Luzes por sobre rotas em trevas

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Na literatura brasileira, uma das correntes mais prolíferas, cujo espaço é o cotidiano metropolitano, é a das narrativas policiais, sedimentadas na sedução pelo horror - esta, aliás, é uma das temáticas desenvolvidas por Aristóteles em sua Poética.

O leitor depara a cena grotesca - um cadáver encharcado na lama - e tal imagem passa a acompanhá-lo, indelével

Sob o ponto de vista externo, isto é, a terceira pessoa, o narrador, onisciente e onipresente, conduz, de forma dinâmica, a trama; assim, de modo veloz, acumulam-se personagens e movimentos, bem como informações aqui e ali que servem para a costura do enredo. Sem delongas, de chofre, as cenas são apresentadas ao leitor. Surge, então, o protagonista: o delegado Joaquim Dornelas - um tipo comum, sem aqueles atributos dos heróis do cinema norte-americano, por isso mesmo humanizado, desses que, como na canção, somem na poeira das ruas.
O delegado Dornelas é um homem de poucas posses, que, em casa, só tem a companhia do cachorro Lupi, (a mulher, com medo da viuvez e da orfandade dos filhos, exigiu que ele escolhesse entre a polícia e a família, e ele, sem outra opção, resolveu continuar na polícia, certo de que a mulher recuaria da decisão, o que não aconteceu) é, ainda, de repetidos hábitos: toma, todos os dias, um rápido café na padaria e vai a pé para o trabalho, cruzando a arquitetura da histórica cidade de Palmyra, próxima ao Rio de Janeiro. Numa dessas manhãs, na costumeira viagem pelo passado, vislumbrou uma multidão: "Com dificuldade, subiu na mureta entre a rua e a água e dali avistou o corpo de um homem atolado de costas sobre a lama seca da baía, os braços estendidos como o Cristo Redentor, a camisa cor de laranja aberta e empapada sobre a lama". Um cadáver em meio à multidão.
Seguem-se, então, as naturais especulações: quem seria o morto?; como viera parar alí se não havia quaisquer sinais de deslocamentos?; onde estão as marcas de violência no corpo do morto? A única coisa que chamou a atenção do delegado foi um pequeno band-aid redondo na dobra do braço esquerdo. A maré já dá nítidos sinais que, em breve, começará a encher; urge, pois, a chegada da perícia; para não perder as impressões de toda a cena, o delegado sacou o celular e passou a fotografar tudo sob vários ângulos.
Uma das virtudes da narrativa reside, sobretudo, na construção da linguagem, uma vez que esta se imprime a partir do estilo mesclado: ainda que predomine o emprego da norma culta, há a abertura para palavrões e jogos de estruturação nominal. Ao longo do enredo, as cenas são entrecortadas por instantes descritivos que orientam o leitor em relação ao tempo e ao espaço: "Uma brisa leve e fresca soprava sobre a baía fazendo balançar preguiçosamente os barcos ancorados no mar e presos ao cais. Vistos de longe, pareciam bercinhos num ninar incessante. O encrespado das marolas refletia a luz morna da lua..." Assomam, ainda, recursos de intertextualidade como, por exemplo, um samba-enredo de Bezerra da Silva a batucar na mente do delegado.
No desenrolar das investigações, o delegado é, sem que fizesse qualquer manifestação para isso, procurado por um vereador poderoso e pela irmã do morto. A partir de então, o caso deixa de ser uma morte qualquer para ganhar dimensões inesperadas, pois irá palmilhar os obscuros becos das relações políticas, do tráfico de drogas, da prostituição e de um intrigante comércio de peixe. Um emaranhado de personagens se cruza nos corredores do enredo, cada uma delas com a sua necessária contribuição para o tecido ficcional, com suas pistas falsas e seus caminhos em ziguezague.
Ainda acerca dos expedientes estilísticos, multiplicam-se as vozes narrativas por conta do emprego bem dosado dos discursos direto e indireto-livre. O primeiro, ora quebra a densidade do momento, ora a faz surgir, sempre em frases curtas, incisivas, mesmo que o período venha a ser longo. O seguinte permite ao leitor penetrar na intimidade da personagem, conhecendo-lhe a consciência, os juízos de valor, a sua impressão acerca dos outros e da vida: "Se o sofrimento tivesse de vir, que viesse de uma vez". O título desse romance é uma alegoria: que o morto descanse em paz.

FONTE: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1068652

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