No filme, Antonio Banderas interpreta Robert Ledgard, um cirurgião plástico especialista em transplante de face. Desde que sua mulher saiu queimada de um acidente de carro, dedica-se a criar, através de experiências biogenéticas, uma nova pele imune a todas as formas de agressão, a qual venha a substituir a humana. Marília (Marisa Paredes), que cuidou dele desde o nascimento, o ajuda em tudo. Para piorar o quadro, Ledgard é atingido por outra tragédia: sua filha é violentada em uma festa.
À primeira vista, "A Pele que Habito" parece um filme sem identidade ao trafegar por vários gêneros - suspense, horror, policial, ficção científica, drama, mistério. Ao mesmo tempo, um dos temas contidos na história é justamente este, a identidade. A identidade do filme como gênero específico, relacionada ao tema da identidade, cerne da história.
Puxando essas duas temáticas, o cineasta adentra ao campo que lhe interessa: a relação masculino/feminino, um de seus temas recorrentes. A sexualidade, o homem-mulher, a mulher-homem, a fusão de ambos em apenas um, bate em Almodóvar e ele a bate em seus filmes como uma marca registrada. Algo a ver com sua vida pessoal? Provavelmente, sim.
Mas, em "A Pele que Habito", Almodóvar vai além e tenta mostrar, cientificamente, como o homem pode ser mulher e a mulher pode ser homem. Ou seja, ambos como um só. A medicina e a ciência estão aí para isso.
Vera é essa prova. Um dos momentos em que isso fica evidente é a cena em que Banderas e Elena Anaya estão na cama e ela, incomodada com a penetração, leva-o a dizer "vamos por trás".
Transexualidade, homossexualidade? Homem ou Mulher? Não. Apenas humanos com sexualidade, diz o cineasta.
É essa relação identidade-sexualidade o principal tema de "A Pele que Habito", o qual também é repassado aos demais personagens. Cristina (Barbara Lennie), empregada da loja da mãe (Suzy Sanchez) de Vicente (Jan Cornet), diz ter uma namorada; Zeca (Roberto Álamo), o filho de Marília, que entra na história para levar o espectador a uma falsa evidência, é um pervertido sexual.
Almodóvar faz o enredo de "A Pele que Habito" - o qual tem por base o romance "Tarântula" (Editora Record, 160 páginas) do francês Thierry Jonquet (1954-2009) -, trafegar pela loucura. A loucura da vida, a loucura da ciência, a loucura das relações, a loucura dos outros, a loucura gerada pela mãe. A mãe, Marília, geradora de filhos loucos.
É essa loucura, a qual provavelmente já estaria em processamento na mente de Norma (Blanca Suarez), a filha de Robert Ledgard, que a leva a pensar que ele a violentou. Até as obras de artes remetem à loucura do processo de criação com suas formas irreais.
Outros temas se desenrolam igualmente pelo filme, como o amor e a vingança. Ledgard, o cientista, as condensa em si. O amor pela esposa leva-o a perdoar a traição e a tentar, durante anos de dedicação, recuperá-la, através da criação de uma nova pele biogenética. As seguidas tragédias deflagram nele a loucura e a busca da vingança. E esta, como se sabe, é um processo de mão dupla.
A ciência surge como experiência das loucuras humanas. Almodóvar não é bobo e exibe, no desenrolar do filme, críticas aos homens da medicina (através da operação de mudança de sexo) e da ciência (a manipulação da biogenética como ato pessoal) e a exigência do cumprimento da ética que rege a ambos. "A Pele que Habito" pode ser visto como uma exposição dessa falta de ética, embora não tenha essa intenção.
O cineasta também não deixa escapar outros temas recorrentes em sua filmografia: os segredos de família, as transgressões, as revelações escandalosas quando não escabrosas. E, fiel ao seu estilo de fazer cinema, molda-o ao "kitsch", as extravagâncias e o exagero, como se sabe, característicos de suas criações. "A Pele que Habito" respira e exala o ar do bom e legítimo Filme B.
Com todos esses elementos em "A Pele que Habito", percebe-se que a Almodóvar interessa manipular esses ingredientes assim como o personagem central da trama, Robert Ledgard, manipula a biogenética e o seu cérebro louco o manipula. Loucura, também, do espectador, ao não abandonar o filme diante de tantos absurdos. Absurdos sim, incoerências, não.
FONTE: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1068679
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