deveria fazer uma luta japonesa, por ser japonesa, judô ou karatê pareciam as melhores, mas acabei escolhendo karatê, pois prefiro pancadas a quedas. Diga-me, fiz uma boa escolha? Papai me apoiou, eu confio nele, mas é óbvio que a sensei pode me dizer isso melhor. — Ela falava séria e tranquila com a professora de karatê, parecia estar conversando com alguém do mesmo nível, não a tratava como uma superior, não deixava de ter respeito, mas não se sentia nada acanhada, aquela mulher era conhecida como uma das mais duras karatecas do Japão, uma celebridade, mas realmente, isso não fazia diferença pra Camilla, não no seu modo de agir, estava melhorando de seu comportamento social, mas ainda tinha não melhorado totalmente, absolutamente, ainda era bastante indiferente às coisas, embora não a tudo e todos, havia suas exceções, principalmente em locais aonde já estava acostumada, o que não era o caso da academia.

— Veja, em qualquer arte marcial, há mais que golpes e lutas, mas essa não é a hora, não vejo razão para ensinar profundamente a filosofia antes de você ter controle sobre o seu corpo, da habilidade de lutar, dos golpes e da força. Se você já leu sobre karatê, você conhece a filosofia, mas a verdadeira luta só pode ser aprendida com treino, se você realmente quer entrar neste dojô, você precisa passar por um teste, o karatê não é para qualquer um, não o verdadeiro karatê, sabe, muitas academias pelo mundo todo dizem que estão ensinando karatê, mas a maioria é regida por incapazes que se dizem mestres mas na verdade são apenas lutadores, eles sabem a luta, mas não são verdadeiros praticantes, não sabem ensinar, não buscam os verdadeiros objetivos do karatê, e muito menos os passam para seus alunos, fazem ridículos treinos de uma hora quatro vezes por semana e dizem que estão ensinando. Não, não é assim, não aqui, você é jovem, então seu teste não será muito difícil, Meu nome é Yamamura Toriyama, sua sensei, eu acredito que pessoas estrangeiras não deveriam aprender as artes marciais japonesas, você, mesmo tendo sangue gaijin brasileiro, como Satoshi contou, ainda é japonesa, e está sendo criada aqui, com nossa cultura, por isso não há problema em você aprender, quero dizer, não falo de estrangeiros de raça, mas de nascimento, costume, cultura e criação. E acho até bom te ensinar se passar no teste, pra garantir que não esqueça da cultura japonesa, afinal, o karatê é uma marca de nosso povo.

— Interessante, sensei, estou pronta pro teste, papai disse que é difícil passar em um teste aqui, uma respeitável academia de karatê, acho que a mais respeitável do país, não sei bem. Eu tenho Japão em minha alma, mesmo tendo mãe brasileira, ela nunca tentou me impor a cultura original dela, ela nem se importa, não é patriota como eu e papai.

— Este dojô é um dos mais velhos na arte do karatê em todo o país, o sensei anterior não tinha descendentes, e eu, sua melhor aluna, herdei a academia e me tornei a nova mestra.

— Por favor, o teste. — O tom da garota mudou, chegava a ser petulante, ousado, como se pudesse mandar na professora, agora não parecia tão simpática, mas tinha seus olhos como sempre, indiferentes, sem brilho.

— Não, você terá que ser paciente. Primeiramente, espere, fique sentada aqui, vou ver como meus alunos estão indo, não saía daí. — Se levantou e foi andando até alguns adolescentes que treinavam golpes sincronizados. — Muito bom, continuem assim, só que mais rápido.

A garota ficou sentado naquele banco longo e duro de madeira, dividido com algumas mochilas e bolsas, havia algumas no chão também, as coisas das pessoas que iam treinar, que incluía faixas, quimonos, luvas, caneleiras, capacetes, de tudo, bem guardados, esperando para serem usados, essa era uma das regras do dojô de Yamamura, as pessoas deveriam levar seus próprios equipamentos, exceto os 4 grandes sacos de pancada pendurados no teto, suspendidos a cerca de 1 metro do chão, por ser muito grande e fácil de acertar, longo, era fácil de ser tanto chutado quanto socado por pessoas de diversos tamanhos, tanto crianças pequeninas como Camilla, quanto adultos altos como Yamamura. Nenhum dos equipamentos a serem levados era obrigatório, nem mesmo quimono ou faixas. A garota ficou lá, observando como treinavam, como a professora brigava e elogiava seus alunos, era bastante justa, e mais severa ainda, aqueles esportistas pareciam muito cansados, ela só estava com seu celular, o pai tinha a deixado lá e ido embora, ela poderia voltar sozinha, os pais não eram nada superprotetores, mesmo tendo 7 anos, eles a deixavam andar sozinha de noite, sabendo do quanto ela era esperta e nada distraída, exceto quando queria, como quando estava desenhando e parecia estar em outro mundo. Estava impaciente, ficou lá esperando o tempo todo, mas não deixava de observar o que faziam, era capaz de aprender olhando, pelo menos os movimentos mais simples, não parecia tão difícil assim olhando, mas muitas vezes o que parece fácil ao se ver, é difícil de se fazer. Passou-se uma hora sentada lá sem fazer nada, e Yamamura ignorando totalmente sua presença, teria reclamado, mas aquilo parecia óbvio, pelo menos nos filmes era sempre assim, havia um teste de paciência em que o aluno tinha que esperar, se ela tinha que esperar, esperaria sem reclamar, e se não fosse isso, perderia seu dia, mas valia a pena arriscar. Esperou mais uma hora, estava ansiosa, mas estava prevenida, aquele pequeno celular que levava com ela, um modelo colorido da Panasonic, possuía uma grande utilidade extra nas horas vagas: O jogo da cobrinha, ela ficou jogando sem parar o tempo toda, considerava um jogo genial, mas não era divertido, apenas servia pra esquecer o tempo, com o jogo, insistia em tentar “zerá-lo”, embora fosse um jogo impossível de ser zerado. Na quarta hora lá, a professora a chamou, enquanto ela atentamente jogava, com uma paciência admirável.

