APONTAMENTOS SOBRE ALQUIMIA

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Breve Histórico

Alquimia, palavra de origem egípcia. O Egito cresceu com a crença de que existia poderes mágicos em fluxos e ligas; e a arte de manipular os metais, bem como o conhecimento da sua química e dos poderes mágicos eram descritos pelo nome de "Quemeia". O que quer dizer, "preparação do minério preto" considerado o princípio ativo da transmutação dos metais. A esse nome juntou os árabes o artigo al, e assim obtivemos o nome Al-Quemeia, ou Alquimia.

A história da alquimia é considerada como início a partir dos primeiros registros encontrados. M. L. von Franz, através de pesquisa na biblioteca do Vaticano, conseguiu rastrear até início do séc. I a C. Na verdade a alquimia possui origens bem mais arcaicas, porém, não se tem dados escritos que comprovem sua existência, porque era procedimento técnico usado na magia religiosa de sacerdotes egípcios; eram segredos guardados hermeticamente que eram passados por via oral para os iniciados, e quem revelasse tais segredos era tremendamente castigado. Os mistérios sagrados foram passados para os sacerdotes através de THOTH (o mesmo Hermes grego) autor da famosa Tábua de Esmeralda que narra princípios do 'elixir da longevidade'. Existem várias versões desta Tábua que foi escondida sob dois pilares, os papiros mais antigos que falam sobre ela datam da XII dinastia (1991-1783 a.C.). Alguns escritores colocam Hermes e Enoch (o sétimo depois de Adão) como sendo a mesma pessoa; a narrativa da vida deles é muito semelhante — inclusive por terem escondido segredos sob dois pilares.

A Arábia é tida como o berço da Alquimia, porém, sua origem decorrem de dois países: Grécia (com o deus Hermes), onde a alquimia possuía um caráter teórico, a filosofia aplicada à disciplina e ao entendimento do regimento do cosmo; e Egito (com o deus Thoth), onde a alquimia possuía alto caráter técnico (químico) aplicada à religião. Os árabes deram consistência a esta disciplina; através das traduções de manuscritos souberam reunir essas duas tendências. A data estimada situa-se entre o século I a.C. e o III d.C..

ALGUNS ALQUIMISTAS/HERMÉTICOS

Hermes Trimegistro (Hermes = o interprete, Trimegistro = 3 megas = 3 vezes grande, ou o que possui os 3 reinos de sabedoria: mineral, vegetal e animal) — É atribuída sua existência no ano de 1900 aC.; Hermes é o mesmo Thoth dos egípcios e sua existência acompanha a vida religiosa do Egito.

Enoch (que significa Inicie, ou, Iniciador) — Foi um rei hebreu que construiu um santuário subterrâneo onde colocou sob 2 pilares, segredos (princípios da Alquimia) que seriam uma herança para o desenvolvimento da humanidade. Este é o mesmo mencionado nos Gêneses, o sétimo da geração de Adão, sua vida revela riquezas de detalhes na semelhança com Thoth.

Jetro — Sacerdote etíope, foi sogro de Moisés no exílio.

Moisés (1705-1594 a. C.) — Teve a iniciação egípcia e também teve um aprendizado etíope em seu exílio.

Salomão — supõe-se que tenha nascido 1033 anos antes de Cristo, suas obras alquímicas mais conhecidas são: "A Clavícula de Salomão" e "Sobre a Pedra dos Filósofos".

Pitágoras (590-470) — O sábio filósofo, levou 22 anos para adquirir o título de sacerdote egípcio. Já preste a regressar à Grécia para exercer seu ministério, o Egito foi conquistado e juntamente com alguns sacerdotes egípcios foi levado para a Babilônia. Lá ficou cativo por 12 anos, onde se aprofundou na magia que ali se difundia.

Cleópatra — Descendente de faraó foi também iniciada. Dizem que por sua magia conseguia enganar os dominadores romanos.

Demócrito (séc. V a.C.) — Era filho de nobre da Persa e foi iniciado nos mistérios egípcios; morreu com 109 anos.

Dioscórides — Médico grego, viveu cerca de 50 anos a.C.

Sacca (séc. II) — Fundou a escola Neoplatonica de
Alexandria.

Alexandre de Afrodisisas (séc. II) — Inventou o alambique, destilou água marinha. Ocultista que não desfrutou grande fama. Viveu entre o séc. II e III.

Zózimo (séc. III) — Viveu a maior parte de sua vida em Alexandria, afirmava que o reino egípcio é
subsidiado pela arte de fazer ouro, um dos alquimistas mais respeitados, conhecido como A Coroa dos Filósofos.

Bolina (séc. III) — Conhecido como o Sábio.

Jaber abu Musa Giafar (séc. VII) — Árabe da Mesopotâmia, conhecido por Magister Magistrorim.

Khalid (séc. VII) — Rei árabe que iniciou Morienus nos segredos da Alquimia.

Morienus (séc. VII) — Morreu como um ermitão cristão nas montanhas perto de Jerusalém. Ele foi conhecido por enviar grandes doações anuais em ouro para a Igreja Cristã.

Geber (séc. VIII) — Médico iniciado na fraternidade Sufi (representa o sistema ascético de misticismo islâmico que acentua contemplação como um veículo para união extática com o Divino).

Avicena (980-1087) — Médicos, também, iniciado na fraternidade de Sufi. Era chamado O Príncipe dos Médicos.

Calid (séc. X) — Sultão do Egito.

Albertus Magnus (1193-1280) — Monge dominicano.

Guido Bonatti de Forlì (1223-1296).

