A mãe que gerava loucos: Em "A Pele que Habito", o cineasta espanhol Pedro Almodóvar radicaliza o absurdo e o "kitsch" em uma história que perpassa vários gêneros e temas

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Ao término da exibição de "A Pele que Habito", procurando um sentido para o filme, uma frase me veio à cabeça: "deu a louca no Pedro Almodóvar!". E vem a pergunta: O que é, afinal, "A Pele que Habito"?

No filme, Antonio Banderas interpreta Robert Ledgard, um cirurgião plástico especialista em transplante de face. Desde que sua mulher saiu queimada de um acidente de carro, dedica-se a criar, através de experiências biogenéticas, uma nova pele imune a todas as formas de agressão, a qual venha a substituir a humana. Marília (Marisa Paredes), que cuidou dele desde o nascimento, o ajuda em tudo. Para piorar o quadro, Ledgard é atingido por outra tragédia: sua filha é violentada em uma festa.


À primeira vista, "A Pele que Habito" parece um filme sem identidade ao trafegar por vários gêneros - suspense, horror, policial, ficção científica, drama, mistério. Ao mesmo tempo, um dos temas contidos na história é justamente este, a identidade. A identidade do filme como gênero específico, relacionada ao tema da identidade, cerne da história.
Puxando essas duas temáticas, o cineasta adentra ao campo que lhe interessa: a relação masculino/feminino, um de seus temas recorrentes. A sexualidade, o homem-mulher, a mulher-homem, a fusão de ambos em apenas um, bate em Almodóvar e ele a bate em seus filmes como uma marca registrada. Algo a ver com sua vida pessoal? Provavelmente, sim.
Mas, em "A Pele que Habito", Almodóvar vai além e tenta mostrar, cientificamente, como o homem pode ser mulher e a mulher pode ser homem. Ou seja, ambos como um só. A medicina e a ciência estão aí para isso.
Vera é essa prova. Um dos momentos em que isso fica evidente é a cena em que Banderas e Elena Anaya estão na cama e ela, incomodada com a penetração, leva-o a dizer "vamos por trás".

Transexualidade, homossexualidade? Homem ou Mulher? Não. Apenas humanos com sexualidade, diz o cineasta.

Sexo:

É essa relação identidade-sexualidade o principal tema de "A Pele que Habito", o qual também é repassado aos demais personagens. Cristina (Barbara Lennie), empregada da loja da mãe (Suzy Sanchez) de Vicente (Jan Cornet), diz ter uma namorada; Zeca (Roberto Álamo), o filho de Marília, que entra na história para levar o espectador a uma falsa evidência, é um pervertido sexual.

Almodóvar faz o enredo de "A Pele que Habito" - o qual tem por base o romance "Tarântula" (Editora Record, 160 páginas) do francês Thierry Jonquet (1954-2009) -, trafegar pela loucura. A loucura da vida, a loucura da ciência, a loucura das relações, a loucura dos outros, a loucura gerada pela mãe. A mãe, Marília, geradora de filhos loucos.
É essa loucura, a qual provavelmente já estaria em processamento na mente de Norma (Blanca Suarez), a filha de Robert Ledgard, que a leva a pensar que ele a violentou. Até as obras de artes remetem à loucura do processo de criação com suas formas irreais.

Outros temas se desenrolam igualmente pelo filme, como o amor e a vingança. Ledgard, o cientista, as condensa em si. O amor pela esposa leva-o a perdoar a traição e a tentar, durante anos de dedicação, recuperá-la, através da criação de uma nova pele biogenética. As seguidas tragédias deflagram nele a loucura e a busca da vingança. E esta, como se sabe, é um processo de mão dupla.
A ciência surge como experiência das loucuras humanas. Almodóvar não é bobo e exibe, no desenrolar do filme, críticas aos homens da medicina (através da operação de mudança de sexo) e da ciência (a manipulação da biogenética como ato pessoal) e a exigência do cumprimento da ética que rege a ambos. "A Pele que Habito" pode ser visto como uma exposição dessa falta de ética, embora não tenha essa intenção.
O cineasta também não deixa escapar outros temas recorrentes em sua filmografia: os segredos de família, as transgressões, as revelações escandalosas quando não escabrosas. E, fiel ao seu estilo de fazer cinema, molda-o ao "kitsch", as extravagâncias e o exagero, como se sabe, característicos de suas criações. "A Pele que Habito" respira e exala o ar do bom e legítimo Filme B.

Com todos esses elementos em "A Pele que Habito", percebe-se que a Almodóvar interessa manipular esses ingredientes assim como o personagem central da trama, Robert Ledgard, manipula a biogenética e o seu cérebro louco o manipula. Loucura, também, do espectador, ao não abandonar o filme diante de tantos absurdos. Absurdos sim, incoerências, não.

FONTE: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1068679

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