Crepax – Masoch e a A Vênus de Peles

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Guido Crepax foi o primeiro grande mestre dos quadrinhos eróticos. Era formado em arquitetura, mas nunca exerceu a profissão, tendo-se dedicado, ainda estudante, às artes gráficas publicitárias e à ilustração.

Em 1965 escreveu e desenhou a sua primeira história em quadrinhos, com a personagem Valentina, a bela fotógrafa cosmopolita criada à imagem e semelhança da atriz Louise Brooks, de quem Crepax era fã. Além de Valentina, outras obras suas se destacaram: baseado em histórias do Marquês de Sade fez Justine; em Arsan, fez Emanuelle; em Pauline Reage, História de O e em Sacher-Masoch, A Vênus das Peles. Isso entre muitas outras.

Adorava jazz, fez então uma homenagem para Charlie Parker em O Homem do Harlem. Não bastando tudo isso, fez adaptações para os clássicos Frankenstein, O Médico e o Monstro e Drácula.

Foi autor de outras heroínas: Bianca, Anita, Giulietta, Belinda e Francesca. No campo das artes plásticas propriamente ditas, Crepax assinou uma centena de obras, entre litografias e serigrafias. Faleceu em 2003.

Sacher-Masoch, um aristocrata sui generis
Masoch era de ascendência nobre. A cidade em que nasceu levava o nome de seu bisavô e o seu próprio: Léopold. Seu pai era a maior autoridade da região. Um Conselheiro com o título de cavalheiro. Algo como um prefeito e um delegado reunidos num único poder.

Masoch herdou do pai a inclinação pelos prazeres do sexo? Bem, o certo é que ele foi uma figura poderosa para Masoch. Homem que amava o luxo, a caça, e não tinha pruridos em exaltar o próprio sucesso.

No século 19 a Áustria pertencia ao Império Austro-Húngaro, e os nobres falavam francês, que era considerada a língua culta. Masoch alfabetizou-se em francês e alemão. Estudou filosofia e ciências naturais. Aspirava e conseguiu tornar-se um romancista de primeira linha. Tinha um projeto literário extremamente ambicioso. Pretendia, num conjunto de 20 volumes intitulados O Legado de Caim, fazer uma síntese da condição humana em seus aspectos literários, naturais e filosóficos. Mas os homens têm a memória curta para a arte e aguçada para as perversões. Masoch retratou em seus romances suas próprias inclinações, e isso o condenou.

Um criado para seu prazer
Em 1869, Masoch, então com 33 anos, conheceu Fanny de Pistor Bogdanoff, bela mulher, nobre como ele, e que acima de tudo o amava. Leopold lhe propõe um pacto redigido como contrato: durante seis meses ele será seu criado. Ela poderá fazer com ele o que bem entender. A única ressalva é que permita que ele continue a escrever seus romances durante três horas por dia.

O contrato era para Masoch uma forma de reinventar as relações entre homem e mulher. Havia algo de Fausto também na ideia. Um pacto onde o prazer é obtido à custa do sofrimento. Fanny estranha a proposta, mas por amor aceita. O casal empreende uma viagem pela Itália. Passeiam extasiados pelos belos e antigos cenários de Nápoles. Masoch vestido e comportando-se como um criado polonês, que acompanhasse a princesa.

Ele tinha uma fantasia. Deveriam encontrar um amante para ela, jovem e belo, que a possuísse. Eles o chamariam o Grego. Finalmente, ela pediria ao amante que chicoteasse seu criado, que se comportara mal. A primeira parte do plano deu certo.

Fanny realmente conseguiu uma amante. Era um ator chamado Salvini. Mas o rapaz se recusou a surrar Masoch. Este suplicou, beijando-lhe os pés, que o castigasse. Sem sucesso. Em seu livro A Vênus de Peles, a cena aparece inteira, e na literatura o amante não hesita em malhar o criado. O gozo é atingido.

Em seu livro, Présentation de Sacher – Masoch, o filósofo Gilles Deleuze faz o seguinte comentário: “O contrato masoquista não expressa somente a necessidade do consentimento da vítima, mas também o dom de persuasão, o esforço pedagógico e jurídico pelo qual a vítima educa seu carrasco.”

De encontro ao seu desejo
Com A Vênus de Peles, Masoch tornou-se um escritor conhecido. A fama trouxe uma enxurrada de assédios, alguns sinceros, outros oportunistas. Um desses viria a marcar a vida do escritor. Trata-se do encontro com Wanda.

