O GENE EGOÍSTA

Print Friendly and PDF


Uma natureza brilhante:

Richard Dawkins, professor da Universidade de Oxford, é um intelectual brilhante. A sua força vem de um desejo de criar idéias, pondo de cabeça para baixo o senso comum; de tomar velhos conceitos e estende-los até o limite onde se subvertem, se revitalizam e voltam a surpreender. Ele se encanta com isto. Se encanta com a idéia de que um organismo é uma federação de vírus; ou de que o corpo é um autômato construído por genes para garantir sua própria sobrevivência; que a ciência, longe de tirar a beleza romântica do mundo, a reconstrói em níveis cada vez maiores de complexidade.
E o repertório dawkiniano de novas idéias parece nunca se esgotar, emprestadas ou de sua própria autoria, ele as divulga em fluentes especulações, que mesmo quando um tanto toscas não cessam de surpreender:
E se o fenótipo determinado pelo genes não puder ser limitado aos efeitos observáveis no organismo, e tivermos que incluir as transformações que os genes provocam "externamente", como os ninhos dos pássaros, por exemplo?
E se os fragmentos culturais, como melodias, conceitos e modas, transmitidos entre indivíduos por repetição, estiverem sujeitos às mesmas regras do neodarwinismo?
E se um vírus nada mais é que um fragmento de DNA que, não se contentando em se replicar pelos meios convencionais (transmitindo-se para as próximas gerações via óvulos ou espermatozóides), cria meios de se propagar pelo ar ou pela saliva?

"O Gene Egoísta", seu primeiro livro, publicado em 1976, é uma obra impressionante, na qual a gente se maravilha a cada momento com a descrição dos fantásticos seres que habitam este planeta, e então volta a se maravilhar ao compreender os porquês destes seres dentro de um contexto genético-evolucionário.
Formigas que cultivam fungos, outras que criam e "ordenham" moscas. Enxame de insetos geneticamente idênticos, como se fosse um único organismo com seu corpo fragmentado em vários indivíduos. "Colméias" de roedores onde todos os membros são irmãos estéreis trabalhando para garantir a continuidade da reprodução de sua mãe.
Casais de peixes hermafroditas nos quais os indivíduo se alternam no papel de macho ou fêmea. Parasitas que estimulam seus hospedeiros a viverem mais.
Vespas que mantém suas presas vivas e paralisadas para servirem de alimento fresco para suas larvas.
Plantas que em retaliação por não terem sido polinizadas, deixam suas flores morrerem, matando também os ovos dos insetos que espertamente não cumpriram sua função.
Formigas-rainhas que induzem quimicamente as trabalhadoras de uma espécie diferente a matarem a sua própria mãe e as adotarem como nova rainha.

Os escritores de ficção
científica deveriam se envergonhar com a banalidade de seus ETs diante da surpreendente complexidade biológica de nosso planeta.
Mas por mais deliciosas que sejam as descrições destes exemplos específicos, a verdadeira força de "O Gene Egoísta" se faz sentir quando Dawkins os explica no contexto mais geral dos fenômenos do altruísmo e da agressividade, da colaboração e do parasitismo, da diferenciação sexual, da afinidade entre familiares sempre a partir da perspectiva evolucionária dos genes.

Os replicadores: átomos da evolução


Para Dawkins, o conceito central em toda discussão evolucionária é o de replicador (replicator). Um replicador é qualquer coisa, não necessariamente de natureza biológica, que tenha capacidade de se fazer cópias de si mesmo.
O início da vida na Terra teria se dado possivelmente a partir de proteínas auto-replicadoras. Elas se reproduziam a partir dos aminoácidos presentes no meio primordial, seja lá qual fora, até que estes recursos naturais se esgotaram. Se houvessem jornais há 5 bilhões de anos, eles noticiariam a primeira crise ecológica da história.
Mas o fato básico que permitira a continuidade da evolução de nossa biosfera, é que nenhum processo de replicação é perfeito. Um certo grau de fidelidade entre gerações é esperado, mas as mutações são estatisticamente obrigatórias.

O DNA é o principal, talvez único, replicador em nosso planeta. Cada fita da hélice pode dar origem a uma nova e idêntica molécula, utilizando os recursos do ambiente.


