Gilles de Rais não foi o primeiro serial killer. Mas é o primeiro serial killer famoso.
Sua fama é facilmente explicável. Na França do século XV, ele era simplesmente o homem mais rico do país – talvez, da Europa. Sua história, portanto, se alastrou rapidamente – mas há um prejuízo nisto: muito do que se diz sobre Gilles de Rais pode ser lenda.
Gilles de Montmorency-Laval nasceu em 1404, em uma família de nobres. Ficaria conhecido como Gilles de Rais (ou de Retz) porque se tornaria o barão desta localidade. Gilles de Rais também tinha o apelido de Barba Azul, porque tinha os pêlos faciais bastante escuros.
Atualmente, Barba Azul é o apelido dado a um homem que assassine, em série, suas namoradas ou esposas (frequentemente em busca de ganhos materiais). Um Barba Azul é a versão masculina da Viúva Negra, portanto. Mas Gilles de Rais matava crianças. Por que, então, seu apelido atualmente nomeia os assassinos de esposas? Porque, tempos após a morte de Gilles, foi escrita uma história fictícia, possivelmente baseada em lendas populares, nomeada exatamente Barba Azul, em que o personagem principal tinha este apelido. Na história quarta esposa de Barba Azul era proibida de entrar em uma sala. Quando conseguiu entrar, lá encontrou o corpo das três anteriores. Trata-se de um conto, do final do século XVII, do conhecido Charles Perrault – assustador, certamente, para um livro que foi escrito para o público infantil, mas que tem um final feliz após esta cena macabra…
Mas voltemos a Gilles de Rais…
Seus pais morreram quando ainda era muito jovem, e Gilles foi criado com o avô materno. Gilles lia muito e um dos seus ídolos era Calígula, impiedoso imperador romano – que, segundo dizem algumas fontes, matava por diversão.
Aos 14 anos, o avô de Gilles o proclamou cavalheiro.
No ano seguinte, Gilles fez sua primeira vítima.
Convidou um garoto para brincar de duelo – e o matou, com sua espada. Gilles era nobre e o garoto era pobre. Nada aconteceu a Gilles de Rais.
Aos 16 anos, Gilles casou-se com uma herdeira rica e da junção dos patrimônios viria a sua fortuna. O casal teria uma filha.
Gilles entrou para a carreira militar (por isto, às vezes é chamado também de O Marechal das Trevas). Na sua primeira batalha, Gilles não tinha completado nem 18 anos. Gilles lutaria, ainda, ao lado de Joana D’arc, contra invasores ingleses, na Guerra dos Cem Anos.
Fora os que mataria como serial killer, nestas batalhas provavelmente Gilles de Rais matou uma quantidade razoável de pessoas…
Gilles de Rais era tão importante que, ainda novo, quando Carlos VII foi ser coroado rei, Gilles foi um dos poucos a ter uma lugar de honra na cerimônia.
Mas logo Gilles de Rais se afastou da vida pública, ficando mais recluso em suas imensas fazendas, já separado de sua mulher.
Gilles começou a gastar sua fortuna, sem pudor, com toda sorte de extravagâncias, como a caríssima produção de uma peça teatral. Outro gasto do devoto Gilles foi com a construção de uma catedral! Gilles chegou a ser impedido, por sua família, de continuar a vender seus bens.
Mas Gilles de Rais, em seus castelos, também começou a se dedicar a atividades mais sombrias.
Gilles começou a matar. Suas vítimas eram crianças dos dois sexos, que, antes de serem mortas, eram molestadas e bastante agredidas. Às vezes eram dependuradas em ganchos, sodomizadas, retiradas, reconfortadas por Gilles, e então eram dependuradas novamente etc.
Algumas crianças, após mortas, tinhas as vísceras retiradas – e, sobre estas, Gilles se masturbava.
Uma das primeiras vítimas seria um belo garoto chamado Etienne Corrillaut, também conhecido como Poitou. Mas, antes de ser morto, um criado de Gilles sugeriu que ele fosse poupado e transformado em pajem, isto é, um auxiliar para serviços gerais. Poitou acabaria por se juntar a Gilles em suas práticas homicidas, mais tarde.
O sadismo de Gilles de Rais, em algum momento, misturou-se com o desejo de recuperar sua riqueza, e então ele enveredou na magia negra. No final da década de 1430, Gilles de Rais e um padre italiano começaram a praticar rituais em que o sangue de crianças era misturado a ferro e chumbo, na esperança de que daí nascesse ouro.
Em 1440, após um conflito com um padre, a Igreja começou a fazer várias acusações contra Gilles.
Gilles de Rais e alguns supostos cúmplices foram torturados – e “confessaram” inúmeros crimes.
Mas quantas crianças Gilles de Rais realmente matou, afinal? Umas 200 crianças, dizem as fontes mais otimistas. Outros acreditam que este número pode chegar a 800! Fato concreto é que, em uma torre, em uma de suas propriedades, foram encontrados restos desmembrados de 40 a 50 crianças.