Roger Bacon (1214-1294) — Chamado doctor Mirabilis, era um monge franciscano.

São Tomás
de Aquino
(1225-1274) — Monge dominicano conhecido como Doutor Angélico. Nasceu no Castelo de Roccasecca, arredores de Aquino, no norte do reino de Nápoles. Estudou com Albertus Magnus, por quem teria sido iniciado no conhecimento de alquimia. Muitos estudiosos da obra de Tomás de Aquino não acreditam, que ele tenha escrito livros de alquimia, por ser esta arte considerada herética. No momento de sua morte, Albertus Magnus, que se encontrava em Colônia, anuncia o fato aos outros frades e chora.

Arnald de Villanova (1245-1313) — Foi médico, astrólogo, teólogo e diplomata.

Raimundo Lullo (1234-1315) — Se aliou durante um tempo aos franciscanos, foi iniciado por Arnold de Villanova.

Afonso X (1252-1284) — Rei de Castela, chamado O Sábio.

Papa João XXII (1316-1334) — foi acusado de ser perito alquímico e é autor de significante trabalho sobre transmutação. Conseguiu fortuna, de forma misteriosa, que beneficiou a igreja.

Nicholas Flamel de Pontoise (1330-1417) — Misteriosamente arrumava fortunas para construir hospitais e restabelecer igrejas parisienses.

Rosenkreutz — Em 1480 restaura algumas fraternidades herméticas.

Paracelso (1493-1541) — Nome original: Aurélio Filipe Teofrastro Bombast. Nasceu na Suíça, viajante solitário e nômade que desprezava o mundo do poder, do dogma e dos valores estabelecidos. Morreu misteriosamente na Áustria, sua tumba foi encontrada vazia anos depois. Seu epigrama "A Magia é uma Grande Sabedoria Oculta — A Razão é uma Grande Loucura Pública".

Maximilino (1527-1576) — Imperador da Alemanha.

Giovanni Battista della Porta (1540-1615) — Conhecido como Magus Veneficus.

Irineu Filalet (1612-1680).

Conde de S. Germano (1698-1784) — Voltaire descreveu St. Germain como "o homem que não morre". Em janeiro de 1761 foi condenado à morte por prática de heresia, espagiria, e astrologia. Sendo aprisionado, fugiu miraculosamente, andou vagando por diversos lugares, foi ministro e conselheiro do rei da Dinamarca.

Borri — Nasceu em maio de 1627, jesuíta e filósofo hermético italiano. Frequentou os laboratórios reais, numa projeção por meio de líquidos com o qual encheu duas ânforas, que fechou com 2 chaves, uma dando à rainha e a outra conservando-a com ele, pois o resultado devia ser observado depois de certo tempo. Depois de muito tempo, a rainha, vendo que o alquimista não voltava, zangou-se por ter sido ridicularizada; fez abrir a caixa e apoderou-se dos vasos e constatou em um havia se transformado em ouro e o outro em prata; e os 2 metais eram perfeitos em suas respectivas qualidades.

Filofotes (1869-1894) — Nome verdadeiro Alberto Poisson.

Doutor Papus — Nasceu em 1838 recebendo o nome de Gerardo Enxausse.

Marquês de Saint-Yves d'Alveydre — Nascido em 1844.

Newton — Fez tradução da Tábua Esmeraldina; G. W. Leibniz, como também Robert Boyle, o pai da química moderna, aceitaram a teoria da transmutação Alquimia.

Carl Gustave Jung (1875-1961) — Utilizou dos princípios da alquimia no processo de análise.

Marie-Luise von Franz — Seguiu os passos de
Jung, ele via nela uma alquimista nata. Autora dos livros "Alquimia" e "Alquimia e Imaginação Ativa"; além de ser colaboradora de Jung em vários de seus livros de alquimia. Morreu em janeiro 1998.

ALQUIMIA E PSICOLOGIA

Uma pequena introdução no vasto campo entre o céu e o inferno, ou, entre o inconsciente e a consciência.

Popularmente a alquimia é conhecida como a ficção da transformação de um vil metal em ouro e na busca dessa realização deu-se origem à Química; porém é desconhecida sua utilidade prática que não implica, necessariamente, na transmutação em ouro. Este é apenas um aspeto da alquimia ocidental, poderemos entender melhor a abrangência de sua riqueza através a Alquimia oriental, difundida pelo Taoísmo na busca do Elixir da longa vida: o caminho para o encontro com o Tao é o caminho pelo qual o homem pode chegar à sua integridade, à concordância entre seu interior e o seu exterior — a coincidentia oppositorum do micro com o macrocosmo; em termos da alquimia taoísta implica na "moldagem da alma-yin a fim de transformá-la em alma-yang", isto é, apagar a luz da consciência, que originalmente faz parte da natureza yang, e que foi turvada pelas cobiças e vícios de nossas idiossincrasias —, alma-yin, que leva a energia vital a se transbordar e se perder. "Quando assim esbanjado, o homem adoece; quando enfraquece, o homem envelhece; e, quando se esgota, sobrevém a morte". Por isso é importante manter em harmonia e equilíbrio e moldar a alma yin mediante o exercício da respiração uniforme, tranquila e em meditação não apenas para submeter à consciência irrequieta da natureza yin a um certo controle, porém muito mais para colher a energia vital ao oceano de ch'i, a profundidade do inconsciente onde, mediante essa concentração de todas as energias vitais, é ativado o eu, a essência mais íntima do homem (Mokusen Miyuki em A Doutrina da Flor de Ouro).

