O SONHO DO CARETA EPAMINONDAS GIVALDO PINTO COUTO .................de Natanael Gomes de Alencar

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Raulzinho chega atrasado no serviço. Teve que pegar dois ônibus, como sempre, mas desta vez, um acidente colocou seu horário a perder. Chega correndo ao relógio de ponto digital, porém não adianta. O estrago já está feito.
Sobe a escada de cimento, que está em petição de miséria. O acesso de pessoas mais velhas ao seu local de trabalho é cada vez mais difícil. Sequer há corrimão. O prédio estava quase caindo.
Se algum aposentado chegava ao pé da escada, acabava tendo de voltar. Pois de outro modo iria ficar plantado ali. Do primeiro degrau já dá pra ver a impossibilidade de subir, se não se está em boas condições de saúde.
Raulzinho na verdade não era seu nome, que, na real, era Epaminondas Givaldo Pinto Couto, mas, se acostumou, não reclama mais quando o chamam assim. No fundo, no fundo, não gostava de seu nome. Ele nasceu e cresceu numa família religiosa, sendo sempre o queridinho de todos. Até começar a trabalhar. Fora de casa não era tão queridinho assim. Era sério, não curtia brincadeiras, não falava palavrão, ou seja, não falava. Seu primeiro emprego foi numa farmácia. 
Mas, devido a problemas que não se sabe onde surgiram, era difícil pra ele memorizar sequer o manual de procedimentos. Em todo teste que havia pra subir de função fracassava. Sua nota era sempre um ou zero. Foi nesse emprego que ganhou o apelido de Raulzinho. A semelhança com o cantor e compositor era tremenda. E não adiantava ele tirar a barba e o bigode. Mesmo careca, era Raul Seixas careca, cuspido e escarrado, garantia o seu colega mais inoportuno. Era este o responsável pelo começo da história. Não ganharia o apelido se na farmácia não trabalhasse o Ric Alisson, fã ardoroso do cantor. Ric Alisson também não era seu verdadeiro nome e sim Artaxerxes Espidocêntico da Silva. De onde seus pais tiraram este nome, não se sabe. Perturbava o Raulzinho pra esquecerem suas falhas, quem sabe. Aliás, perturbava a todos. Sorte de Ric ser parente do dono da rede de farmácias.
Porém, chegou o dia de Raulzinho sair da farmácia pra um emprego melhor. Não via hora de sair dali. Não pelo nome novo e mais pelas brincadeiras sem noção do colega inoportuno.
Em seu primeiro dia no novo emprego, lhe dão a tarefa de carimbar uma infinidade de papéis. Atrás dele a mesa da chefe, Dona Alzira. Ela lia um jornal. Do lado dele, Gildete, perseguindo uma mosca com os olhos e uma toalha molhada, que tornava o golpe mais rápido. E acertava os insetos, particularmente as moscas, em cheio.
O tempo foi passando, e Raul completou em determinado dia o tempo de serviço de vinte e cinco anos. Sempre na mesma. Só que com os anos foi deixando de ser o idiota motivo de chacota. Começou a se especializar em Raul. Nas férias, trocava informações com quase todos que conheceram o astro do rock. Tomou café com Silvio Passos, foi aos shows de uma das filhas, a Vivi Seixas. Visitou a mãe de Vivi, Kika Seixas. Ganhou de presente o livro Baú do Raul. E dali em diante começou a fazer muitos colegas, principalmente os que tinham interesse comum em Raul Seixas. Conheceu Cissa, uma adoradora do Maluco Beleza. Namoraram, noivaram, casaram, e tiveram um filho.
No dia em que completara vinte e cinco anos de serviço, apontara no trabalho com outros ares. Estava disposto a tomar uma atitude que nunca cogitara. Esperou chegar bem tarde da noite. Vai até a chefe, que continua a mesma, com apenas alguns charmosos fios de cabelo branco, e a encara, esperando a manifestação da mesma. Dona Alzira não entende esse gesto súbito. Depois de uns eternos cinco segundos, ela dispara.
- Raul, por que parou? 
- Vou pra casa. Esse trabalho já me torrou o saco, morou? Já é dez da noite e eu aqui nessa merda. Só carimbar, carimbar, carimbar. Pra ganhar o quê? Uma merreca dum ouro de tolo! Tou fora!
- O senhor acha que vai ser fácil achar outra moleza dessas com a sua idade?
Raul pega o casaco, para na soleira um pouquinho, pisca pra Dona Alzira e manda, baixinho, quase inaudível o som, articulando bem aquela ordem que se dá a alguém quando quer que este vá....