— Ainda está esperando aí? — Yamamura Toriyama a abordou com um sorriso no rosto.

— Sim, vai me chamar para o teste agora? — A menina sorriu também, estava muito ansiosa, se continha, mas nesse momento dava pra ver na sua face o quanto estava.

— Sim, vamos, levante-se. — Ordenou, mudou a expressão rapidamente, ficando intimidadora, como uma professora má e brava.

— Claro. — A menina se levantou, guardando o celular no bolso da calça.

— Me dê o celular, se não irá quebrar, vá para o meio do tatame. — Tomou o celular da mão dela.

— Sim senhora. — Camilla correu para o meio do tatame, algumas pessoas treinavam nos pontas, mas longe do meio.

— Agora você passará pelo teste que vai definir se você entra ou não nessa academia, não é um teste relativo ao karatê, mas sim um de resistência, é muito simples, está vendo aquele saco ali? — Apontou para um saco pendurado em um dos cantos do tatame, estava livre, sem ninguém treinando.

— Estou? — Olhou para o saco imenso, já imaginava o que teria que fazer, e a ideia não a assustava.

— Você dará 20.000 socos nele, você tem uma hora pra fazer isso, você não pode ficar mais de um minuto sem socar, se não perde, você não pode socar fraco, deve socar com toda a força que puder, eu não contarei os socos mal dados, você não irá passar a menos que consiga dar todos os socos, um a menos do que 20.000 e você perde. Tente socar direito, se você não socar direito, suas mãos irão doer violentamente, se fizer direito, nem tanto, mas ainda assim doerá.

— Como soco direito? Como mantenho minha postura?

— Assim. — Se posicionou com uma perna na frente e outra atrás, para manter um bom equilíbrio, e esticou o braço direito com a mão fechada em posição de soco, com os dedos dobrados retos, e o polegar segurando o indicador e o médio sem apertar. — Lembre-se, socar, não empurrar, não mantenha o punho no saco por muito tempo, bate e volta. — Deu sua última dica.

— Entendi. — Camilla fez igual, abrindo as pernas e posicionando as mãos daquele jeito na frente do saco.

— Pode começar, eu estou contando. — Fez sinal de sim com a cabeça, observando atenciosamente a aspirante à aluna.

— Iá! — Começou a socar com as mãos bem posicionadas. Seus golpes eram rápidos, e ela não tinha nenhum problema quanto a empurrar, ela socava corretamente, atingindo o saco com seus punhos usando quase toda a força que tinha, que definitivamente não era muito, e voltava rápido, para que fosse um soco, não um empurrão. Continuou suas sequências de golpes, não eram perfeitos, mas eram bons, pelo menos para uma iniciante, ela voltava a mão rápido, e logo socava com a outra, alternando entre as duas mãos com rapidez, seus socos eram ganchos, dados a pouca distância, diagonais. Ela se concentrava em todos os golpes, mantendo o corpo parado, ela deveria virar o corpo enquanto socava, mas não sabia disso, ficava parada, só movia os braços, e mantinha os pés no lugar, as mãos já doíam desde o sexto soco, mas continuou, ainda era “resistente à dor”, como dissera anteriormente. Ela ainda ficaria muito tempo ali, e a professora ia contando os socos, eram 20.000 socos, e não seriam dados em pouco tempo. Se passaram 15 minutos, as mãos de Camilla sangravam, eram finas, e aquele saco era muito duro e pesado, mas ela nem ligava para a dor que sentia, embora seus músculos doessem muito mais do que os esfolamentos na mão, sentia dores musculares violentas nos braços, que eram submetidos a um esforço ao qual não estavam acostumados.

“Não sinto meus braços, tá doendo muito. Ah, é tão bom, isso, vamos ver até onde eu aguento, eu preciso entrar nessa academia, eu preciso.”