Devemos méritos a C.G. Jung pela utilização da Alquimia na prática psicológica. Da mesma forma que os antigos alquimistas se colocavam a serviço da natureza para apressar seu processo de evolução, na análise junguiana, não só possui este objetivo, como também, percebe na alquimia todo um processo que acompanha o desenvolvimento psíquico — Jung denomina Individuação.

Se fizermos um rastreamento da Alquimia, poderemos perceber, claramente, a ligação desta disciplina com a psicologia. Jung declarou que, fundamentada na filosofia natural da Idade Média, a alquimia formava, de um lado, a ponte em relação ao passado, com o gnosticismo, e, do outro, ao futuro, com a moderna psicologia profunda [na alquimia, Jung constatou um dos mais importantes ramos do que se tem por vezes chamado de Tradição Pansófica ou a herança de sabedoria originária de fontes gnósticas, herméticas e neoplatônicas, através de numerosas manifestações posteriores até a época contemporânea].

O alquimista com a finalidade da realização da Grande Obra, se estendia por três princípios de dedicação:
- Primeiro ao mundo intelectual, dizendo ao homem: "levanta-te até deus por meio do êxtase e da sublime comunhão que existe entre a natureza e o altruísmo";
Segundo ao mundo
astral ou psíquico: o aprendiz devia conquistar a santidade dominando os sentidos, e entrar no mundo astral, libertando a alma (o duplo sidéreo) das cadeias corpóreas; e
Por terceiro ao mundo físico, mediante a transmutação dos corpos e dos metais, operada com a síntese química.

A capacidade de produzir o ouro perfeito, o alquimista deveria saber produzir o ouro filosófico e o ouro astral. Para se ter uma ideia do difícil aprendizado, Pitágoras em sua iniciação no Egito levou cerca de 20 anos.

São vastos os benefícios trazidos pela alquimia para a humanidade; ela ocorre, muitas vezes, de maneira inconsciente, embora quando se age conscientemente com este pressuposto teórico, garanto que o objeto produzido se aproximará da qualidade do ouro; quem negaria que o Fausto de Goethe não possuía tamanha qualidade? Não poderíamos dizer que se trata duma obra literária transmutada em ouro? Esta obra não teria tamanho valor se não fosse seus estudos de alquimia (influência de seu envolvimento afetivo com sua encantadora "bruxa"). Goethe levou cerca de 40 anos na elaboração dessa "grande obra". Para atingir tamanha amplitude poética e profundidade simbólica, necessitou do autor o momento certo de sua maturidade. A transmutação da matéria acompanha a elevação espiritual do alquimista, necessita primeiramente de uma transformação psíquica para daí ocorrer a devida mudança na obra.

Jung diz:
"... a alquimia representa para nós um verdadeiro depósito do tesouro dos símbolos, cujo conhecimento é extremamente proveitoso para a compreensão dos processos neuróticos e psicóticos." (Mysterium Coniunctionis, pag. 17)

Independente do grau e qualificação da patologia psíquica apresentada; um aspecto que nivela o indivíduo "normal" do doente psíquico, trata-se do fato de seguir na vida sem perceber os sintomas de comportamentos e sem conscientização do significado simbólico daquilo que a vida nos impõe.

Desta forma o processo de viver dependerá da conjuntura na qual o instinto se manifestará e é este agir instintivo que caracterizará o perfil animal que distancia o indivíduo da condição humana saudável. Em termos alquímicos essa postura animal corresponde ao metal chumbo que no opus se transformará em ouro — semelhante a Deus.

Não são todos que possuem a predisposição de ver o que está por de trás daquilo que se apresenta, quanto mais quando se lida com símbolos alquímicos — os alquimistas não passavam seus segredos a qualquer discípulo, o conhecimento era transmitido, concomitante, à medida da evolução espiritual alcançada por ele. Para o bom entendedor dos aspectos simbólicos (o alquimista em potencial), consegue ver o "espírito da matéria".

O trabalho do alquimista encontra-se em unir os opostos e o princípio disso está no discernimento do espírito que cada matéria possui, pois cada matéria possui seu par e é na união dos opostos (sem deixar de lado o grande amor avassalador da "alma parceira") é que se alcança o "casamento alquímico". Com esta capacidade é que se discrimina o grau de evolução do alquimista em potencial, inserido em várias áreas da vida: nas artes, astrologia, medicina, psicologia, filosofia, ecologia, na simples vida cotidiana etc.

O conhecimento da alquimia permite o agir duma maneira menos alienante e mais criativa, possibilita o entendimento do processo da vida. Talvez Nietzsche não teria sofrido tanto, se tivesse um conhecimento de alquimia, pois poderia conscientizar-se que seu "super homem" não passou de uma projeção psíquica; ele, incomodado pela massificação da religião, desceu em seu mundo atônico e de lá emergiu aos céus com seu "super homem" e com ele se identificou — neste momento, teve a experiência de uma vivência arquetípica. É comum nos momentos de grande insatisfação, deparar com nossa Sombra que é oculta e/ou reprimida pela consciência; ela é uma verdade preciosa que, em determinado momento, vem à luz, porém, não pode reinar, ela é importante, apenas, para ser assimilada. Na alquimia, este estado é denominado de "coniunctiones" e dela surge o novo nascimento; a identificação de Nietzsche não permitiu esse passo, foi tomado pelo que os gregos chamam de hybris — o querer possuir o que pertence aos deuses — teve uma inflação egoica.

Italo J.Furletti.