Abandonada pelo pai e vivendo em péssimas condições com a mãe, que lavava roupa para o exército, Wanda conheceu Madame Frischauer, que julgava ter razões para se vingar de Masoch. Seu filho, um jornalista corrupto, fora denunciado por Leopold. Madame Frischauer leu o livro de Masoch e percebeu sua fraqueza por mulheres dominadoras. Obrigou Wanda, que era sua empregada, a ler o livro também. Convenceu a jovem de que Masoch a adotaria se ela encarnasse os desejos perversos dele. Fez mais. Escreveu uma carta a Masoch oferecendo seus préstimos e seu amor. Wanda assinou a missiva.

Masoch engoliu a isca e respondeu assim: “Se eu tivesse a sorte de encontrar uma mulher que pudesse encarnar essa Vênus das peles, essa mulher eu amaria, eu a adoraria até a loucura, eu poderia me tornar seu escravo, mesmo que ela fosse apenas uma arrumadeira, porque só espero da mulher beleza e amor”

Wanda, a Dominadora
Quando Wanda, que em verdade chamava-se Aurora Rümelin, e foi rebatizada como Alice por Masoch percebe que ele estava fisgado, passa a sonhar com o casamento. A segurança de estar ao lado de um nobre era por demais tentadora. Havia um impedimento. Wanda usava em seus encontros uma máscara, e se dizia casada para mais inflamar o desejo de Masoch.

Ela aprendera em seus livros que o ciúme é afrodisíaco. Os encontros com uma dama comprometida tinham sabor especial para Leopold.

Wanda dispõe-se a abandonar o suposto marido. Masoch era ainda noivo de Jenny. Decide-se por abandoná-la em favor de Alice/Wanda. Esse é apenas o início de seu aviltamento. Quando Wanda percebe que ele está plenamente dominado retoma a ideia do contrato.

Envia para Masoch uma carta com o seguinte trecho: “Se me ama como diz, deve assinar o texto anexo, acrescentado-lhe algumas palavras para confirmar que aceita todas as minhas condições e que dá sua palavra de honra de ser meu escravo até o último suspiro. Prove que tem coragem de se tornar meu marido, meu amante, e… meu cão.” Leopold aceita, com a condição de que ela tire a máscara.

Ele descreve assim o primeiro encontro amoroso dos dois: “Wanda: dispa-se.
Eu: tiro o casaco, quer me amarrar os pés, quer fazê-lo ela própria, amarra-me os pés e as mãos, me chicoteia; inclina-se para mim, pergunta se gosto daquilo. Volúpia. Depois aproxima seus lábios dos meus. Como quero beijá-la, ela se afasta, quer que eu lhe suplique, depois chicoteia com tanta força que mal posso suportar.”

Caso limite entre um romancista e seus personagens

Ele criou Wanda e aceita agora se tornar o escravo de sua própria criatura.

O apaziguamento
Wanda, moça pobre que ascendeu à burguesia com o casamento, logo se tornou uma enfadonha dona-de-casa. Tiveram três filhos, sendo que o primeiro foi vítima do surto de cólera que se abateu sobre a Europa em 1873. Viveram juntos ainda durante 13 anos, quando tiveram o segundo e o terceiro filho, Alexandre e Demétrius. A separação de Wanda só veio em 1883 com a morte do filho Demetrius e o encontro com Hulda Meister, que seria sua segunda esposa.

Hulda era uma burguesa tradicional, mas amava Leopold. Deu segurança emocional a ele. Foi o apaziguamento. Masoch teve várias outras amantes, nas quais perseguiu seu ideal feminino, ou seja, mulheres fortes, autoritárias, que lhe infligiam os castigos esperados. Com Hulda teve mais 3 filhos.

Sacher-Masoch morreu em 5 de março de 1895, aos 59 anos. Seu corpo foi levado para Heildelberg e cremado, conforme sua vontade. Deixou mais de 30 romances, ensaios e contos publicados. Sua fama como amante singular ultrapassou seu gênio como escritor.

Mais sobre A Vênus de Peles (por Caio Arias)
A primeira publicação de “Venus in Furs” data de 1870. Após este livro em específico, Leopold Von Sacher-Masoch ganhou notoriedade e sua obra, a meu ver, começa a aparecer como “imoral”, principalmente quando, após alguns anos, o masoquismo – derivado de seu nome – entrou para o léxico psicanalítico. O romance, dizendo de forma simplista, descreve a obsessão sexual de Severin von Kusiemski, um nobre europeu com desejo de “ser escravo de uma mulher”.

Venus in Furs deu origem a mais frutos que talvez até mesmo Sacher-Masoch pudesse crer.