Muitas crianças possivelmente tinham os restos queimados, por isto nunca foram encontradas.
Suas terras foram confiscadas pela Igreja.
Gilles de Rais e mais dois homens, incluindo Poitou, foram então condenados e enforcados, ainda em 1440 – Gilles tinha apenas 36 anos.
Após morto, seu corpo foi queimado.
Um caso muito difícil de ser interpretado, por alguns motivos, como a distância histórica. Mas o maior complicador é que sua confissão pode não ter sido exatamente uma confissão, mas o que talvez foi obrigado a dizer aos torturadores católicos. Quantas crianças Gilles matou, então? A resposta menos incerta: “muitas”.
Por que Gilles matou estas crianças? Talvez seja uma pergunta mais interessante.
O sadismo, o prazer de matar, são explicações recorrentes quando falamos de um serial killer que age sozinho.
No caso dos que agem em conjunto, a explicação pode ser bem diferente. Parece correta a acusação de que Gilles não agia sozinho. No mínimo, existiram cúmplices ou auxiliares. Não há como termos certeza se sempre agiu em dupla, ou grupo, mas, aparentemente, boa parte do tempo foi assim. Qual era o objetivo do grupo comandado por Gilles?
Várias hipóteses já foram feitas. Uma, inclusive, inverte toda a história: o objetivo do grupo era puramente sádico e a história da Alquimia é que foi uma invenção de última hora, quando capturados, para tentar “justificar” os atos.
Outra tese, mais romântica, postula que Gilles teria se apaixonado por Joana D’arc e, após a morte desta, queimada, ele teria se deprimido – e que tudo isto tem ligação com o fato de ter se tornado um assassino de crianças…
Uma teoria acredita em um objetivo ritualístico, mas relacionado ao culto de Diana, um culto de fertilidade…
O que todas estas hipóteses têm em comum é o desprezo às explicações mais plausíveis.
Atentemos-nos aos fatos. O homem mais rico da França vê sua fortuna ir embora rapidamente, com seus caprichos. Estamos ainda numa época de pouca racionalidade, de muita crença em magia e feitiçaria, em fantasias como: “Se o sangue de crianças for misturado ao chumbo, o chumbo pode virar ouro.” O ex-mais-rico do país não desejaria recuperar sua fortuna? É claro que nem todos os decadentes fariam o que Gilles fez. Aqui, sim, entram fatores psicológicos importantes: a extrema frieza e até o sadismo. E de onde vieram tais características?
Analisando a vida de Gilles de Rais, encontramos alguns fatos importantes, como a morte precoce dos pais – mas, na Idade Média, vivia-se mesmo bem menos que atualmente, ou seja, isto era relativamente comum. O que mais temos de drástico na vida de Gilles até que mate o primeiro garoto, no duelo? Nada que seja conhecido.
O que é pouco lembrado, nas análises feitas sobre o caso, é que a própria infância, na época, era um período duro. Aliás, nem mesmo existia bem o conceito de infância. Tão logo podiam, as crianças eram colocadas para trabalhar, em fazendas ou oficinas. Ou treinadas para a vida nobre e militar, como o pequeno Gilles.
Além disto, havia também o clima de opressão e terror instaurado pela Igreja Católica.
Este era o clima em que Gilles nasceu e foi criado.
Mas de forma alguma isto é suficiente para tornar alguém um psicopata. Frio, bruto, talvez. Psicopata, não.
Talvez o fato mais marcante para a consolidação de sua frieza tenha sido as guerras que liderou.
Gilles era bravo, destemido, e, segundo se conta, enquanto alguns fugiam, no calor da batalha, ele mais nela mergulhava. A guerra é uma situação extremamente perturbadora para muitos dos que dela participam. Trauma de guerra é um diagnóstico epidêmico no durante e no depois das guerras, mesmo das modernas. E hoje matamos com armas de fogo, à distância. A pólvora só foi “domesticada”, em armas pequenas, séculos depois de Gilles. Na época de Gilles, portanto, a guerra era corpo a corpo. Isto é, era necessário matar, literalmente, com as próprias mãos.
Com o dia-a-dia da guerra, o sangue já frio de Gilles pode ter congelado de vez. Aprendeu a matar e não sentir nada. Acostumou-se a isto, talvez sentiu falta disto.
A isto somemos a desilusão matrimonial, a derrocada financeira, as crenças alquímicas e a “certeza” da impunidade (por ser poderoso) – e temos um psicopata pronto para matar.
SUGESTÃO: Livro: “O Marechal das Trevas: a verdadeira história do Barba Azul” – Juan Antonio Cebrián; editora Planeta.
Apesar do título, defende a teoria pouco aceita de que Gilles de Rais foi apaixonado por Joana D’arc e que isto tem alguma relação com seus crimes.