APONTAMENTOS SOBRE ALQUIMIA

Os estudos junguianos nos permitem, atualmente, uma maior compreensão da realidade. Assim sendo, "os escritos religiosos e literários, assim como as tentativas de protociências como a alquimia, a astrologia e a filosofia pré-socrática, podem ser compreendidos, atualmente, como a fenomenologia da psique objetiva".

O que apresentaremos a seguir são apontamentos retirados da obra "ANATOMIA DA PSIQUE", de EDWARD F. EDINGER, EDITORA Cultrix, São Paulo,1995. Fica, portanto, o convite para que o interessado que utiliza estes apontamentos, não deixe de consultar, dentro do possível, a fonte primária que, neste caso, é a utilíssima obra de EDINGER, supra citada.

EDINGER se propõe, continuando os estudos de JUNG, a "demonstrar que o simbolismo alquímico é, em grande parte, um produto da psique inconsciente". O que o alquimista fazia era projetar na matéria o que ocorria na psique. "... sua experiência, na realidade, era do seu próprio inconsciente". As imagens alquímicas descrevem o processo da psicoterapia profunda que é idêntico àquilo que Jung denomina individuação. O que torna a alquimia tão valiosa para a psicoterapia é o fato de suas imagens concretizarem as experiências de transformação por que passamos na psicoterapia. Tomada como um todo, a alquimia oferece uma espécie de anatomia da individuação. Suas imagens serão mais significativas para aqueles que tiverem tido uma experiência pessoal do inconsciente.

A OPUS

A ideia de OPUS é a imagem central da alquimia.
O alquimista via-se como alguém comprometido com um trabalho sagrado: a busca do valor supremo e essencial. Diz um texto: "Todos os que buscamos seguir essa ARTE não podemos atingir resultados úteis senão com uma alma paciente, laboriosa e solícita, com uma coragem perseverante e com uma dedicação contínua".

Esses são requisitos da função do EGO. A paciência é fundamental. Coragem significa disposição para enfrentar a ansiedade.

Uma característica proeminente da OPUS é o fato de ser considerada um trabalho sagrado que requer uma atitude religiosa. Isto significa que devemos estar orientados para o SI-MESMO (SELF), e não para o EGO.

Outro aspecto do OPUS é o fato dela ser um trabalho amplamente individual. Os alquimistas eram decididamente solitários. A OPUS não pode ser realizada por um grupo ou comitê.

Uma outra característica: refere-se ao seu caráter secreto. Os alquimistas consideravam-se guardiães de um mistério vedado aos que não tinham valor. Da mesma forma que os Mistérios Eleusinos, o segredo alquímico tinha sua divulgação proibida.

A PRIMA MATERIA

O termo PRIMA MATERIA tem uma longa história, que remonta aos filósofos pré-socráticos. Esses antigos pensadores estavam presos a uma ideia a priori, uma imagem arquetípica que lhes dizia que o mundo é gerado de uma matéria única original, a chamada primeira matéria. Embora divergissem no tocante à identificação dessa matéria primordial, concordavam com sua existência.

Para Tales de Mileto era a ÁGUA; para Anaximandro era o "ilimitado", o ÁPEI RON, Anaxímenes dava-lhe o nome de "AR"; e Heráclito a considerava "FOGO".

Essa ideia de uma substância única original não tem fonte empírica no mundo exterior. Exteriormente, o mundo é sem dúvida uma multiplicidade. Portanto a ideia deve ser a projeção de um fato psíquico. De acordo com o pensamento da época, imaginava-se que a primeira matéria passara por um processo de diferenciação por meio do qual fora decomposta nos quatro elementos: TERRA, AR, FOGO e ÁGUA. Pensava-se que esses quatro elementos, em seguida, se combinaram em diferentes proporções para formarem todos os objetos físicos do mundo. Impôs-se à PRIMA MATERIA, por assim dizer, uma estrutura quádrupla, uma cruz, que representa os quatro elementos, dois grupos de contrários: terra e ar, fogo e água. Psicologicamente, esta imagem corresponde à criação do EGO a partir do inconsciente indiferenciado mediante o processo de discriminação das quatro funções: pensamento, sentimento, sensação e intuição.

Aristóteles elaborou a ideia da "prima matéria" em conexão com sua distinção entre matéria e forma. Segundo ele, a matéria elementar, antes de moldar-se ou de ter a forma imposta sobre si, é pura potencialidade - ainda não atualizada, porque o real não existe enquanto não assume uma forma particular. "A primeira matéria é o nome desse poder inteiramente indeterminado de mudança", segundo um comentador de Aristóteles.

Os alquimistas herdaram a ideia da "prima matéria" da antiga filosofia, aplicando-a às suas tentativas de transformação da matéria. Pensavam que, para transformar uma dada substância, era preciso, antes de tudo, reduzi-la ou fazê-la retornar ao seu estado indiferenciado original:
"Os corpos não podem ser mudados senão pela redução à sua primeira matéria."

E, outra vez:
"As espécies ou formas dos metais não podem ser transmutadas em ouro ou prata antes de serem reduzidas à sua matéria essencial."

Esse procedimento corresponde de perto ao que ocorre na psicoterapia. Os aspectos fixos e estabelecidos da personalidade — rígidos e estáticos — são reduzidos ou levados outra vez à sua condição indiferenciada original, o que constitui uma das partes do processo de transformação psíquica.

