A vanguarda encontra a tradição em livros do poeta russo Serguéi Tretiakóv e do brasileiro Arnaldo Antunes



Se como gênero literário-editorial, a poesia se vê ameaçada, como expressão da vitalidade das línguas, segue imperturbável, em sua devoração e digestão do mundo.
A poesia é uma potência criadora - da língua. Os poetas, ao criarem o que não existe a partir do que existe, reproduzem o gesto adâmico. No mito bíblico, coube ao primeiro homem participação na criação dos animais.
"Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todo o animal do campo, e toda a ave dos céus, os trouxe a Adão, para este ver como lhes chamaria; e tudo o que Adão chamou a toda a alma vivente, isso foi o seu nome", está escrito, no "Livro do Gênesis".
Foi, por assim dizer, o primeiro grande feito de Adão - ao nomeá-los permitiu a eles uma existência que a própria criação deixara incompleta. O gesto original de Adão é retomado pelos vanguardistas - ao menos, por aqueles que entendem que não se faz arte apenas com rupturas com o passado, mas com continuidades.
O compositor e poeta Arnaldo Antunes e a ambientalista (e sua ex-esposa) Zaba Moreau criam em terreno semelhante, como componentes quase iguais. Inventam bichos-poemas que são transcriados em imagens, pelas xilogravuras do grupo Xiloceasa.
Os russos Serguéi Tretiakóv e Aleksandr Ródtchenko integram o poema à imagem fotográfica no álbum "Imitabichos". Única incursão do poeta e dramaturgo Tretiakóv pelo universo infantil, a obra mostra o início da experimentação de Ródtchenko com a estética construtivista.
Quando apareceu integrando a banda de rock Titãs, Arnaldo Antunes já havia mostrado suas garras poéticas. Canções como "O que" (do disco clássico "Cabeça Dinossauro", de 1986) explicitavam sua ligação com a Poesia Concreta, dos paulistas Décio Pignatari e Augusto e Haroldo de Campos. Em sua produção como poeta, Arnaldo Antunes converteu-se em explorador concretista. "Animais" não se desvia desta trilha - que já lhe rendeu quase 20 livros. O livro foi escrito pelo ex-titã com Zaba Moreau e lançado em 1988, quando os dois ainda eram casados. Quando estava grávida, ela e Arnaldo brincavam de criar bichos. Inventaram uma fauna de "animais-poemas" que foi recriada pelos artistas do Xiloceasa, coletivo de gravadores de Vila Leopoldina, bairro da zona oeste de São Paulo.
Para encher sua Arca de Nóe concretista, Arnaldo e Zaba se valeram de palavras-valise - a fusão de vocábulos para criar uma nova palavra e novos significados. O procedimento é comum nas obras de dois autores que serviram de referência para os concretos: o inglês Lewis Carroll (1832 - 1898), no poema "Jabberwocky" (do livro "Alice através do espelho"); e o irlandês James Joyce (1882 - 1941), no romance "Ulisses" e no anti-romance "Finnegans Wake".
Na fauna verbal de Arnaldo e Zaba, existem bichos como o "escorpinheiro", uma "serponte" e um "leonça".
Ecos Serguéi Tretiakóv (1892 - 1932) não é um poeta muito conhecido no Brasil. Ele fez parte da famosa geração "desperdiçada" (como a batizou o linguísta Roman Jakobson), formada por escritores soviéticos mortos (ou levados à morte) pelo regime stalinista. Antes disso, em 1926, Tretiakóv publicou nove poemas, destinados ao público infantil, falando de bichos. Seus versos, eivados de um teor narrativo e de marcas da oralidade, ganhou duas edições em livro. Uma, mais conservadora; outra, construtivista. É esta que a Cosac Naify reedita, com belos trabalhos de colagem e fotografia de Aleksandr Ródtchenko (1891-1956).