Eventualmente se um replicador-mutante obtivesse a capacidade de "quebrar" seus vizinhos, adquiriria automaticamente uma fonte inesgotável de recursos para sua auto-reprodução. As gerações deste tipo de replicador, com certeza poderiam se tornar numericamente dominante, pelo menos até que uma mutação levasse a algum outro replicador a resistir aos seus ataques, talvez por meio de uma capa de proteína. Os proto-jornais noticiariam, neste momento, o início de uma "corrida armamentista" que viria a durar até hoje.
O replicadores são hoje chamados de genes. São feitos de DNA, atuam em conjunto formando cromossomos e suas máquinas de guerra, para ataque e para defesa, são os corpos que eles laboriosamente constroem, coordenando a síntese de proteína dos organismos.
Em resumo, Dawkins mostra que a biologia está de cabeça para baixo. Os cientistas quando começaram a estudar a vida, começaram pelo seu aspecto mais evidente, os organismos. Eventualmente descobriram os genes, e atribuíram a eles o papel de ajudar o corpo no processo de reprodução. Falso: os genes criam o corpo para ajudá-los no processo de reprodução.
As teorias do gene egoísta e do fenótipo estendido - segundo a qual a ação dos genes não se limita ao organismo, mas se estende para o mundo externo e mesmo outros organismos - dão ao darwinismo uma base genética, desconstruindo tanto a teoria da seleção de grupos (os indivíduos querem o bem de sua espécie) quanto a teoria da seleção de indivíduos (sobrevivência do mais apto). No primeiro caso, os grupos (por exemplo, um bando de pássaros ou a espécie humana) não formam uma unidade coerente e uniforme o bastante para poder se atribuir propriedades evolutivas, a não ser em casos específicos de grupos de indivíduos com grande afinidade genética.
No segundo caso, mesmo os indivíduos sendo mais coerentes e uniformes que os grupos, Dawkins argumenta que a seleção ocorre realmente entre os genes, e que a aparente seleção entre indivíduos é
apenas a consequência da seleção genética.
A insistência de Dawkins sobre a prioridade da seleção genética sobre a de grupos e a de espécies levou a longas polêmicas com outro grande biólogo Stephen Jay Gould. O sabor da disputa pessoal aparece, por exemplo, quando em uma nota à segunda edição do Gene Egoísta, Dawkins comenta sarcasticamente: "[Gould] após um preâmbulo sobre reducionismo e hierarquia (os quais como usual, eu não acho nem errado nem interessante) ...".
Para Dawkins, os genes foram os únicos replicadores do planeta por bilhões de anos. Hoje seríamos, no entanto, espectadores e palco para o nascimento de uma novíssima classe de replicadores, os memes. Os memes seriam unidade de repetição cultural. Frases, idéias, melodias, citações. Padrões estruturados de pensamento que se replicam por imitação, sujeitos a mutações e a mecanismos darwinianos de evolução.
Apesar da idéia ser fascinante, ela realmente soa bastante forçada. Sente-se falta de uma definição mais exata do que seriam estes padrões de repetição.
Padrões de atividade cerebral?
Como conciliar o meme de uma idéia pensada com o da mesma idéia escrita, já que seus padrões materiais são completamente distintos?

A segunda edição de O Gene Egoísta já fez os seus quinze anos. Desde lá a hipótese dos memes pode ter se tornado mais rigorosa, ou apenas ter sucumbido.
Não sei. Fico devendo um texto sobre o assunto para o futuro.
Por enquanto, vamos nos aprofundar um pouco sobre os conceitos oriundos da moderna Teoria dos Jogos, que permitem construir modelos matemáticos para os vários aspectos da teoria do Gene Egoísta.
Estratégias: covardes e brigões