Suava sem parar, a sensei estava impressionada com a resistência da menina, que continuava socando, as mãos totalmente esfoladas sangravam, mas isso não podia ser visto, não naquela altura, mas após muitos, muitos socos, que causavam uma dor realmente violenta nos seus braços e mãos, o sangue começava a cair no chão, Yamamura viu e falou bem alto:
— Tá bom, para de socar, e me mostra suas mãos. — Ela ainda não tinha visto o estado das mãos da garota, mas tinha certeza de que não era bom, de qualquer modo, estava surpreendida com a resistência da menina, já que ela realmente socava com bastante força, sem parar e sem luvas, e o mais incrível, era uma total iniciante de 7 anos que nunca havia feito aquilo antes, pelo menos achava que não, e ela sequer parou ou enrolou para socar, socava direito, rápido, embora tivesse dado muitos socos tortos, a força ainda era o bastante para que fossem contados.

— Tá. — Camilla parou de socar, abriu as mãos, e se virou, mostrando os punhos abertos, estavam com quase toda a pele arrancada, com toda a carne à mostra, e muito sangue, que escorria das enormes feridas e passava pelos dedos, parecia que sua pele tinha sido arrancada com faca em alguns pontos.

— Se estava te machucando tanto, por que não parou? Não falou que não aguentava mais? — A professora olhava muito brava para a aluna, não podia permitir que ela agisse daquele modo exageradamente esforçado ao ponto de ser suicida, excesso de esforço já matou muitas pessoas, é bom conhecer os próprios limites.

— Você mandou eu dar 20.000 socos, se eu não conseguisse, não entraria na academia, e eu quero entrar, se eu tenho um objetivo, eu devo correr atrás dele até alcançá-lo. — Falava com a maior naturalidade, as mãos ardiam violentamente, sem falar nos músculos que haviam sido forçados, ela alongou as mãos enquanto isso, esticando as duas juntas com os dedos entrelaçados.

— Está aceita.

— Eu não dei os 20.000 socos ainda, só 767.

— O objetivo desse teste é ver até onde você consegue chegar, eu não espero que você consiga dar 20.000 socos na primeira tentativa, isso dá mais de uma hora socando sem parar, não é pra qualquer um não, na verdade, é pra quase ninguém.

— Mas essa academia não é para qualquer um? É?

— Ah, vamos, vou enfaixar isso, vem, não aguento mais olhar. — Yamamura puxou a garota pelas mãos e levou para o banheiro, no canto do local, tinha um vaso, uma pia e um armário de parede, maior que o normal, que a mulher abriu, revelando alguns rolos de gaze, esparadrapo, pastas de dente, durex, um tubo de cola, latinhas de pomadas, guardanapos por algum motivo incomum, e o mais estranho, um rolo de barbantes.

— O que são essas
coisas? — Era difícil entender porque tinha barbante no armário do banheiro, os materiais de primeiro socorros tinham utilidade óbvia, mas não o barbante.

— Eu coloco coisas que podem ser úteis aí, nunca se sabe. Vê? — A professora sorriu, estava começando a gostar da garota, uma pessoa que resistia à dor como ela tinha um grande futuro como lutadora, e sem dúvidas, merecia respeito, enrolava as mãos da pequena com a gaze, mostrando o porquê de deixar aquelas coisas lá.

— E o barbante, pra que?

— Suponhamos que eu queira amarrar alguma coisa. — Terminou de enfaixar a mão direita, estico o braço e pegou o durex.

— Você vai colocar com durex? – A menina observava atentamente, curiosa, enquanto a mestra puxava a fita, mordia, e usava para prender a faixa.

— Sim. – Começou a enfaixar a outra mão, a esquerda, com todo o cuidado, essa estava mais machucada.

— Não é necessário usar durex, a faixa por si só já fica bem, não fica?

— Fica, mas eu quero ser precavida, se você mexer demais com elas, pode sair, você tem que cuidar dessas mãos, elas têm futuro, você não faz ideia.

— O que quer dizer com “você não faz ideia”? — A ideia deveria ser algo bom, levando em conta o contexto.

— Quer dizer que você não faz ideia do futuro que tem, se saiu melhor que qualquer outro aspirante no teste de entrada, acho que você pode se tornar uma grande campeã. — Enfaixava a mão da menina enquanto falava.

— Uma grande campeã, é, eu gosto de como soa. — Respondeu após ficar em silêncio por alguns segundos.

— Mas vamos ter que treinar bastante, você será forte para se defender em qualquer situação e vencer torneios, competições, você é muito talentosa, você pode se tornar a nova Myio Desukoto. — Se referia a uma das maiores lutadoras juvenis que o Japão já viu.

— Meu pai é amigo de Myio Desukoto. — Ela falou com falsidade.

— Sim, eu sei, ela era uma campeã incrível quando nova, venceu o campeonato japonês de karatê várias vezes seguidas, e ainda sim se tornou uma rica empresária. Exemplo de vida, não?

— Meu pai é melhor que ela. — Camilla sorriu de lado, com certa arrogância.


TEXTO DE LORD CANDELÁRIA

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