O problema da descoberta da "prima materia" corresponde ao problema da descoberta de material de trabalho na psicoterapia. Esses textos nos apresentam alguns indícios:
    • Ela é ambígua, está em toda a parte, diante dos olhos de todos... Os humores e as reações pessoais insignificantes de todos os tipos são materiais apropriados para o trabalho psicoterápico.
    • Apesar do seu grande valor interior, a "prima materia" tem uma aparência exterior desagradável, razão pela qual é desprezada, rejeitada e atirada ao lixo. (Cf. o Servo Sofredor em Isaías, no A.T.). Psicologicamente, isso significa que a "prima materia" está na sombra, naquela parte da personalidade tida como a mais desprezível. Os aspectos mais dolorosos e humilhantes de nós mesmos são os próprios aspectos a serem trazidos à luz e trabalhados.
    • Aparece como multiplicidade — "tem tantos nomes quantas são as coisas " —, mas é, ao mesmo tempo uma. Essa característica corresponde ao fato de a psicoterapia, inicialmente, tornar a pessoa consciente de sua condição fragmentada, desconectada. De forma gradual, esses fragmentos vão sendo identificados como aspectos distintos de uma unidade subjacente.
    • A "prima materia" é indiferenciada, sem fronteiras, limites ou forma definidas...

AS OPERAÇÕES

É deveras difícil compreender a alquimia tal como expressa nos escritos originais. EDINGER, o autor que seguimos de perto nesses apontamentos, apresenta as mais importantes operações alquímicas. Uma vez descoberta a "prima materia", deve-se submetê-la a uma série de procedimentos químicos a fim de transformá-la na Pedra Filosofal.

Não há um número exato de operações alquímicas... EDINGER apresenta sete dessas operações principais componentes da transformação alquímica, a saber: CALCINATIO, SOLUTIO, COAGULATIO, SUBLIMATIO, MORTIFICATIO, PUTREFATIO, CONIUNCTIO.

1 - CALCINATIO
O processo químico da calcinação envolve o intenso aquecimento de um sólido, destinado a retirar dele a água e todos os demais elementos passíveis de volatização. Resta um fino pó seco.

Exemplo clássico de calcinação, do qual surgiu o termo cal (calx= cal), é o aquecimento da pedra calcária (CaCO3) ou do hidróxido de cálcio para produzí-la à cal viva (CAO, calx viva). Acrescentando-se água à cal viva, esta apresenta a interessante característica de geração de calor. Os alquimistas pensavam que continha fogo e por vezes a equiparavam ao próprio fogo.

A CALCINATIO é a operação do fogo (as outras são: solutio, água. Coagulatio, terra; e sublimatio, ar). Eis porque toda imagem que contêm o fogo livre queimando ou afetando substâncias se relaciona com a Calcinatio. Isso nos leva ao rico simbolismo do fogo. Para Jung o fogo simboliza a libido. Trata-se de uma afirmação bastante geral. Para conhecer as implicações do fogo e dos seus efeitos, devemos examinar a fenomenologia da imagem em suas inúmeras ramificações.

O fogo da calcinatio é um fogo purgador, embranquecedor. Atua sobre a matéria negra, a nigredo, tornando-a branca... Há muitas alusões ao simbolismo do fogo (purgatório, inferno, etc.). Uma interpretação psicológica do fogo é importante, inclusive para a correta interpretação dos textos bíblicos. O fogo do inferno é o destino daquele aspecto do ego que se identifica com as energias transpessoais da psique e as utiliza para fins de prazer ou de poder pessoais. Esse aspecto do ego, identificado com a energia do SELF (SI-MESMO), deve passar pela calcinatio. Só se considerará o processo "eterno" quando se estiver lidando com uma dissociação psíquica que separe de modo inevitável o bem do mal e o céu do inferno. "Pelo elemento fogo, tudo o que há de impuro é destruído e retirado".

Em toda parte, associa-se o fogo com Deus, sendo ele, por conseguinte das energias arquetípicas que transcendem o ego e são experimentadas como numinosas. Cristo também é associado ao fogo.

De uma forma característica, o pensamento místico distingue dois tipos de fogo. Os estóicos falavam de um fogo terrestre e de um
fogo etéreo. O etéreo corresponde ao NOUS, o divino LOGOS, aproximando-se da concepção cristã posterior do Espírito Santo. A Palavra de Deus é descrita como um fogo (Cf Jr 5,14; Jr 23,29; Tg 3,6). Em Pentecostes O Espírito Santo desce como fogo (At 2,3). Nos tempos primitivos, o fogo era o principal método de sacrifício aos deuses. O fogo conectava o divino com o humano.

A calcinatio é um processo de secagem. A cinza é alquimicamente equivalente ao sal. Na psicoterapia envolve a secagem de complexos inconscientes que vivem na água.

De modo geral, quando enfrentamos a realidade da vida, ela nos propicia grande número de ocasiões para a calcinatio do desejo frustrado... A calcinatio tem um efeito purgador e purificador. A substância é purgada de sua umidade radical.

Por fim a calcinatio produz uma certa imunidade ao afeto e uma habilidade para ver o aspecto arquetípico da existência. Na medida em que estamos relacionados com o aspecto transpessoal do nosso ser, experimentamos o afeto como fogo etéreo (Espírito Santo) e não como o fogo terrestre — a dor do desejo frustrado.

(O material aqui exposto é resumo livre da Obra de EDWARD FEDINGER, ANATOMIA DA PSIQUE, O Simbolismo Alquímico na Psicoterapia, Editora Cultrix, São Paulo, 1995.)

2 - SOLUTIO
A operação de SOLUTIO é um dos principais procedimentos da alquimia. Diz um texto: "A solutio é a raiz da alquimia". Outro afirma: "Não faças nenhuma operação enquanto não transformares tudo em água".

Em muitos textos, a OPUS inteira é resumida na frase: "Dissolve e coagula". Da mesma forma como a Calcinatio pertence ao elemento fogo, a coagulatio ao elemento terra e a sublimatio ao elemento ar, a SOLUTIO pertence à água. Em termos essenciais, a SOLUTIO transforma um sólido num líquido. O sólido parece desaparecer no solvente, como se tivesse sido engolido. Para o alquimista, a SOLUTIO significava com frequência o retorno da matéria diferenciada ao seu estado indiferenciado original — isto é, à prima materia.

Considerava-se a água como o útero e a SOLUTIO como um retorno ao útero para fins de renascimento.

A matéria primeira ou prima materia é uma ideia que os alquimistas herdaram dos filósofos pré-socráticos. Em Tales de Mileto, bem como em muitos mitos da criação, a água é o material original a partir do qual o mundo é criado. Pensavam os alquimistas que uma substância não poderia ser transformada sem antes ter sido reduzida à prima materia... Esse procedimento corresponde àquilo que se passa na psicoterapia. Os aspectos fixos e estáticos da personalidade não admitem mudanças. Eles são estabelecidos e têm certeza de seu caráter justo para a transformação ocorrer, esses aspectos fixos devem primeiro ser dissolvidos ou reduzidos à prima materia. Fazemos isso por meio do processo analítico, que examina os produtos do inconsciente e coloca em questão as atitudes estabelecidas do ego.

Uma receita alquímica de SOLUTIO é:
"Dissolve então sol e luna em nossa água solvente, que é familiar e amigável, cuja natureza mais se aproxima deles, como se fosse um útero, uma mãe, uma matriz, o princípio e o fim de sua vida. E esta é a própria razão pela qual eles são melhorados ou corrigidos nesta água, porque o semelhante se rejubila no semelhante... Assim, convém te unires aos consanguíneos ou aos de tua espécie... E como sol e luna têm sua origem nesta água, sua mãe, é necessário, portanto, que nela voltem a entrar, isto é, no útero de sua mãe, para que possam ser regenerados ou nascer de novo, e com mais saúde, mais nobreza e mais força".

O fato químico implícito neste texto é a capacidade de dissolução ou amálgama do mercúrio com o ouro e a prata, aqui chamados Sol e Luna. Com efeito, esse processo é a base do próprio método antigo de extração do ouro no minério bruto. Depois de pulverizado, o minério é tratado com o mercúrio, que dissolve o ouro. Separa-se então o mercúrio do ouro mediante a destilação a quente. Todavia, o texto considerado transformou esse processo químico numa imagem simbólica, pela superposição de um processo psicológico projetado. Sol e Luna representam, respectivamente, os princípios masculino e feminino quando se manifestam de forma concreta na personalidade no início do processo. Em outras palavras, a atitude consciente dominante do ego tem Sol como representante, sendo Luna a anima em seu estado atual de desenvolvimento. Dissolvem-se Sol e Luna na "água amigável" — isto é, o mercúrio —, equiparado ao útero materno e que corresponde à prima materia. A frase "assim, convém te unires aos consanguíneos ou aos de tua espécie" enfatiza o simbolismo do incesto. Temos aqui uma exposição da descida no inconsciente, que é o útero materno de onde nasce o ego. Trata-se da prima matéria que existe antes da diferenciação dos elementos pela consciência.

A SOLUTIO ocorre através de diversos procedimentos, sempre ligado à água ou símbolos correlatos. Às vezes há uma mistura de imagens, o que é comum na Alquimia. Por vezes aparece uma SOLUTIO combinada com a CONIUNCTIO. Sol e Luna são dissolvidos e, ao mesmo tempo, unidos. Isso corresponde, na Alquimia, às figuras do rei e da rainha se banhando juntos na fonte mercurial.

A SOLUTIO tem duplo efeito: provoca o desaparecimento de uma forma e o surgimento de uma nova forma regenerada.

Outras vezes a SOLUTIO pode tornar-se MORTIFICATIO. Isso é compreensível porque o que está sendo dissolvido experimentará a SOLUTIO como uma aniquilação de si mesmo. Heráclito diz: "Para as almas é morte tornar-se água". Contudo a SOLUTIO leva ao surgimento de uma nova forma rejuvenescida. Sempre é a transformação do EGO inflado, hipertrofiado.

Às vezes o agente de dissolução é o princípio de EROS, VÊNUS OU AFRODITE. A mitologia de Vênus tem importantes relações com a água, vez que a deusa nasceu do mar. Seus perigosos poderes de solutio têm como representação sedutoras sereias ou ninfas aquáticas que atraem os homens, levando-os à morte por afogamento.

Exemplo de solutio fatal ocorre na estória de Hilas, o belo favorito de Heracles. Durante a
expedição dos Argonautas, Hilas foi enviado para pegar água. Jogado num poço por ninfas aquáticas, jamais voltou a ser visto. Aqui, a imagem da solutio acompanha uma complicação homo-erótica, a ligação entre Heracles e Hilas. No Antigo Testamento temos o caso de David com Bersabéia, exemplo de solutio erótica, onde aparece a combinação dos temas da mulher, do banho e da dissolução do masculino. (Cf. 2 Sm 11,2 ). Temos aqui a dissolução desse homem íntegro. No Livro de Daniel há a história de Susana, onde os dois anciãos se aproximam luxuriosamente de Susana enquanto ela se banhava; depois de terem mentido os dois encontram sua queda. Esses exemplos e imagens nos mostram que o amor e/ou a luxúria são agentes de solutio.

Nos mitos, a ameaça de um dilúvio mundial era usada para encorajar a percepção de Deus. Da mesma forma, uma ameaça de inundação vinda do inconsciente pode ter um efeito salutar sobre um ego presunçoso e produzir a consciência da necessidade de relacionamento com o transpessoal. Esse estado é expresso no Salmo 69:
"Salvai-me, ó Deus, pois a água tem entrado até a minha alma. Estou imerso num lodo profundo, onde não consigo firmar pé: entrei nas águas profundas, onde me submergem as ondas." (1, 2 - AV)

"Libertai-me do lodo, para que não fique submergido; livrai-me dos que têm ódio, e das águas profundas. Não deixe que me afoguem as ondas, nem que me devore o abismo, e que sobre mim não se feche a boca do poço." (14, 15, AV)

Os sonhos com inundações referem-se à solutio. Representam uma ativação do inconsciente que ameaça dissolver a estrutura estabelecida do ego e reduzi-lo à prima materia. As grandes transições da vida costumam ser experiências de solutio.

3 - COAGULATIO
Assim como a calcinatio é a operação do elemento fogo, a solutio é a operação do elemento água e a sublimatio é a operação pertinente ao ar, a coagulatio pertence ao simbolismo do elemento terra. Tal como ocorre com todas as operações alquímicas, a coagulatio refere-se, em primeiro lugar, à experiência no laboratório. O
resfriamento pode transformar um líquido num sólido. Um sólido dissolvido num solvente reaparece quando o solvente é evaporado. Da mesma maneira, uma reação química pode produzir um novo composto sólido.

Em termos essenciais, a coagulatio é o processo que transforma as coisas em terra. "Terra" é, por conseguinte, um dos sinônimos de coagulatio. Pesada e permanente, a terra tem forma e posição fixas. Não desaparece no ar por meio da volatização, nem se adapta facilmente à forma de qualquer recipiente, ao contrário da água. Sua forma e localização são fixas; assim, para um conteúdo psíquico, tornar-se terra significa concretizar-se numa forma localizada particular — isto é, tornar-se ligado a um ego.

Costuma-se equiparar a coagulatio com a criação. Certos mitos da criação usam imagens explícitas de coagulatio. Na cosmogonia dos índios norte-americanos, aparece com frequência a afirmação de que o mundo foi criado por um "mergulhador da terra" que trouxe pedaços de lama das profundezas do mar. Esses mitos nos dizem que a coagulatio é promovida pela ação (mergulho, batedura, movimento de espiral). A exposição à tempestade e à tensão da ação, a batedura da realidade, solidifica a personalidade. A substância a ser coagulado é o mercúrio fugido. Trata-se do Espírito de Mercúrio acerca do qual Jung escreveu amplamente. Ele é, em termos essenciais, o espírito autônomo da psique arquetípica, a manifestação paradoxal do Si-mesmo transpessoal. Submeter o Espírito de Mercúrio à coagulatio significa nada menos que ligar o ego com o Si-mesmo, realizar a individuação. Os efeitos menores do fugido Mercúrio aparecem nos efeitos de todos os complexos autônomos. A assimilação de um complexo é, portanto, uma contribuição à coagulatio do Si-mesmo.

No texto "O Turba Philosophorum" menciona três agentes da coa gulatio: o magnésio, o chumbo e o enxofre.

Magnésio significava, para os alquimistas, algo diferente do que representa hoje; era um termo geral que designava vários minérios metálicos crus ou misturas impuras. Psicologicamente, isso pode ser uma referência à união do espírito transpessoal com a realidade humana corriqueira. Talvez seja esse o sentido da observação de Jung relatada por Aniela Jaffé:
"Quando Jung, na casa dos oitenta anos, discutia com um grupo de jovens psiquiatras, com as surpreendentes palavras: 'E assim, vocês têm de aprender a se tornarem inconscientes de modo decente.'"

O próximo agente do coagulatio é o chumbo. O chumbo é pesado, sombrio e incômodo. É associado ao planeta Saturno, que carrega as qualidades da depressão, da melancolia e da limitação mortificante. Assim sendo, o espírito livre e autônomo deve vincular-se com a pesada realidade e com as limitações das particularidades pessoais. Na prática analítica, esse vínculo com o chumbo costuma ser efetuado quando o indivíduo assume responsabilidade pessoal por fantasias e ideias inconstantes mediante sua expressão diante do analista ou de outra pessoa significativa. É surpreendente a diferença de uma ideia falada. É a mesma diferença entre o mercúrio e o chumbo.

O terceiro agente coagulador mencionado é o enxofre, sua cor amarela e seu caráter inflamável o associam ao sol. Por outro lado, seus vapores impregnam de mau cheiro e escurecem a maioria dos metais, razão pela qual é um aspecto característico do inferno. Jung sintetiza sua brilhante discussão do simbolismo do enxofre, em Mysterium Coniunctionis, com as seguintes palavras: O enxofre constitui a substância ativa do sol ou, em linguagem psicológica, a força impulsionadora da consciência: de um lado, a vontade, melhor concebida como um dinamismo subordinado à consciência; do outro, a compulsão, uma motivação ou impulso involuntário, que vai desde o simples interesse até a possessão propriamente dita. O dinamismo inconsciente corresponderia ao enxofre, porque a compulsão é o grande mistério da existência humana. É o cruzamento da nossa vontade consciente e da nossa razão por uma entidade inflamável que está dentro de nós, manifestando-se, ora como um incêndio destruidor, ora como um calor que gera vida.

O enxofre é paradoxal: "Como corrupto, tem afinidade com o diabo, mas ao mesmo tempo se apresenta como um paralelo para Cristo". Portanto, se parte do significado do enxofre é desejo — procura do poder e do prazer — chegamos à conclusão de que o desejo coagula.

O desejo irrefreado é não apenas carcterística da carne — o aspecto coagulado da psique —, como, ao que se afirma, inicia o processo da encarnação. Por exemplo, encarnação e desejo se acham vinculados em O livro tibetano dos mortos. Quando está para encarnar-se e alojar-se num útero, a alma tem visões de casais em coito e dela se apossa num intenso desejo: se for de um homem, tem desejo pela mãe.

Sonhos de aviões em choque e de objetos cadentes costumam referir-se à coagulatio. Exemplo disso é o sonho de um homem que se encontrava no processo de desenvolvimento de uma relação mais autêntica com sua religião.

A experiência psicoterapêutica comprova a ideia de que o desejo promove a coagulatio. Para aqueles que já se acham movidos pelo desejo, a coagulatio não é a operação necessária. Contudo, muitos pacientes têm um investimento inadequado de libido, uma fragilidade em termos de desejo que por vezes beira à anedonia (vincula-se à palavra aneo, do grego Anaides, que não tem órgãos sexuais). Essas pessoas não sabem o que querem e temem os próprios desejos. Assemelham-se a almas não nascidas que, no céu, fogem da queda na realidade concreta. Elas precisam cultivar seus desejos — procurá-los, alimentá-los e agir de acordo com eles. Somente depois que o fizerem a energia psíquica se mobilizará para pomover experiência de vida e desenvolvimento do ego. Na psicoterapia, o surgimento de desejos de transferência indica com frequência o início de um processo de coagulatio, razão por que deve ser tratado com cautela.

O atrativo do desejo é a doçura da realização. O mel, na qualidade de exemplo supremo da doçura, é, portanto, um agente de coagulatio. O mel, graças às suas qualidades de preservação, era considerado pelos antigos como um remédio da imortalidade tendo sido usado na Eucaristia em algumas comunidades cristãs primitivas.

Nos sonhos modernos, referências a doces (balas, bolos, biscoitos, etc) em geral indicam uma tendência regressiva de busca infantil de prazeres, o que requer uma interpretação redutiva (mortificatio), às vezes, contudo, indicam uma autêntica necessidade de coagulatio. A coagulatio costuma suscitar resistências porque dá a impressão de ser moralmente ambígua, capaz de orivicar a dor e o conflito.

Desde a antiguidade manifesta-se a tendência de identificar a matéria com o mal, que alcançou extremos em algumas seitas gnósticas. A queda da alma do seu estado imortal para a forma corporal também costuma ser vinculada com um crime primal. Segundo uma antiga lenda, havia um crime dos Titãs por trás da criação dos seres humanos. Enquanto brincavam com o menino dionísio, eles o desmembraram, ferveram e comeram — deixando apenas o coração, que Zeus resgatou. Como punição, Zeus os consumiu com o relâmpago e usou suas cinzas para criar a raça humana. Desse modo, a "terra titânica", que continha partículas espalhadas do divino Dionisio, tornou-se a argila da coagulatio humana — material produzido por um crime primal. Prometeu, que ensinou os seres humanos a enganarem os deuses e a ficarem com a melhor parte do animal sacrifical para si mesmos, roubou o fogo para dá-lo às pessoas e por isso foi punido pela coagulatio sendo acorrentado a uma pedra. Da mesma maneira, Adão e Eva foram expulsos da condição paradisíaca, que precede o ego, depois do crime que cometeram ao comer do fruto proibido. Esses exemplos demonstram que o desenvolvimento do ego associa-se à experiência do mal, do crime e da culpa. Assim, a consciência do mal que há em cada um — isto é, percepção da sombra — coagula. Se deseja contribuir para o mundo real, deve-se deixar um espaço para o mal. As pessoas santas ou espiritualizadas costumam ter vida curta. No passado, com frequencia morriam de tuberculose. É perigoso ser unilateral, mesmo na bondade.

Os sonhos frequentemente fazem alusão ao aspecto criminoso da condição do ego. A presunção de assumir a vontade e a consciência pode ser representada como um roubo. O atrevimento que consiste em seguir a autoridade interior é expresso como o assassinato de uma autoridade projetada, talvez como um parricídio. O ser um ego está inextricavelmente vinculado com a culpa, punido com a coagulatio — confinamento dentro dos limites da própria realidade pessoal.

A coagulatio costuma ser seguida por outros processos, em geral pela mortificacio e pela putrefactio. Aquilo que se concretizou plenamente ora se acha sujeito à transformação. Tornou-se uma tribulação, que chama à transcedência.

O mais grandioso símbolo da coagulatio é o mito cristão da Encarnação do Logos Divino. Cristo nasceu de uma virgem; isto é, encarnou por meio da terra pura. A Virgem Maria corresponde à noção alquímica de "terra branca foliada". Diz a alquimia: "Semeia teu ouro na terra branca foliada". A terra branca corresponde à cinza que sobreviveu à calcinatio. Trata-se da contradição, porque a terra é tipicamente branca. A terra negra do desejo do ego torna-se a terra branca que encarna o Si-mesmo. A Cruz representa os quatro elementos de que é feito todo ser manifesto. Fixatio é um dos sinõnimos de coagulatio, havendo entre os alquimistas imagens da serpente mercurial fixada à cruz ou transfixada numa árvore. Do ponto de vista do simbolismo da coagulatio, compartilhar do alimento eucarístico significa a incorporação, por parte do ego, de uma relação com o Si-mesmo.


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