Emprestada da moderna Teoria dos Jogos, estratégia é o comportamento induzido pelos genes para enfrentar uma dada situação. Por exemplo, um certo conjunto de genes pode induzir um animal a fugir do seu predador. Um conjunto diferente pode induzir o animal a enfrentar o predador. Estas seriam duas estratégias diferentes. É importante ter sempre e mente que a estratégia não é conscientemente definida, nem exige um cérebro para ser montada, ela pode ser bastante complexa, mas é fundamentalmente automatizada. É aquilo ao que comumente chamamos de instinto.
A interação entre indivíduos da mesma espécie ou entre espécies diferentes pode ser compreendida utilizando-se o conceito de estratégia. Cada grupo pode ter uma estratégia diferente, algumas mais eficientes do que outras para garantir a sobrevivência.
Imagine uma mutação que faça com que a gazela adote como estratégia enfrentar o leão!
Obviamente estes genes mutantes não terão muitas chances de se propagar para as gerações seguintes.
No entanto os genes para a estratégia de "correr do leão o mais rápido possível" irão se propagar e dominar toda a população.
Claro que se você quiser um texto-introdução decente sobre o assunto, eu recomendo que pare a leitura aqui e vá direto para "O Gene Egoísta". Mas se quiser continuar... Suponha que numa certa população de uma espécie animal os machos compitam entre si para garantir a algo valioso para sua reprodução como hierarquia, território, comida ou acesso às fêmeas. E suponha ainda que estes machos estejam divididos em dois grupos diferentes, de acordo com a estratégia de competição. Um macho é brigão (hawk) se na competição ele não desiste até que vença ou esteja gravemente ferido. No entanto ele é covarde (dove) se na competição ele recua rapidamente diante do adversário.
Quando um covarde enfrenta outro covarde, a peleja dura pouco. Um deles, com 50% de chance, vence sem muito esforço, e ambos saem sem perder tempo na briga, e melhor, sem ferimentos graves. Claro que, por outro lado, na competição entre um brigão e um covarde, o brigão sempre irá ganhar. Ele obterá os recursos pelo qual briga, e seus genes para a estratégia brigão serão propagados mais eficientemente dos que os genes para a estratégia covarde. Mas quando o brigão encontra outro brigão, o perdedor sai muito ferido, e mesmo o vitorioso tem que pagar um preço pela luta prolongada, que pode ser contado como uma diminuição na sua prole.


No exemplo da figura, vemos como uma população de brigões e covardes evolui ao longo das gerações. A população total de 1000 indivíduos é suposta constante ao longo da simulação. A condição inicial é de 500 covardes e 500 brigões.
As recompensas são vitória = 50, derrota = 0, ferimento = -100 e perda de tempo = -10. Para estes números, a população de covardes tende a ser 5/12 da população total.


No balanço, brigões propagam seus genes tanto brigando com outros brigões quanto com covardes.
Mas os covardes ainda se saem bastante bem brigando entre si. Se se atribui valores numéricos para a vitória, a perda de tempo na briga, a derrota e o sair gravemente ferido, como no exemplo da figura acima, pode-se calcular como as populações de brigões e covardes aumentarão e diminuirão, assim como se pode provar que esperado tempo suficiente, estas proporções tenderão a um certo equilíbrio. Na linguagem da teoria dos jogos, estas estratégias são um conjunto misto evolucionariamente estável (de ESS - evolutionarily stable strategy), conceito desenvolvido por John Maynard Smith, já no contexto biológico.


Seria, o preconceito, genético?

Uma questão interessante que o conceito de gene egoísta coloca é: como genes selecionados pela sua capacidade de autopreservação podem dar origem a comportamentos altruísticos que observamos na natureza. A resposta estaria no conceito de seleção por afinidade (kin selection).
Dawkins, baseado nos trabalhos de W. D. Hamilton, explica a seleção por afinidade como uma consequência da seleção genética, diferente, por exemplo, de E. Wilson que a trata como uma consequência da seleção de grupos. No contexto da teoria do gene egoísta, pode-se mostrar matematicamente que um gene para o comportamento "ser bastante altruísta para com seus irmãos, seus filhos e sua mãe", tem grande probabilidade de propagar na espécie, já que mesmo que o indivíduo diminua a sua prole ou mesmo morra em seus atos altruísticos, ao garantir a vida de seus irmãos, filhos e mãe, ele garantirá novas proles de sobrinhos, netos e irmãos que, com boa probabilidade, também possuirão o gene para o altruísmo.


Percentual de genes compartilhados entre você e seus parentes.

Parentesco
genes comuns

(%)

você mesmo
100

gêmeo idêntico


100

pai, mãe, filhos, irmãos

50


avós, netos, tios, sobrinhos, meio-irmãos


25

primos (1. grau)

12,5

primos (2. grau)
3,13
primos (3. grau)
0,78


Todos os seres humanos compartilham mais de 99% dos genes. O que nos faz diferentes a cada indivíduo é este "menos de 1%" restante. Mesmo assim, você ainda compartilha metade destes "menos de 1%" com seu pai e 12,5% deles você compartilha com um primo direto. [1]

