Extratos de "A Religião e O Rebelde" de Colin Wilson

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      Para mim, a pergunta fundamental que existe por trás de O Marginal/The Outsider é: como o homem pode ampliar sua esfera de consciência? Penso que os seres humanos usufruam de uma parte da consciência tão estreita como as três notas centrais do teclado de um piano. Sendo a área possível dos estados mentais tão larga como o teclado inteiro, e que o objetivo fundamental e o trabalho do homem consistem em estender essa esfera de três notas a todo o resto. Os homens aos quais me referi em The Outsider têm em comum: um conhecimento instintivo de que sua esfera pode ser ampliada e uma persistente insatisfação no âmbito de suas experiências cotidianas.

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      A maioria das pessoas que conheço, vivem exemplarmente assim: trabalhando, viajando, comendo, bebendo e conversando. O âmbito da atividade diária na civilização moderna levanta um muro ao redor do estado ordinário da consciência e torna quase impossível mirar mais além. Tal circunstância é provocada pelas condições nas quais vivemos. É o que ocorre em uma civilização que sempre faz ruído como um dínamo, e que não proporciona ócio para a paz nem para a contemplação. Os homens começam a perder a intuição sobre modos desconhecidos de ser, essa capacidade de construir o que os levaria a ser algo mais do que cerdos altamente eficientes. A perda dessa capacidade produz um horror contra o qual o Outsider se rebela.

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      Uma tarde estava pegando envelopes com uma esponjinha úmida, quando um jovem que parecia cômodo atuando como mensageiro comentou: "Destruye el alma, ¿no es así?" Uma frase clichê, porém nunca a havia ouvido antes, e a repeti como uma revelação. Não a destruição da alma, e sim a destruição da vida; a força vital entravada produz um odor como a água estancada, e o ser inteiro se perverte.

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      O tédio significa não ter suficientemente o que fazer com as próprias energias vitais. A resposta a isto, simplesmente, reside em estender o raio da consciência, pôr em circulação as emoções e trabalhar a inteligência, até que novas áreas de consciência sejam incorporadas à vida, assim como o sangue que começa a circular novamente por uma perna que estava dormente. Isso é apenas o ponto de partida. Dispor de ócio não é suficiente, o ócio é somente um conceito negativo: o limpo e amplo terreno onde se pode edificar casas decentes depois de liquidar os cortiços. O problema seguinte é iniciar a construção.

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      Quanto mais se combate, maior caudal de vida é possível. Por isto, para mim, o problema da vivência é resolvido elegendo obstáculos que estimulem minha vontade. Instantaneamente, reconheci que nossa civilização vai em sentido oposto: toda nossa cultura e nossa ciência estão direcionadas a capacitar-nos para realizar a menor vontade possível. Tudo se torna fácil e, depois de uma semana de rotina laboriosa e de viajar em ônibus, ainda sentimos a necessidade de aplicar um excesso de energia, sempre podemos entreter-nos com jogos associados a obstáculos artificiais, onde a vontade se aplica para derrotar uma equipe de jogadores de cricket, futebol, ou simplemente lutar contra a imaginária Esfinge inserta nas palavras cruzadas no jornal.

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      Quando disse que Platão, Goethe e Shaw foram existencialistas, implicava que os três eram pensadores para os quais pensamento e vida são inseparáveis. Outrem para o qual pensamento e vida resultam inseparáveis é o artista; sua arte é o resultado do impacto da vida em sua sensibilidade.

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      Resumindo, o existencialista é o artista filósofo, e seu meio natural é a Bildungsroman. – novela educativa —; a novela ou a obra que se refere à maturação de sua personagem central através do impacto de sua experiência. Exemplos disto: Wilhelm Meister de Goethe, Os irmãos Karamazov de Dostoievski, O calvário de Richard Feverel de Meredith, A montanha mágica de Mann, Demian de Hesse, Os caminhos da liberdade de Sartre, Adeus às armas de Hemingway, O retrato do artista quando jovem de Joyce, Imaturidade de Shaw. É citado aqui juntas as maiores e as menores para enfatizar a amplitude deste ramo. Deixem-me terminar dogmatizando: no século XX, a única forma séria de arte literária é a Bildungsroman.

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      Imaginação é o poder de captar, sem isto o homem seria um imbecil, sem memória, sem premeditações, sem capacidade de interpretar o que vê e sente. Quanto maior é o poder de captar, mais elevada é a forma de vida; e no homem, o captar se transforma em uma faculdade consciente, que pode ser denominada imaginação. Se a vida é avançar até estratos mais elevados, ir além do macaco, além do homem-trabalhador e do homem-artista, isto se produz mediante um maior desenvolvimento do poder de captação. A ambição espiritual é a busca por uma maior intensidade de imaginação.

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      Nesse ponto comecei The Outsider. Minha tese era que a religião começa com o estímulo do heroísmo substituindo a imaginação. Os Outsiders dos primeiros capítulos eram homens famintos por heroísmo, encalhados em uma era não-heróica. Sua anormalidade como Outsiders residia em suas tentativas de fabricar seu próprio heroísmo. A queixa de Roquentin — A náusea de Sastre — era: Não há aventura, e isto é verdadeiro na civilização moderna.

      Tratei de demonstrar que a ânsia por uma maior intensidade de imaginação — de vida — toma a forma de uma busca por heroísmo. Esta fome do heroísmo é completamente visível nas vidas de Van Gogh, T. E. Lawrence e Rimbaud, Gauguin. Guido Ruggiero chamava Gauguin e Rimbaud de Santos existencialistas, e declarou — com completa precisão — que o existencialismo toma a vida como uma novela de aventuras.

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      Nietzsche sabia que o ideal de uma paz universal é um falso ideal; o homem sempre tentará criar oportunidades para o heroísmo. As guerras do século XX são a expressão de uma frustração inconsciente. Kierkegaard tinha razão quando disse que o tédio é o verdadeiro mal do mundo. Uma religião é o receptáculo do heróico, o símbolo da necessidade do homem de lutar pela captação. As guerras mundiais e o fracasso da religião são companheiros inevitáveis.

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      O Outsider deve ser considerado como um fenômeno da civilização moderna. Chegada a esta conclusão: é o sintoma de uma civilização em decadência. Porém, ao menos, é um sinal de saúde.

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      Em qualquer época, a religião mais pura está nas mãos de seus rebeldes espirituais. O século XX não é uma exceção.

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      Cada vez que uma civilização chega a um ponto crítico, é capaz de criar um homem melhor. A resposta exitosa à crise depende da criação de um novo ser. Não necessariamente o Além-Homem/Super Homem (Übermensch) nietzscheano, e sim um tipo de homem com uma consciência mais ampla e um direcionamento de seus propósitos mais profundo que nunca. A civilização não pode continuar na presente querela, este desfile de míopes que produzem melhores e melhores refrigeradores, telas de cinema mais e mais largas, minando constantemente toda a vida espiritual. O Outsider é uma tentativa de contrabalancear esta morte dos propósitos. O desafío é imediato e exige resposta de todos os que sejam capazes de entendê-lo.

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      Se nossa época está à beira de sua última decadência, como a civilização grega nos tempos de Plantão, o Outsider somente pode a observar com curiosidade científica, e continuar — como Plantão — meditando sobre problemas não tão imediatos. Este desagregar-se é a condição básica para a sobrevivência, um sinal de otimismo fundamental:

      Todas as coisas caem e são construídas de novo. E aqueles que as constroem novamente são felizes.

      Assim dizia Yeats.

      Os Outsiders aparecem como erupções em uma civilização moribunda.

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Colin Wilson










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