A primeira versão de Venus in Furs ilustrada data de 1921, com ilustrações de Fritz Bucholz. É interessante perceber o caráter animalesco da retratador por ele.

A música do grupo Velvet Underground, de mesmo título, descrevia situações clássicas de relações sexuais que uniam dor e prazer. Sem uma mudança de acorde sequer, a faixa era ponteada pelo agudo, marcando assim, o tempo da música como um aparelho de tortura.
“Shiny, shiny, shiny boots of leather
Whiplash girlchild in the dark
Comes in bells, your servant, don’t forsake him
Strike, dear mistress, and cure his heart
Downy sins of streetlight fancies
Chase the costumes she shall wear
Ermine furs adorn the imperious
Severin, Severin awaits you there
I am tired, I am weary
I could sleep for a thousand years
A thousand dreams that would awake me
Different colors made of tears
Kiss the boot of shiny, shiny leather
Shiny leather in the dark
Tongue of thongs, the belt that does await you
Strike, dear mistress, and cure his heart
Severin, Severin, speak so slightly
Severin, down on your bended knee
Taste the whip, in love not given lightly
Taste the whip, now plead for me
I am tired, I am weary
I could sleep for a thousand years
A thousand dreams that would awake me
Different colors made of tears
Kiss the boot of shiny, shiny leather
Shiny leather in the dark
Tongue of thongs, the belt that does await you
Strike, dear mistress, and cure his heart
Severin, Severin, speak so slightly
Severin, down on your bended knee
Taste the whip, in love not given lightly
Taste the whip, now plead for me
I am tired, I am weary
I could sleep for a thousand years
A thousand dreams that would awake me
Different colors made of tears
Shiny, shiny, shiny boots of leather
Whiplash girlchild in the dark
Severin, your servant comes in bells, please don’t forsake him
Strike, dear mistress, and cure his heart”
Vênus de peles
Brilhantes, brilhantes, brilhantes botas de couro
Garotinha açoitada na escuridão
Vem ao sinal, seu servo, não o abandone
Golpeie, cara senhora, e cure o coração dele
Pecados felpudos das fantasias à luz do poste
Cace as roupas que ela irá vestir
Coberta de peles a dominadora
Severin, Severin o aguarda lá
Estou cansado, entediado
Poderia dormir por mil anos
Mil sonhos que poderiam me acordar
Diferentes cores feitas de lágrimas
Beije as botas de couro, couro brilhante
Couro brilhante na escuridão
Língua de tiras de couro, a correia que o espera
Golpeie, cara senhora, e cure o coração dele
Severin, Severin, fala tão parcamente
Severin, caia de joelhos
Sinta o gosto do chicote, do amor não dado superficialmente
Sinta o gosto do chicote, agora implore pra mim
Estou cansado, entediado
Poderia dormir por mil anos
Mil sonhos que poderiam me acordar
Diferentes cores feitas de lágrimas
Brilhantes, brilhantes, brilhantes botas de couro
Garotinha açoitada na escuridão
Severin, seu servo vem ao sinal, por favor não o abandone
Golpeie, cara senhora, e cure o coração dele

Surge Guido Crepax, criador das personagens Valentina e Anita. Foi um dos artistas que mais contribuiu para a revolução das histórias em quadrinhos dos anos 60 e 70. Criador de uma linguagem própria, o delírio, o erotismo, a liberação em oposição ao comportamento reprimido das décadas anteriores estavam claros nas criações de Crepax e com uma estética impecável trouxe novamente à vida Venus in Furs.

O fato é que parece haver uma força renovadora, um respiro, um refúgio que leva artistas a buscarem, das mais variadas formas, a publicação de Sacher-Masoch que, muito além de um simples conto de luxúria e “perversão” sexual ou um fantasma da decadência Vitoriana, é um apaixonado e poderoso retrato de um homem que luta para esclarecer e instruir o seu próprio mundo no domínio de seu próprio desejo.

“(…) mas de repente, ela me empurra com o pé, ergue-se e puxa uma campainha.
Imediatamente três esbeltas negras talhadas no ébano apareceram, vestidas de cetim vermelho e cada uma com uma corda na mão.
Compreendo agora minha situação e tento me levantar, mas Wanda, de pé, com seu belo e frio rosto de sobrancelhas escuras e olhos zombeteiros virados para mim, se impõe como senhora dominadora. Ela faz um gesto e, antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, as três negras jogam-me no chão e amarram minhas mãos e pernas, depois os braços atrás das costas, como um homem pronto para ser executado, de forma que mal posso me mexer (…)”


DOWNLOAD DE A VÊNUS DAS PELES


Fonte: Blog Leituras Favre

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