A matemática da seleção por afinidade, não pode no entanto se restringir às probabilidades de genes compartilhados. Várias assimetrias existem. Por exemplo, mãe e filho compartilham 50% dos genes, e a princípio o altruísmo poderia se dar em ambos os sentidos, de mãe para filho e de filho para mãe. No entanto o gene "seja altruísta para com seu filho" pode ter uma probabilidade de sucesso maior do que o "seja altruísta para com sua mãe", se a expectativa de vida do filho for maior que a da mãe. Portanto (não sem polêmica) a seleção por afinidade explica o quase que universal fenômeno do "instinto maternal".
Assim como explica também que os animais evitem os extremos de relações incestuosas ou com
indivíduos de outras espécies. No primeiro caso, como os indivíduos compartilham boa parte dos genes (50% entre irmão e irmã, por exemplo), a probabilidade de ocorrência de um duplo recessivo para um gene letal, torna-se alta. Consequentemente, as proles não serão numerosas e o gene para "relações incestuosas" não se difundirá entre a população. No outro extremo, a pouca afinidade genética pode levar a proles inférteis, como no clássico exemplo da mula, prole infértil do cruzamento entre um cavalo e um burro. Obviamente, o gene para "cruzar com outras espécies" não tem muita chance de se propagar.
Voltando à questão do altruísmo, claro que na natureza nem sempre é óbvio saber exatamente quem são seus pais, filhos ou irmãos. E, neste caso, a vantagem altruística pode eventualmente se deslocar dos "parentes" para os "semelhantes" (os semelhantes provavelmente possuem uma boa quantidade de genes em comum, talvez até o do altruísmo).
Imagine um exemplo específico. Morcegos saem para se alimentar e na volta regurgitam parte da comida, não para seus filhotes, mas para seus colegas que não conseguiram se alimentar durante a noite. Este é um ato altruístico e podemos falar de um gene (ou mais possivelmente, de um conjunto de genes) para ele.

G.S. Wilkinson mostrou em laboratório que quando se misturam duas populações de morcegos da mesma espécie, mas oriundos de locais diferentes, o altruísmo ocorre apenas entre os advindos do mesmo local. Na linguagem humana diríamos que os morcegos de uma caverna é preconceituoso com relação aos de outra.
Imagine agora uma extensão para o experimento de Wilkinson, na qual um morcego mutante tenha o gene para "regurgitar para todos os morcegos, independentemente da caverna de origem". Qual seria as chances desta Madre Tereza dos morcegos passar este gene adiante? Afinal, quando ele precisar de alimento, algum colega de caverna regurgitará para ele. Mas os da outra caverna não. Portanto, o custo do altruísmo se torna bem maior que o benefício, o que se reflete na redução de sua prole e, claro, na redução do fração da população que possui o gene "ser totalmente altruísta". No contexto da teoria dos jogos, este experimento poderia ser analisado como um "Dilema do Prisioneiro", no qual a estratégia "cooperar sempre" tende a desaparecer da população.

Imagino que você, lendo este texto, já deve ter feito as conexões: seleção por afinidade, altruísmo entre semelhantes, preconceito. Afinal seria possível aplicar estes conceitos ao racismo e outras formas de discriminação comum entre humanos? Ou seríamos uma espécie distinta das demais, nas quais nossas ações seriam fundamentalmente culturais e não genéticas?
Claro que não tenho respostas para este debate. Mas tenho meus palpites para defenestrar no próximo texto.


[1] A respeito desta contagem probabilística, tornou-se anedótica e pedante, ao mesmo tempo que sem sentido, crítica do antropólogo social Marshall Sahlins:
"Rapidamente, deve-se destacar que os problemas epistemológicos apresentados por uma deficiência de suporte linguístico para se calcular r, o coeficiente de parentesco, conduzem a um sério defeito na teoria da seleção por afinidade. Frações são de muito rara ocorrência entre as linguagens de todo mundo, aparecendo nas civilizações Indo-Européia e nas arcaicas do oriente próximo e distante, mas elas são, em geral desconhecidas entre os chamados povos primitivos. Caçadores e colhedores não possuem sistemas de contagem além de um, dois e três.
Eu me abstenho de comentar o quão maior é o problema de como supostamente os animais descobririam que r [ego, primo (1.grau)]=1/8."


M. Sahlins, O uso e o abuso da biologia. Citado em Dawkins, O Gene Egoísta, segunda edição.

FONTE: http://mbarbatti.sites.uol.com.br/def/p56.html

0 Comentários: