Cultura - Elementos da diversidade temática

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Carlos Drummond de Andrade, na construção de seu discurso poético, utiliza-se dos mais diversos recursos expressivos. No poema "Um boi vê os homens", deparamos-nos com uma alegoria moral em que o boi, com aguda ironia, interpreta o estar-no-mundo: (Texto IV)

Da leitura:

O autor faz o boi ver "os homens", num verdadeiro achado poético, "com as devidas adaptações ao temperamento bovino": embora tenha a faculdade de refletir e até mesmo a de filosofar acerca de sua "verdade", o animal não perde jamais a sua condição bovina Em verdade, em nenhuma passagem do texto se retrata o homem, é sempre um boi falando, inclusive o elemento por ele escolhido para acentuar a fragilidade física dos humanos é extraído de seu universo: "um arbusto".
Segundo o boi, aos homens falta "não sei que atributo essencial"; e a oração "posto se apresentem nobres e graves" acentua, com ironia, essa carência particular dos humanos, que "correm / e correm de um para outro lado, sempre esquecidos / de alguma coisa", perdidos de si mesmos, irresolutos e, de certo modo, desnorteados diante dos referenciais adversos da realidade.
Tudo isso ocorre, talvez, por terem se afastado do seu estado de natureza, pois, como pertencentes a uma cultura, já "não escutam / nem o canto do ar nem os segredos do feno", daí a sua profunda tristeza, caminho aberto para o exercício da crueldade.
Carentes, sem atributos especiais, frágeis fisicamente, com "pouca montanha, - metáfora que ressalta a prepotência humana, não obstante a precariedade física -, os homens, mesmo assim, segundo o boi, preferem, em sua relação social, a desarmonia à paz.

A linguagem, instrumento por que os homens elaboram o mundo, ao mesmo tempo que os torna superiores, na escala da natureza, aos outros animais, também faz com que sejam intimamente inquietos, confusos, cheios de dúvida, de interrogações. E o "vazio interior" que não conseguem guardar dentro de si, pois, através do olhar, revelam aos outros a sua intimidade, faz com que os homens se tornem "tão pobres e carecidos / de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme".
O boi, por sua vez, não sabe esses "sons absurdos", isto é, não vive a experiência dos sentimentos que desarticulam os homens, tornando-os capazes de destruírem-se a si mesmos, bem como tudo ao redor, provocando uma ruptura entre os de sua espécie ou mesmo entre os da sua e os das demais.

A sublimação:

Em Carlos Drummond de Andrade, comumente o álcool surge com a função de libertar o eu do sujeito sufocado em sua interioridade ou como lenitivo para o absurdo da vida - esta temática, por sua vez, pode ser constatada nesse poema "Um boi vê os homens". Se, porém, recursos como os de embriagar-se ou fuga para uma ilha nada resolvem, a rigor, em termos de realidade objetiva, pelo menos permitem ao poeta viver, em seu delírio, outra realidade, como em "Aurora": (Texto V)

Em "Aurora", a nota inicial de frustrações, melancolia e desencantos, pertinente ao primeiro movimento, (v.1 a v.14) é substituída por um desenfreado delírio a envolver, quase por completo, todo o segundo movimento, (v.15 a v.27) até se dissolver no sarcasmo sucinto dos dois últimos versos. Bêbado, ante a decomposição do mundo e de seus valores, o poeta se deixa envolver, inicialmente, por um clima de derrota, uma vez que tudo parece destinado à destruição ou à inutilidade: "Tudo era irreparável". As personagens "José", "Helena", "Sebastião", "Artur" e o "poeta" são apresentadas sob diferentes atuações, representativas da diversidade (inútil?) das ações humanas. Afinal de contas, de uma forma ou de outra, todos "embarcam para a eternidade".
Entretanto, a ausência de um sentido maior para a vida, resultado das limitações humanas, cede lugar a uma euforia, quando o álcool, que antes colocara o poeta num estado de lassidão, quase numa letargia, provoca nele uma reação inversa, fazendo-o seguir o "apelo da aurora", até que, finalmente, reintegre-se à lucidez: "A morte virá depois / como um sacramento".

A recorrência

O álcool, em seu poder de sublimação, percorre também a atmosfera do poema "Convite Triste": (Texto VI)

Em "Convite Triste", mais uma vez o poeta depara a realidade adversa. Caracteriza o insistente convite a um "amigo" qualquer, que pode muito bem ser apenas um disfarce do eu lírico, uma busca obsessiva de futilidades, a partir do ato de "beber". Na primeira estrofe, a repetição do verso "Meu amigo, vamos sofrer" ultrapassa a esfera de um masoquismo deliberado para, ironicamente, à semelhança de outras atitudes do gauche, inscrever o sofrimento no quadro geral da realidade, aqui representada particularmente pela expressão "jornal", de grande efeito.

O poeta sugere que a gênese de suas agruras não se encontra em sua subjetividade, mas, sobretudo, na rudeza inerente às coisas e aos seres que compõem o mundo exterior.

O lirismo antirromântico, predominante na segunda e quarta estrofes, através da desmitificação de símbolos perenes, tais como o "poema", a "estrela", o "suspiro fundo" e a "mulher", traduz, de certa forma, não apenas o desencanto do poeta ante os valores dilacerados do mundo, - o que implica a inutilidade de qualquer ilusão de reordenação das coisas, - mas, também, e sobretudo, o ápice de sua angústia, de seu desespero, um estado só suportável por meio do torpor advindo do álcool.

Na última estrofe, os recursos de "cantar", de "chorar" e de "ouvir muita viola" funcionam como um adjutório ao estado de embriaguez plena, ocasião em que o poeta, com a sensibilidade à flor da pele, beberá também "outros sequestros", disfarçados sob uma possível obscenidade, para, finalmente, após sofrer vergonha ou mesmo humilhação pública, ("depois vomitar e cair") atingir, através do sono, a alienação absoluta, eximindo-se de um contato mais concreto com a realidade inaceitável.

TRECHOS:

TEXTO IV

Tão delicados (mais que um arbusto) e correm / e correm de um para outro lado, sempre esquecidos / de alguma coisa. Certamente, falta-lhes / não sei que atributo essencial, posto se apresentem nobres / e graves, por vezes. Ah., espantosamente graves, / até sinistros. Coitados, dir-se-ia não escutam / nem o canto do ar nem os segredos do feno, / como também parecem não enxergar o que é visível / e comum a cada um de nós, no espaço. E ficam tristes / e no rastro da tristeza chegam à crueldade; / Toda a expressão deles mora nos olhos - e perde-se / a um simples baixar de cílios, a uma sombra. / Nada nos pelos, nos extremos de inconcebível fragilidade, / e como neles há pouca montanha, / e que secura e que reentrâncias e que / impossibilidade de se organizarem em formas calmas, / permanentes e necessárias. Têm, talvez, / certa graça melancólica (um minuto) e com isto se fazem / perdoar a agitação incômoda e o translúcido / vazio interior que os torna tão pobres e carecidos / de emitir sons absurdos e agônicos: desejo, amor, ciúme / (que sabemos nós?), sons que se despedaçam e tombam no campo / como pedras aflitas e queimam a erva e a água, / e difícil, depois disto, é ruminarmos nossa verdade. (PP, p.204)

TEXTO V

O poeta ia bêbado no bonde. / O dia nascia atrás dos quintais. / As pensões alegres dormiam tristíssimas. / As casas também iam bêbadas. /// Tudo era irreparável. / Ninguém sabia que o mundo ia acabar / (apenas uma criança percebeu mas ficou calada), / que o mundo ia acabar às 7 e 45. / Últimos pensamentos! últimos telegramas! / José, que colocava pronomes, / Helena, que amava os homens, / Sebastião, que se arruinava, / Artur, que não dizia nada, / embarcam para a eternidade. /// O poeta está bêbado, mas / escuta um apelo na aurora: / Vamos todos dançar / entre o bonde e a árvore? / Entre o bonde e a árvore / dançai, meus irmãos! / Embora sem música / dançai, meus irmãos! / Os filhos estão nascendo / com tamanha espontaneidade. / Como é maravilhoso o amor / (o amor e seus produtos). / Dançai, meus irmãos! / A morte virá depois / como um sacramento.
(PP, p.38)

TEXTO VI

Meu amigo, vamos sofrer / vamos beber, vamos ler jornal, / vamos dizer que a vida é ruim, / meu amigo, vamos sofrer. /// Vamos fazer um poema / ou qualquer outra besteira. / Fitar por exemplo uma estrela / muito tempo, muito tempo / e dar um suspiro fundo / ou qualquer outra besteira. /// Vamos beber uísque, vamos / beber cerveja preta e barata, / beber, gritar e morrer, / ou, quem sabe? beber, apenas. /// Vamos xingar a mulher / que está envenenando a vida / com seus olhos e suas mãos / e o corpo que tem dois seios / e tem um umbigo também. / Meu amigo, vamos xingar / o corpo e tudo que é dele / e que nunca será alma. /// Meu amigo, vamos cantar, / vamos chorar de mansinho / e ouvir muita vitrola / depois embriagados vamos / beber mais outros sequestros / (o olhar obsceno e a mão idiota) / depois vomitar e cair ; / e dormir. (PP, p.49)

FRASE:
"Num mundo que não tem sentido - anticosmos grotesco - nenhuma substância do eu pode subsistir. A existência zomba do sujeito e sua pretensa continuidade".

J. GUILHERME MERQUIOR
ENSAÍSTA



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