Dona Alzira faz que não entendeu aquilo. Afinal, Raul nunca fora assim, apesar da fama de seu ídolo.
- O senhor quer ser um carrasco pro seu filho? Não esqueça que o senhor tem um filho. Como é mesmo o nome do filho dele, Elza?
- Não sei, Dona Alzira. Pera lá, tem o nome num convite de aniversário antigo comigo. Esta gaveta já tá com muita coisa que tem de ir pro lixo...
- Deixa quieto, Elza! Você também não serve pra nada! Tá ficando velha!
- Dona Alzira, eu exijo respeito! – e sai chorando para o banheiro.
Raul, da porta, lança à chefe suas últimas palavras ali.
- Não quero mais ser explorado por você! Vocês ainda vão ver meu nome em letras grandes! Logo vocês vão ver!
- Você já tá com cinquenta anos! Tá querendo fazer o quê? Cantar? Atuar? Pintar quadros? Desenhar quadrinhos do Carlos Zéfiro?
- Quem é esse?
Sem jeito, Dona Alzira ajeita os óculos.
- Não interessa!
- Ninguém aqui tem sensibilidade, tá entendendo? Ninguém! Todos aqui tão com o trem parado noutro século! A gente se cruza em alguma estação por aí!
Raulzinho deixa sua imaginação fluir. 
...
Entra em Imaginópolis:
Enxerga a si no aguardo de um chamado de emprego, depois de um tempo, em que seus planos artísticos não dão certo, ao sair dali. No canto esquerdo de sua cidade Imaginópolis, sua mulher atende um celular.
- Oi, seu Júlio. Como vai a Marinete? Aqui tudo bem. Não, o Raulzinho tá no banho. Mas pode falar comigo. Ah, tá. – Um vendedor de curau passa na hora: Vai pamonha? Vai Curau? Alô, dona de casa. Pamonhas fresquinhas do jeitinho do seu paladar! Vem cá, vem experimentar! Delícia! Delícia! Peraí, seu Júlio. Não tou ouvindo nada. Deixa o carro do curau passar. Pode continuar....Eu falo sim. Onde ele tem de ir mesmo? ....Deixa eu pegar um papel e caneta. – Pega um papel amassado jogado aos seus pés. Só acha um batom e escreve com o mesmo. - Pode falar.... Vigilância Patri.....patri o quê....monial Cerqueira..... Ah, sei. Fica perto da Prefeitura. Eu mando ele lá. Abraço. Ah, dá um beijo na Nete...Tchau....
No centro de Imaginópolis, Raulzinho está empregado, a cabeça deitada na mesinha da guarita de vigilância. O celular o desperta. O horário marcado para escrever. Pensa um pouco e não consegue. Pega uma latinha de cerveja já pela metade. Entorna de uma vez em sua boca guarnecida por uma dentadura. Sai da guarita e se põe a olhar a avenida.
Observa um movimento. Ao longe, lhe parece que uma porção de mendigos reivindica alguma coisa. Entra de novo na guarita ao perceber que cada um dos mendigos porta uma metralhadora estranha.
A música que cantam é conhecida dele. Parece que é....Tente outra vez. De mais perto, percebe que são cópias de Raul e as metralhadoras são guitarras elétricas. Param diante da guarita de Raul. A uma só voz, exigem que ele seja seu chefe. Precisam rumar à Sociedade Alternativa.
Fora desse movimento, uma mendiga caminha em círculos, cheia de sacos plásticos entre sua roupa enorme e o corpo franzino. Olha ao espelho e gira como uma bailarina. Ela diz coisas sem nexo:
- Por que você me envelhece? O que te fiz? Eu sou branca como a neve e você vive brincando comigo. – A mendiga dá uma pirueta e se transforma no Carimbador Maluco. Dá mais uma pirueta e se transforma numa mosca.
Raulzinho sai de Imaginópolis.
...
Ainda está na soleira da porta. Se convence que não está á altura do ídolo. Pensa no filho, na mulher, nos vinte e cinco anos ali. Apesar das mudanças, sabe que falta pouco pra aposentar. O dono da nação tá ferrando todo mundo por motivos que acha certos. Apesar disso, somando os vinte e cinco mais dez de fora, já tem tempo. Só falta a idade. Um ano pra cinquenta e oito. Quer saber... Raulzinho aduz suas razões, enquanto se encaminha de volta a sua mesa, quase ao mesmo tempo em que Dona Elza volta do banheiro.
- Muito bem, Dona Alzira. Eu assustei a senhora? Pois é, isso é um roteiro que tou escrevendo. Não é verdade não, viu? Já pensou que ia ficar com minha mesa, né, Dona Elza?

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