FONTE: O Serial Killer
No dia 19 de setembro, festa da Exaltação da Verdadeira Cruz, do ano da graça de 1440, tem começo um dos mais emblemáticos processos dos estertores da Idade Média. O acusado é Gilles de Rais, homem temente a Deus, primeiro barão da Bretanha, marechal de França, grande feudatário, companheiro de armas de Joana d’Arc em uma guerra libertadora.
Jean de Malestroit, bispo de Nantes, cita o marechal de França para que compareça a seu tribunal.
Formalmente, Gilles de Rais é acusado de crimes contra a fé: pactos demoníacos sob a alçada da heresia, sodomia de caráter sacrílego, violação de privilégios eclesiásticos. Há uma outra acusação, esta de caráter secundário: o rapto e assassinato de 140 crianças. (Estes são os termos do processo: historiadores falam de algo em torno a 600 vítimas).
No libelo de acusação, de 15 páginas e 49 artigos, os crimes só são arrolados no 27º item.
Gilles de Rais tem na época 34 anos. Dez dias antes de sua prisão, João V, duque da Bretanha fez, diante de um notário, a doação das terras, castelos e fortalezas de Gilles – após a sua morte – a seu filho, visto que ele próprio não podia herdar de um vassalo.
Antes do julgamento, Gilles já está condenado.
Cinco dias antes, Gilles recebera o pior castigo que pode golpear um católico: havia sido excomungado.
Aceita tranquilamente a ideia de morte, diz o historiador Claude Bertin. Mas não consegue suportar a expulsão da Igreja, ficar à margem de Deus.
Basicamente, o tribunal de Nantes o acusa de herege, reincidente, apóstata, evocador de demônios, de ter ofendido a Deus, de ter pecado contra os mandamentos do Decálogo, os ritos e observâncias da Santa Igreja e, por último, de ter praticado a sodomia com crianças antes de as matar e queimar. Gilles chora e pede perdão quando se sabe excomungado de sua Igreja. Quanto aos assassinatos, ele os confessa sem maiores remorsos:
“Não procurei senão o meu deleite carnal. Por que razão, nesta hora em que já estou desligado de tudo quanto é terrestre vos ocultaria que ao praticar sodomia, ao matar e reduzir a pó tantas belas crianças, não fiz mais do que procurar a alegria que me davam os seus corpos quentes primeiro, depois gelados entre meus braços? Por que razão vos ocultaria eu que essa alegria se prolongava ainda quando, com as minhas mãos esquartejava, como animais no matadouro, aqueles que acabava de amar, que sentir o odor de sua carne queimada me lançava numa forma de desmaio?”
Suas vítimas são sempre crianças, de ambos os sexos:
“Eu os estrangulava. Quando eles desfaleciam, praticava neles o vício da sodomia. Quando estavam mortos, beijava nos lábios alguns dos rostos mais bonitos”.
Após uma extensa e minuciosa confissão de seus crimes, o marechal de França recebe um aceno de esperança do bispo de Nantes: “Queres agora, abominando teus erros, tuas evocações e teus outros crimes, que te fizeram sair da fé católica, ser reincorporado na Igreja, tua Mãe, entregando-te de novo a ela?”
Gilles, de joelhos, mal consegue acreditar no que ouve. Chora e suspira. Ante tais demonstrações de arrependimento, os juizes eclesiásticos decidem readmitir na Igreja o marechal, restituindo-lhe todos os direitos que perdera com a heresia. Sempre de joelhos, Gilles pede humildemente a anulação de sua excomunhão. “Pelo amor de Deus”, Jean de Malestroit, o bispo de Nantes, absolve Gilles de todos seus crimes, reintegra o marechal na congregação dos fiéis católicos e o admite na participação dos sacramentos.
O trabalho do tribunal eclesiástico está encerrado: “Vai em paz, monsenhor de Rais. Daqui pela frente, a Igreja nada mais pode fazer por ti nem contra ti. Te abandona ao braço secular”.
Gilles escapou à excomunhão eterna, a mais terrível das penas espirituais para um católico. O braço secular – o tribunal civil – em sua complacência, após torturá-lo, o condena à forca e à fogueira. Mas Gilles já está confortado com a absolvição religiosa. A forca é o de menos. A morte o atrai mais do que o aterroriza – escreve Bertin – pois seu caráter exemplar lhe permitirá viver eternamente.
Boa parte da multidão que acompanha o processo pede misericórdia para Gilles de Rais. Dada sua condição de nobre, foi poupado da fogueira. Sua tumba foi profanada em 1793. No lugar de seu suplício, ergueu-se mais tarde um calvário, que logo se tornou ponto de peregrinação de mulheres grávidas, ou daquelas que, tendo parido, desejavam ter leite abundante. A cruz de granito que ornava o calvário desapareceu em 1744. Mas ainda no século passado, ali se cultuava a Boa Virgem de Cria-Leite.
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